Contos de Fadas para a Crise
A autobiografia de Frank Capra como grande bobo da corte

Robert Kurz

18 de maio de 1997


Primeira Edição: Original Märchen für die Krise em www.exit-online.org. Publicado na Folha de S. Paulo de 18.05.1997 com o título O liberal e as fadas e tradução de José Marcos Macedo.

Fonte: http://obeco-online.org/robertkurz.htm

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Hollywood, todos sabem, é kitschglamour, perfeição técnica, sentimentalismo, lágrimas falsas, dentes falsos e... enorme sucesso há mais de 80 anos. A grandiosa máquina de sonhos do capitalismo funciona como um relógio e produz na linha de montagem ilusões para todo o mundo; não com a rígida coerção da propaganda e suas mentiras, mas com o poder sedutor da oferta e suas mentiras. Mas não pode ser só o dinheiro a grande realização de Hollywood. E não podem ser só os truques técnicos que fazem constantemente derreter o coração dos espectadores. O poder de Hollywood tampouco está no fato de as pessoas sucumbirem a uma refinada manipulação, mas antes no fato de elas reconhecerem tal manipulação, divertirem-se enormemente com ela e, ainda por cima, pagarem para tanto. O poder de Hollywood é a arte talvez mais antiga do conto de fadas, traduzida na forma da “reprodutibilidade técnica” (Walter Benjamin). Também nessa configuração moderna e tecnológica, contudo, não existe conto de fadas sem um contador.

Muitos livros foram escritos sobre Hollywood, mas apenas uns poucos sobre seus próprios grandes contadores de histórias. Frank Capra foi uma exceção, e sua autobiografia, como disse John Ford, “não é só o melhor, mas o único livro que jamais foi escrito sobre Hollywood”. Essa opinião não é exagerada. Quando Capra, com mais de 70 anos de idade, redigiu as quase mil páginas desse opus magnum publicado em 1971, ele não relatou apenas sua vida, mas a própria história de Hollywood como um grande conto de fadas: “Tudo o que nós, gente do cinema, somos, temos e fazemos advém do filme, do tapete voador! Eu pude agarrar a franja desse tapete voador, alçar-me aos ares e ir ao encontro da aventura”. Este livro contém todas as virtudes e fraquezas dos filmes de Capra e pode mesmo ser considerado um “filme” que tem de passar na prova da credibilidade.

Do começo ao fim, Capra revela todos vícios e vergonhas de Hollywood. Matraqueia com orgulho, dá-se ares de felizardo e super-homem, assume poses exageradas como um jovem pubescente de gueto. Capra como Napoleão nas guerras da indústria cinematográfica, Capra cumulado de prêmios, Capra, o Grande! Ao mesmo tempo, ele é sentimental até as lágrimas (ou para além delas) e derrama aos borbotões a famosa “pieguice à Capra” (Capracorns), pateticamente como um pregador itinerante e de forma católico-romana até os ossos: “Alguém deveria recordar ao homem mediano”, moraliza o ungido Capra de cima de seu púlpito erguido por si próprio, “que ele é um filho de Deus e um herdeiro legítimo das ricas dádivas divinas e que a bondade significa riqueza, a amizade significa poder e a liberdade significa fama”.

Se fosse só isso e nada mais, os filmes de Capra teriam sido simplesmente insossos e a sua alentada biografia-calhamaço, ilegível. Mas, tanto nos filmes quanto no livro, o ritmo é de tirar o fôlego e “o pecado capital, o tédio” não tem vez. Como isso é possível? Talvez por meio de uma única e grande virtude de que precisa o contador de histórias: uma ingenuidade de cair os queixos! Apesar de toda manha e esperteza, apesar de toda malícia e vivacidade, Capra, o moleque de riso maroto dos campos da Sicília, guarda sempre algo de um Simplicius Simplicissimus. Capra continua ingênuo e, por isso, ele é capaz de permanecer honrado também como um camponês simplório. Mal tocara as trombetas de sua própria fama, ele se vê “com toda a serenidade de um homem que pela primeira vez anda de patins” e, logo após o triunfo, vem sempre a sobriedade: “A realidade desabava sobre mim como um saco de areia”. A honestidade lhe deve ser creditada, mesmo que ela sirva só para dar melhor vazão às sentenças grandiosas.

A autêntica ingenuidade de Capra permaneceria unidimensional se não fosse superada de modo bizarro pelas virtudes quase contrárias do humor e da auto-ironia, cujas técnicas cênicas ele aprendera como gag-man no estúdio de Mack Sennet, onde se cultivava o pastelão e onde foram inventadas as tortas voadoras. Em suas comédias sociais, Capra, como ele mesmo diz, fundiu os personagens clássicos do drama e “os heróis brincalhões numa única pessoa”. O fato de ele e seus heróis cumprirem uma função análoga aos “bobos da corte de sempre” lhe era plenamente consciente: “Tais bobos eram em geral anões ou grotescos pobres-diabos que, para indicar sua posição privilegiada vestiam trajes de palhaços... empunhavam delgadas bengalas de palhaços (slapsticks) ou portavam balões cheios de ar. A fala sarcástica dos bobos serviria, assim esperavam os reis, como válvula de escape e evitaria a explosão da fervilhante chaleira da miséria popular”. E, no entanto, Capra acredita no poder libertador do riso: “No tocante às relações entre os homens, a comédia cumpre a perfeita tarefa da defesa própria... Quando alguém age com altivez ou quando impõe medo — aí se colocam os espinhos. Não se rirá — nem com ele nem sobre ele... Ditadores não podem rir. Hitler e Stálin não se achavam a si mesmos nem aos outros engraçados”. Se algo resta de Capra e de seus contos de fadas, esse algo é a risada. Na Alemanha, “Este Mundo É um Hospício” (“Arsenic and Old Lace”, 1944), uma genial obra de ocasião, tornou-se o seu filme mais conhecido, com o selo do “humor negro”.

O terceiro grande trunfo de Capra é algo que se poderia descrever como exatidão ou como olho para o detalhe. Obviamente, esse amor pelo detalhe tem uma dimensão técnica. Não por acaso Capra era um cientista qualificado e engenheiro graduado, amigo do astrônomo Edwin P. Hubble (o descobridor do desvio para o vermelho das galáxias e da expansão do universo), detentor de algumas patentes e inventor de diversas máquinas; capacidades que sempre lhe ajudaram no trabalho como diretor. Mas, para além do aspecto técnico, é o faro para o colorido de uma situação, no sentido literal e figurado, que Capra destaca em sua autobiografia — quando, por exemplo, ao viajar para Moscou na condição de membro de uma delegação cinematográfica, ele descreve a gigantesca manifestação na Praça Vermelha no 1º de maio de 1937: “Caminhávamos entre fileiras intermináveis de soldados, entre verdadeiros vales de bandeiras vermelhas e por entre ruas bloqueadas pela polícia secreta que controlava o passo, carimbava e revistava... A cor colérica espelhava-se nos olhos e nos rostos dos homens e incendiava as baionetas. Vermelha a cidade, vermelha a atmosfera... Além, nos arrabaldes da cidade, terminava a corrente ininterrupta dos soldados. O sol se pôs. Diante de nós, ergueu-se uma nuvem de poeira num campo aberto. Os que marchavam à nossa frente saíram de formação e correram em direção à nuvem... E lá, sob o abrigo dessa escura nuvem de poeira, teve lugar a maior mijada em massa de todos os tempos”. Uma cena digna de Capra!

Aqui a ironia do artista volta-se contra a forma da propaganda, contra o olhar geral e abstrato dirigido à humanidade, contra as grandes maquinações de uma transformação social. Seu olhar tem em mira somente o indivíduo, não só no sentido do ideal político norte-americano, mas ainda como método de sua própria arte. Para Capra, isto é um alvo programático: “A massa é um conceito próprio ao rebanho — inaceitável, ofensivo, humilhante. Quando vejo um ajuntamento de pessoas, vejo um conjunto de indivíduos livres: cada qual uma pessoa única, cada qual, em sua dignidade humana, uma ilha para si. Outros que façam filmes sobre as grandes tempestades da história, eu gostaria de fazer o meu sobre aquele garoto que é levado pela tempestade. E se esse tipo é um especial feixe de contradições… pois eu creio poder compreender seu problema”.

Capra toma o partido do sujeito artístico individual contra a filosofia crítica, da experiência contra a teoria: “Meus filmes penetrarão o coração não com lógica, mas com compaixão”. Se se quiser, pode-se reconhecer aqui um eco da crítica de Adorno à “lógica da identidade”, uma insistência no “não-idêntico” nos homens, que não se resolve nas determinações da estrutura social e de suas “coerções objetivas”. Contudo, quando essa posição permanece unilateral e irrefletida, logo não se vê mais a floresta por trás das enormes árvores. Para Capra só existiam as árvores isoladas, e nisto ele é rigorosamente liberal. Justamente por isso, todavia, o contexto social à sua volta só pode ser salvo com seu carregado sentimentalismo, e as soluções têm de vir diretamente de um milagre, como que pela “mão de Deus”. O contador de histórias sente o chão vacilar sob os pés e a “pieguice à la Capra” ameaça tornar-se rançosa.

O que mantém Capra entre os grandes é, entretanto, sua posição histórica. Por mais que os seus contos de fadas transfigurem-se sentimentalmente, eles preservam a credibilidade como filme a título de registro da realidade: como contos de fadas do New Deal e do antifascismo. Com a sua “mensagem de encorajamento”, ele pôde cantar o elogio do capitalismo e, ao mesmo tempo, “o elogio do homem que trabalha duro, do enganado, dos que nasceram pobres, dos golpeados”, pois na crise econômica mundial parecia haver uma espécie de auto-reconhecimento capitalista e, na figura de Franklin Delano Roosevelt, a esperança de uma renovação social. Se Capra viveu na pele o “sonho americano” de tornar-se um milionário depois de uma infância pobre como imigrante e o espelhou em seus heróis ingênuos, isso é porque ele queria justamente representar não o triunfo do dinheiro e do mercado sem peias, mas antes a contenção social da máquina capitalista. O New Deal inaugurou a época do keynesianismo e do deficit spending; e somente nesse clima político foi possível a Capra, em filmes como “O Galante Mr. Deeds” (1936) ou “A Mulher Faz o Homem” (1939), conduzir seu Parsifal vindo da província pelo mais profundo desespero até o final feliz de uma vitória sobre a maldade e a corrupção. A ingenuidade de seus contos de fadas estava marcada por uma campanha social de peso, com base na qual o filósofo alemão Jürgen Habermas, 30 anos depois, ainda podia acreditar que o capitalismo seria então fundamentalmente civilizado pelo Welfare State.

O caráter antifascista em Capra também era real e autêntico. Nesse sentido, ele pôde, da mesma forma, mobilizar com crédito a ingenuidade de suas afirmações críticas ou de suas críticas afirmativas, pois o capitalismo ocidental travava, de fato, uma luta ferrenha contra o pior rebento de sua própria lógica e queria evitar sua consequência última. Capra voltou as costas a Hollywood e alistou-se voluntariamente no exército americano para pôr seu potencial a serviço da coalizão anti-Hitler. Quando assistiu ao “Triunfo da Vontade”, de Leni Riefensthal, ele reconheceu nesse “filme horripilante” um “rasgo genial” de propaganda com uma mensagem “tão nua e brutal como um cano de chumbo”, no qual se anunciava o holocausto. Como contrapropaganda, o “coronel Capra” criou a série “Why We Fight (1942-45)”, cujo objetivo era utilizar como documento “o filme dos inimigos a fim de pôr em evidência suas metas escravistas. Os nossos jovens precisam de ouvir como os nazis e os japoneses anunciam aos berros as suas parvoíces sobre o domínio da raça — e os nossos combatentes perceberiam porque estão de uniforme”.

O fato de que, após a guerra, a carreira de Capra tenha brilhado apenas parcamente é algo que lhe permanece incompreensível, mesmo décadas mais tarde. É curioso como sua autobiografia torna-se mais fraca em termos literários e intelectuais à medida que ele se aproxima da descrição daquele tempo, como se a voz tivesse sido roubada ao contador de histórias. Súbito, a ingenuidade torna-se insípida e o ímpeto se paralisa. Parsifal perdeu a sua inocência. Contra a revolta da juventude nos anos 60 ele não faz senão esbravejar como um idoso conservador e vê “jovenzinhos parasitas e fumadores de haxixe”, difama os “invertidos e onanistas”, lança mão da linguagem preconceituosa contra “homossexuais, lésbicas e viciados” e pragueja contra os “protestos infantis com cartazes pueris” de “hordas sem coluna vertebral”. Mas Capra leva também a si mesmo a julgamento ao descrever o fracasso de seu último filme, “Dama por um Dia” (“Pocketful of Miracles”, 1961): “Para mim, a verdadeira causa foi profundamente pessoal e moral: alguém que possui o inacreditável poder de falar durante duas horas a centenas de milhares de seus compatriotas, e isso no escuro, não pode dizer mentiras. O que ele fala tem de sair diretamente de seu coração, e não de sua carteira”.

Na verdade, a época da moral capitalista havia passado, já que os recursos históricos do keynesianismo estavam esgotados. O mito de Kennedy já não tinha mais nenhum equivalente na sociedade real. O show de Clinton não pode hoje ser tomado sequer como caricatura do New Deal. Não foram as pessoas que se tornaram mais fracas, foi o desenvolvimento do capitalismo que fez os heróis perderem seu propósito. A crítica social desapareceu por completo de toda a arte pós-moderna, e as lágrimas do sentimentalismo só podem brotar para animais ou seres extraterrestres. Inversamente, o mal também não se deixa mais individualizar. “O malandro”, reclama o velho Frank Capra, “começou a transformar-se de pessoa em idéia, de estado de espírito em condição de vida”. Ou, igualmente, num ser extraterrestre. O estruturalismo alcançou Capra. Mas isso não é motivo para júbilo. Ele próprio já o pressentira: quando o kitsch social da crença hollywoodiana na bondade pessoal degradar-se definitivamente em ridículo e tornar-se tedioso, ou uma simples cena histórica de costumes, “as máscaras de canibais que as crianças põem no dia das bruxas irão revelar a realidade”. Tão tolos e malignos quanto o capitalismo ilimitado serão seus últimos contos de fadas.


Inclusão: 28/12/2019