O que é a terciarização?
Perspectivas de mudança social

Robert Kurz

16 de novembro de 2003


Primeira Edição: Original Was ist Tertiarisierung? in www.exit-online.org. Publicado na Folha de S. Paulo em 16.11.2003, com tradução de Luiz Repa, sob o título A ficção científica da terceirização.

Fonte: http://www.obeco-online.org/robertkurz.htm

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Em uma consciência determinada pelo mercado universal, a percepção dos fenômenos econômicos acaba se atrofiando em todos os âmbitos da vida. Amanhã o contrário de hoje já pode ser "verdadeiro"; mas o conteúdo é de qualquer modo indiferente, já que se trata meramente de "vender" o mais rápido possível. Isso se aplica a idéias e teorias tanto quanto a automóveis e gravatas. Nesse nível, o conceito de "mudança social" não tem realmente mais nenhum sentido. Pois, se esse conceito deve significar alguma coisa de modo geral, ele precisa se referir a um desenvolvimento analiticamente determinável no tempo, ou seja, a uma história das estruturas sociais. A consciência pós-moderna, em total conformidade com o mercado, já não conhece mais nenhum desenvolvimento histórico; limita-se à arbitrariedade de tendências incoerentes. No lugar da teoria social crítica aparece em aumento, por esse motivo, a "pesquisa de tendências".

Se desse modo nenhuma diferença entre estruturas objetivas e percepção subjetiva continua a ser pensável, apaga-se igualmente a capacidade de refletir, numa perspectiva ainda intelectual, as próprias relações sociais em geral. Nem sequer uma ideologia apologética em sentido estrito é possível nesse caso, pois mesmo esta pressupõe um conceito de desenvolvimento objetivo, ainda que falso, meramente legitimador. Porém, visto que uma sociedade dilacerada por autocontradições como a do mercado totalitário não pode de forma nenhuma passar sem uma ideologia legitimadora, o pensamento pós-moderno recorre, no aspecto econômico e sociológico, a teorias mais antigas, às quais é inerente ainda uma pretensão tradicional de objetividade. O fato de isso ser incoerente não causa nenhum dano; pois incoerência significa, no pensamento pós-moderno, seja de que jeito for, uma virtude.

Embora as teorias pós-modernas rechacem todo determinismo estrutural, as análises de tendências conceitualmente redutoras continuam a se mover, por isso, com base em teorias sociológicas da "mudança social", desenvolvidas em termos de determinismo estrutural. Explícita ou implicitamente, também as conjunturas ideológicas pós-modernas pressupõem uma determinada hipótese sobre o desenvolvimento social objetivo com vista aos três setores basais da reprodução social (agricultura, indústria e serviços). É a imagem fantasmática da outrora festejada "terciarização" que ainda determina o discurso sociológico, mesmo que sejam negados os pressupostos metodológicos das ciências sociais clássicas que suscitaram o teorema dessa terciarização. O método é criticado, enquanto se enfia o resultado substantivo no próprio bolso.

A sociedade — é o que se lê nessas teorias que entrementes se tornaram clássicas — desenvolve-se por uma transformação histórica do setor agrário primário para o setor de serviços terciário, passando pelo setor industrial secundário. Por conseguinte, a "ocupação" da força de trabalho é gradativamente reestruturada. No começo, certamente, isso está ligado a rupturas estruturais dolorosas, mas por fim resulta numa nova "ocupação plena" e numa nova prosperidade secular. Desde então a teoria econômica e sociológica da terciarização envelheceu algumas décadas, e seria preciso traçar um resumo que, no entanto, não é de jeito nenhum possível com os meios intelectuais do pensamento pós-moderno. Vista com superficialidade, a tese da terciarização se confirma empiricamente, embora de maneira totalmente disparatada e em oposição às hipóteses otimistas originárias. O que não se confirmou é o surto secular de ocupação e prosperidade, aguardado com a passagem para a terciarização. Pelo contrário, tudo indica que a terciarização real está vinculada a um processo de crise e atrofiamento econômico mundial.

O problema é anuviado pelo fato de o setor terciário, diferentemente do setor agrário e industrial, não poder ser em absoluto definido de modo homogêneo. Sob a rubrica "serviços" podem ser reunidas atividades extremamente distintas, bem distantes umas das outras. Apesar disso, dois grandes grupos saltam à vista. Por um lado, trata-se de domínios com uma qualificação especialmente alta, como a medicina, a educação, a pedagogia, a ciência, a cultura etc. Por outro, temos de lidar com âmbitos particularmente não-qualificados de domésticos e assistentes baratos das empresas de serviço (restaurantes, limpeza, serviços pessoais e assim por diante). Fritar hambúrgueres, encher os sacos nos supermercados, vender cadarços de sapato na rua ou lavar os vidros dos carros parados no semáforo são consideradas atividades do setor terciário tanto quanto instruir empresários, educar crianças ou organizar viagens de estudos. A empregada doméstica e o arrumador de automóveis pertencem à mesma categoria que o médico e o artista.

Essa discrepância pareceu por algum tempo marcar também a diferença social entre países ocidentais e o Terceiro Mundo. É verdade que, nos países do Sul global, a agricultura foi, à medida que produzia para o mercado mundial, tão mecanizada e cientificizada quanto no Ocidente. Mas, em contraste com os países do centro capitalista, a passagem do setor agrário primário para o industrial secundário já não teve aqui nenhum êxito ou o teve de maneira muito imperfeita. Foi justamente o fracasso da "industrialização recuperadora" que produziu uma situação paradoxal, segundo os critérios da teoria do desenvolvimento dos três setores basais: por um lado, uma parte da sociedade foi relançada a uma produção de subsistência agrária primitiva, que vegeta na vizinhança da agroindústria direcionada ao mercado mundial; por outro lado, surgiu uma terciarização de miséria em massa nas aglomerações urbanas, que incham monstruosamente.

Nos centros ocidentais, ao contrário, os prognósticos otimistas da terciarização pareciam se confirmar de início. Certamente, já nos anos 70, começou também no Ocidente a queda social rumo ao desemprego estrutural em massa. Mas esse desenvolvimento negativo deveria ser aparado por uma elaboração social do problema: quase se acreditou poder colocar atrás de todo desempregado um assistente social. A "indústria da assistência" para os "caídos" parecia se tornar um próprio fator de crescimento. Em paralelo com a pedagogia social, o sistema da assistência médica também se expandiu. Ao mesmo tempo, centros de lazer, locais de encontro, escolas de reformação e novos sistemas de qualificação profissional foram colocados a caminho. "Ofensivas formativas", "sociedades do lazer" e "pedagogização da vida" foram as palavras-chave do espírito do tempo ocidental até os anos 80. Numa escala substantivamente menor, houve tendências semelhantes também no Terceiro Mundo, mas tão-somente como terciarização de luxo para uma minoria, à qual se contrapunha a terciarização de miséria da maioria. No Ocidente, em contrapartida, parecia se tratar de uma mudança estrutural "para todos".

Mas essa espécie de terciarização tinha um "defeito estético" decisivo: em termos capitalistas, era "improdutiva", ou seja, não constituía nenhum surto de crescimento comercial, mas antes precisava ser alimentada por compensações estatais e organizadas na maior parte em forma de serviços públicos. Isso não combinava com a contração econômica do crescimento industrial. A maravilhosa sociedade da formação, da educação, do lazer e da assistência só pôde ser mantida em vida durante algum tempo por meio do endividamento dramático e crescente do Estado, até que finalmente a ilusão explodiu e começou a demolição dos setores-suporte pretensamente novos da sociedade de serviços.

Nos anos 90, o capitalismo global gerou duas opções para reagir à crise da terciarização. A palavra-chave "privatização" sugeria que os setores terciários não mais reproduzíveis por meio do Estado, incluindo a infra-estrutura inteira, podiam ser comutados por empresas lucrativas privadas. Ao mesmo tempo, a nova economia, a versão "high-tech" comercial dos serviços (capitalismo de internet), deveria trazer crescimento rendoso e ocupação. As duas opções, como se sabe, já fracassaram. A nova economia se revelou mera bolha financeira, ao passo que a ocupação e o crescimento real desse setor se limitaram a um microdomínio. Os ex-serviços públicos privatizados são igualmente deixados de lado como suportes de crescimento capitalista. Uma medicina ou uma formação sustentadas em Bolsas de Valores rapidamente se reduzem à clientela privada solvente, enquanto a maior parte da estrutura nesses âmbitos acaba falindo. Em muitas regiões do Terceiro Mundo, a infra-estrutura social inteira entra em colapso. De forma atenuada, uma tendência análoga se delineia também nos países ocidentais.

Das antigas promessas de uma terciarização progressista, sob o nome de sociedade da cultura, da assistência e do lazer, não restou nada. Inclusive o turismo foi apanhado pela crise. Em vez disso, agora é a terciarização de miséria do Terceiro Mundo que se torna modelo para os centros do mercado mundial. Impudentes, nesse meio tempo os discursos políticos e socioeconômicos ocidentais passaram a apostar, como última opção, na existência em massa de domésticos pessoais baratos, em semelhança com o capitalismo primevo. É imaginável uma sociedade "high-tech" planetária de poucos capitalistas financeiros e empresários transnacionais, por um lado, e bilhões de empregadas domésticas, motoristas, camareiras, damas de companhia, servos domésticos, pajens etc., por outro? Isso parece mais ficção científica de péssima qualidade. É verdade que há no Terceiro Mundo uma tradição, herdada do colonialismo, de relações paternalistas de serviço doméstico, principalmente onde imperava a escravidão nos tempos coloniais. Mas, sob as condições do mercado universal, relações pessoais de dependência entre senhor e escravo, como as que existiram no capitalismo primevo como ressalto da sociedade feudal, já não são mais possíveis em grande escala. Pelo contrário, na qualidade de empresas comerciais impessoais, os serviços domésticos podem se tornar o suporte de crescimento tão pouco quanto a educação e a medicina privatizadas. Para tanto a demanda solvente não é grande o suficiente, pois com a crise da terceira revolução industrial também a classe média social acabou derretendo. Os bilhões de seres humano que agora, em todas as partes do mundo, encalham na terciarização de miséria não passam na realidade de mendigos e decaídos melhores, para os quais não há mais nenhum futuro capitalista.

O desastre histórico da terciarização remete ao problema-tabu da forma social. Vista de uma perspectiva puramente técnica e material, a produtividade suscitada pela terceira revolução industrial permitiria de fato que a humanidade aplicasse apenas uma parcela relativamente pequena de seu tempo em produção agrária e industrial, a fim de se ocupar principalmente com formação, educação, assistência, medicina, cultura etc. A primeira parte desse programa se cumpre: um número cada vez menor de pessoas é empregado no setor primário e no secundário. Mas a segunda parte fracassa: a reestruturação dos recursos humanos no setor terciário não é pensável em termos capitalistas. Nós tivemos, nesse meio tempo, a prova prática disso.

A doutrina econômica do desenvolvimento dos três setores apresentava desde o início a falha de que ele era historicamente inconcebível. Pois esse desenvolvimento não se realiza precisamente no interior das estruturas capitalistas "eternas". A sociedade agrária pré-moderna não se baseava na valorização do capital monetário. Por isso, o deslocamento do centro gravitacional da reprodução social do setor agrário para o industrial foi uma ruptura com a forma até então válida de relações pessoais de dependência, removida depois pela forma impessoal do capital monetário. Também a passagem da sociedade da indústria para a sociedade de serviços exige agora a ruptura com a forma do moderno sistema produtor de mercadorias e o surgimento de uma ordem qualitativamente nova, diferente.

Essa ruptura necessária com a forma social básica tem também uma dimensão simbólica e cultural. Desde a revolução neolítica, a sociedade agrária possuía uma "visão de mundo orgânica", na qual o processo sociocultural de "metabolismo com a natureza" (Marx) se referia primariamente às plantas e aos animais. Essa visão de mundo não era tão suave e "ecológica" como sugerem hoje muitas ideologias regressivas. Tratava-se antes de uma relação de dominação que reduzia o ser humano à sua função orgânica, como um "animal falante", por meio da forma da dependência pessoal entre escravidão e feudalismo.

A sociedade industrial do moderno sistema produtor de mercadorias, por sua vez, possuía uma "visão de mundo mecânica", na qual o processo sociocultural de "metabolismo com a natureza" se referia primariamente à matéria física morta (máquinas e mercadorias industriais). Essa visão de mundo reduzia o ser humano a um robô funcional mecânico por meio da forma impessoal do dinheiro.

A sociedade terciária ainda desconhecida, situada além da modernidade mecânica, precisa de uma "visão de mundo social" na qual o processo de "metabolismo com a natureza" se refere primariamente, pela primeira vez, ao próprio ser humano, no qual, portanto, ele se torna o processo de metabolismo da sociedade consigo mesma. "A raiz do homem é o homem" (Marx). Essa verdade só agora urge uma forma social. Na figura da física quântica, a ciência natural já abandonou a visão de mundo mecânica; e não é por acaso que revolução microeletrônica, baseando-se na física quântica, leva o capitalismo "ad absurdum". Se a humanidade não quiser findar, ela terá de superar o reducionismo orgânico e mecânico e se relacionar de maneira humana consigo própria. Só então ela poderá se relacionar também de maneira humana com a natureza biológica e física.


Inclusão: 28/12/2019