Porque a União Européia pode se tornar uma 'ruína' nova em folha
Vê-se hoje em muitos países a desintegração estatal e monetária

Robert Kurz

17 de março de 1996


Primeira Edição: Folha de São Paulo, 1996, Tradução de José Marcos Macedo

Fonte: http://obeco-online.org/robertkurz.htm

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


A linguagem política utiliza muitas vezes conceitos que, como na utopia negativa ''1984'', de George Orwell, significam exatamente o contrário daquilo que parecem indicar.

Em toda a Europa, fala-se há muito sobre a integração européia. O antigo processo de autodilaceramento nacionalista do velho continente deve ser finalmente solucionado pela unidade européia, com a qual já sonhavam os filósofos do Iluminismo. Isso soa como música aos ouvidos. E há, de fato, a União Européia (UE), a Comissão Européia em Bruxelas, o Tribunal Europeu em Luxemburgo e outras instituições unitárias. Estamos, enfim, a caminho da integração?

Na verdade, o entusiasmo com a União Européia diminuiu ao sabor da conjuntura. O mais recente relatório da Comissão Européia demonstra que, nas últimas duas décadas, o crescimento médio na UE caiu de 4% para 2,5%, enquanto que os investimentos sofreram um decréscimo de 5%. Contra o pano de fundo da fragilidade econômica, as contradições da edificação européia tornam-se cada vez mais claras.

Os arquitetos da integração construíram uma ''ruína nova em folha''. Não há na Europa um poder político capaz de implementar sequer um único de seus planos. O resultado dos inúmeros compromissos assumiu a forma de um ser híbrido, que não é nem um sistema de relações bilaterais nem um verdadeiro Estado pan-europeu. A Comissão Européia não foi investida do status de governo, mas atua como uma espécie de governo paralelo, enquanto os ministros dos governos nacionais ainda existentes reúnem-se em conselho e raramente chegam a um acordo ou a decisões inequívocas.

Encontramos o mesmo problema ao nível da economia. De um lado, as antigas economias nacionais continuam vivas; de outro, porém, devem ser criadas instituições econômicas e político-financeiras comuns que ultrapassem a simples zona de livre comércio, como o Nafta ou o Mercosul. Isso vale sobretudo para a planejada instalação de uma moeda européia unitária.

''Ecu'' ou ''Euro''?

Em 10 de dezembro de 1991, foi assinado em Maastricht o acordo para criar uma união econômica e monetária européia. Esse acordo prevê que as moedas nacionais sejam substituídas pela moeda européia em três etapas, até no máximo 1º de janeiro de 1999. Mas, enquanto o desenhista rabisca os primeiros esboços da nova cédula, e ainda é questão controversa se o nome da moeda será ''Ecu'' ou ''Euro'', o projeto como um todo é posto em dúvida, sob todos os aspectos. O transtorno é grande; ninguém mais sabe ao certo quem é de fato contra ou a favor da empreitada.

Essa confusão foi causada pelos próprios autores do projeto. É uma contradição em termos um Banco Central ser criado como instituição político-financeira sem que os contornos de um poder político correspondente estejam delineados. A moeda européia seria a primeira moeda na história a não estar vinculada a um verdadeiro poder estatal.

A união política permanece fraca e ineficaz como fator de poder, mas mesmo assim deseja-se criar uma moeda comum. Isso é mais ou menos tão promissor quanto começar a construção de uma casa não pelas fundações, mas pelo telhado. A falta de um fundamento político indica a ausência correspondente de embasamento econômico.

As diferentes formas estatais de moeda como o dólar, o marco alemão etc. não são mais que ''nomes'' para designar um determinado nível da capacidade econômica nacional. Uma moeda representa, tanto em termos internos quanto externos, a potência real da economia de uma certa região delimitada pelo Estado. Isso só é possível quando os indicadores econômicos da região demarcada pela respectiva moeda situam-se aproximadamente no mesmo nível. Tais indicadores são sobretudo a produtividade, a provisão de capitais e o patamar salarial.

Em todo Estado onde se desenvolve uma desigualdade econômica muito acentuada, mais cedo ou mais tarde a base da economia nacional, a unidade do Estado e por fim a própria moeda comunitária são necessariamente postas em questão. A Iugoslávia é um exemplo clássico para ilustrar esse problema. Quando a disparidade econômica entre as repúblicas do Norte (Eslovênia e Croácia) e as repúblicas do Sul (Sérvia, Bósnia e Macedônia) tornaram-se muito grandes, o movimento separatista teve seu primeiro impulso e o Estado como um todo foi posto em xeque.

As repúblicas mais desenvolvidas do Norte não concordavam mais em compensar a disparidade e arcar com o ônus da perpétua repartição de rendas. Hoje, na região da antiga Iugoslávia, não há somente Estados diferentes, mas também diferentes moedas. O grande descompasso do nível econômico encontrou sua expressão política e monetária. A moeda não pode ostentar o mesmo nome para as diversas regiões economicamente devastadas; cada Estado possui agora um nome específico para sua própria moeda. E, evidentemente, o nome da moeda nas regiões com maior produtividade é (relativamente) ''melhor'', como por exemplo o tolar esloveno; o dinar sérvio, ao contrário, designa agora o nome ''ruim'' de uma moeda pobre e inflacionária.

Esse fenômeno da desintegração estatal e monetária é verificado hoje em muitos países. A razão é simples: o processo de racionalização e globalização, além de excluir e ''alijar'' um número cada vez maior de pessoas, faz com que essa questão seja traduzida também em termos de conflito regional.

De forma análoga à Iugoslávia, em muitos Estados já existe uma desigualdade econômica tradicional entre regiões contrastantes que só tende a aumentar com a recente evolução do mercado mundial. Na Itália, por exemplo, a Lega Nord representa o esforço de separação entre as regiões industriais do Norte e o modo de produção agrário do Sul; dizem até que o líder do movimento chegou a proclamar, em tom peremptório: ''A partir de Roma, para mim começa a África''.

Na China, do mesmo modo, há a ameaça de um conflito entre as províncias costeiras, nas quais se concentra a maior parte da indústria de bens para exportação, e as províncias do interior, cada vez mais atrasadas economicamente. Há um núcleo de racionalidade econômica nos movimentos ''étnicos'' e separatistas de cunho irracional que inundam atualmente o globo; o resultado não são apenas Estados cada vez menores, mas também um número cada vez maior de moedas, das quais grande parte é extremamente fraca.

A diferença das moedas constitui uma espécie de amortecedor ou válvula de segurança para compensar (ao menos em parte) a diferença de nível econômico. A moeda de um país com baixa produtividade diminui em seu valor quando contraposta à moeda de um país com alta produtividade e maior volume de capital. Através da taxa de câmbio, portanto, as exportações do país economicamente mais forte têm seus preços elevados, e as do país economicamente mais fraco seus preços reduzidos.

Isso permite que o país mais fraco, apesar da desigualdade econômica, mantenha-se apto à concorrência na exportação de produtos industriais. Ao mesmo tempo, seu mercado interno é parcialmente protegido contra a importação de mercadorias de países mais fortes. Tanto na produção para a exportação quanto na produção para o próprio mercado interno, a válvula de segurança da taxa de câmbio pode garantir os empregos nos países com baixa produtividade.

Mas também no sentido inverso a taxa de câmbio assume a função de uma válvula compensatória. Os salários nos países economicamente fracos são muito baixos. Surge então para os empresários de países com grande importe de capital e nível elevado de salários o estímulo de transferir os setores de produção cuja mão-de-obra é intensiva para os países onde os salários são menores.

Essa tendência é refreada, contudo, pelo fato de as moedas dos países com baixos salários sofrerem sucessivas desvalorizações em relação às moedas dos países economicamente mais fortes e com salários elevados. Para as empresas multinacionais, isso significa que o ganho com salários pode ser anulado com a perda na taxa de câmbio. Desse modo, a válvula da taxa de câmbio protege também uma parte dos empregos nos países com altos salários.

Tudo isso, obviamente, tem validade apenas relativa. A pressão da globalização é forte o bastante para ameaçar o funcionamento da taxa de câmbio. Mas pior ainda é quando essa válvula de segurança é destruída de caso pensado. Esse é justamente o caso da união monetária européia.

Dentro da UE, a disparidade econômica é grande. O produto interno bruto per capita, expresso em mil unidades da hipotética moeda européia, atingiu em 1994 a cifra de 21,2 na Alemanha, 19,6 na França, 14,7 na Itália e na Inglaterra, 7,7 na Grécia e 7,5 em Portugal.

Se países do Leste europeu como a Polônia, a República Tcheca e a Hungria vierem no futuro a se juntar ao grupo, a disparidade será ainda mais gritante. É um absurdo: ao passo que em várias partes do mundo o desequilíbrio econômico conduz ao esfacelamento de Estados e sua desintegração em diversas regiões monetárias, a UE — cuja existência política é uma incógnita — quer justamente impingir uma moeda comum a mais de uma dúzia de países com níveis de desenvolvimento econômico absolutamente diversos!

Um modelo negativo desse experimento foi a unificação das duas Alemanhas. A economia mais fraca da antiga República Democrática Alemã foi incorporada da noite para o dia ao marco alemão. Todos os custos e preços tiveram de ser designados pelo nome da moeda vinculada a um nível de produtividade essencialmente mais alto. Em poucos meses, toda a produção do setor oriental perdeu cerca de 80% de seu poder de concorrência, tanto na exportação quanto no próprio mercado interno. Milhões de empregos foram extintos.

Empresários ocidentais, por outro lado, transferiram parte da produção para a Alemanha Oriental, a fim de aproveitar os baixos salários e a subvenção do governo alemão. No cômputo final, ambos os países perderam receita e empregos, sendo a parte oriental a mais prejudicada. Para evitar uma catástrofe econômica, o governo foi obrigado a transferir desde então 150 bilhões de marcos por ano à Alemanha Oriental e onerar com esse saldo os mercados nacional e internacional.

E agora querem transpor esse modelo para toda a Europa! A moeda européia deve ser pelo menos tão estável quanto o marco alemão. Isso significa que a nova moeda terá de refletir um nível econômico que a maioria dos países membros não possui. Qual seria a consequência? O mesmo problema que surgiu na moeda alemã com a incorporação da economia do Leste seria repetido ao nível da União Européia como um todo. A questão seria ainda mais delicada, pois a capacidade econômica de, por exemplo, Irlanda, Portugal ou Grécia está abaixo do nível da antiga Alemanha Oriental. Grande parte da economia européia teria sua existência ameaçada.

Para evitar revoltas nas várias regiões em apuros, a Comissão Européia teria de distribuir verbas numa proporção inimaginável. A emissão de créditos, além de sobrecarregar os mercados financeiros do mundo, desestabilizaria a própria política monetária de um Banco Central europeu e enfraqueceria rapidamente a nova moeda. Mesmo na Alemanha, uma política que quer implementar a estabilidade das finanças e ao mesmo tempo promover a integração de duas regiões com níveis econômicos inteiramente diversos, só pode conduzir ao absurdo.

Só Luxemburgo Ambos intentos, simultaneamente, são impossíveis. Prova disso é que nem mesmo a Alemanha, graças aos custos de sua unificação, preenche mais os ''critérios de estabilidade'' exigidos pela moeda européia. Tais critérios restringem a contração anual de dívidas a 3% e o total das dívidas a 60% do PIB. Em 1995, com um montante de dívidas de 3,6%, a Alemanha não cumpriu nem cumprirá o acordo nos próximos anos. Eis aqui a ironia: com exceção do minúsculo grão-ducado de Luxemburgo, nenhum país é capaz de preencher hoje em dia os quesitos de estabilidade impostos pela UE.

Quem se interessa por um experimento tão arriscado quanto a união monetária européia? Em primeiro lugar, a casta política que, como o chanceler alemão, é economicamente ignorante, mas tem pretensões históricas e espalha aos quatro ventos que os números comprovam sua tese.

Em segundo lugar, os ''global players'' das grandes empresas, que esperam talvez, com ajuda da moeda européia, aproveitar todas as vantagens de custo sem o empecilho da taxa de câmbio, a fim de somar esforços contra a concorrência do mercado mundial. Sua opção portanto seria nada menos que uma ''fortaleza Europa'' — nova etapa da ''globalização voltada para dentro'', à custa de uma segregação econômica e social ainda maior nos limites da UE.

Evidentemente, não está claro ao empresariado que seria necessária uma ditadura militar européia para fazer valer essa opção. A instância politicamente fraca da Comissão Européia jamais estará em condições de manobrar uma grave crise econômica, social ou financeira como a que será desencadeada pela moeda européia. Os governos nacionais, porém, têm de afirmar sua presença diante dos eleitores. Como reação das massas a uma crise européia, é de se temer uma nova onda irracional do antigo nacionalismo. O sonho da integração européia ou bem permanece estéril no solo da economia de mercado ou então transforma-se em pesadelo.

E agora entendemos por que a linguagem política da união econômica e monetária européia só pode ser uma linguagem orwelliana: ''estabilidade'' significa desestabilização e ''integração'' significa desintegração. Como nesse meio tempo muitos darão por conta do perigo, tudo indica que o nascimento da moeda européia será na verdade um aborto.


Inclusão: 20/12/2019