Com todo o vapor ao Colapso

Robert Kurz

1995


Primeira Edição: "Mit Volldampf in den Kollaps" in: IG-Rote Fabrik / Zürich (ed.). Krise — welche Krise?. Berlim–Amesterdam, Edition ID-Archiv, 1995, pp.37-64. Conferência oral; escrito revisado por Kari-Anne Mey. Tradução: Heinz Dieter Heidemann, com colaboração de Carlos Toledo e Cláudio R. Duarte

Fonte: http://obeco-online.org/robertkurz.htm

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Vivemos hoje uma situação muito estranha. Nunca na história da modernização — nos últimos duzentos, trezentos anos — deu-se a situação de uma crise social mundial que erigisse um tal potencial de devastação ecológica e alcançasse tanta destruição e abandono cultural, até a tendência na direção de uma nova barbárie.

E o estranho e paradoxal é que ao mesmo tempo, nestes últimos trezentos anos, a crítica social nunca esteve tão fortemente desarmada como hoje. Este paradoxo precisa ser explicado, já que o mundo nunca foi tão digno de crítica como hoje. É fácil obter a razão superficial desta contradição: pode-se colocá-la no contexto do colapso do Socialismo de Estado do leste europeu. Nas últimas décadas aquela teoria que formava o centro da crítica social do mundo ocidental, a saber, o marxismo, foi fortemente maculada por aquele Socialismo de Estado. Mesmo aqueles pensadores que no ocidente mantinham uma relação crítica com a União Soviética ou a China ainda ligavam-se, em suas argumentações básicas, embora de modo subterrâneo, com este Socialismo de Estado. A conseqüência é que todos nós, de certo modo, perdemos a fala.

O problema aqui contido só pode ser compreendido com a ampliação do quadro referencial, enfocando períodos anteriores ao assim chamado conflito de sistemas, estabelecido depois da 2ª Guerra Mundial. O Ocidente foi o vencedor no conflito dos sistemas, mas se ampliarmos o período em perspectiva e levarmos em consideração os últimos duzentos ou trezentos anos, podemos ironicamente constatar que o Socialismo de Estado entrou em colapso quase no momento das comemorações de duzentos anos da Revolução Francesa.

No curto período pós-2ª Guerra, parecia entretanto óbvio que com o fim do Socialismo de Estado do Oeste qualquer alternativa pós-capitalista teria chegado ao fim. E isso deveria ser para todo o futuro, caso nós quisermos dar crédito ao belo discurso do fim da história do Sr. Fukuyama e outros. Nesta perspectiva, tudo o que está sendo formulado como crítica só pode colocar-se dentro do quadro referencial da Ordem ocidental democrática e de economia de mercado.

Um quadro referencial ampliado, porém, leva-nos a uma reflexão totalmente diferente: foram atingidas pela crise as bases comuns de uma história de modernização de duzentos anos ou mais. Aqui trata-se de uma crise comum ao ocidente e ao leste europeu, que não surge simplesmente do conflito de sistemas e seus critérios, mas que vem de muito mais fundo. Por um lado, pode ser consolador para alguns críticos da sociedade e do capitalismo que, apesar de o capitalismo ter sobrevivido, ele será a próxima vítima. Por outro, é igualmente doloroso, pois significa que a crítica social feita até agora, o marxismo — pelo menos como ele foi entendido até este momento, tal como existia na consciência comum e teórica — e as formações sociais ligadas a ele, era parte da história da modernização e, por conseguinte, parte daquilo que agora entra conjuntamente em crise.

Gostaria de tentar redefinir este problema. Em geral, associava-se o problema do Socialismo de Estado ao conceito de "industrialização retardatária". Mas essa redução implica em procurar o problema só no nível quase técnico da industrialização e seus custos, sem partir das determinações das formas sociais. Do ponto de vista capitalista moderno, a industrialização retardatária só poderia ser um problema das regiões relativamente atrasadas — Rússia, China, o assim chamado Terceiro Mundo, as regiões pós-coloniais. Em nenhum destes lugares existia o problema da superação da sociedade capitalista — pois o que não existe logicamente não pode ser superado –, ao contrário: eram repetidas, de um modo específico, formas que nós já conhecíamos no ocidente há cento e cinqüenta, duzentos anos atrás. Refiro-me aos sistemas econômicos estatais do mercantilismo dos séculos 17 e 18. Encontramos ali muitas coisas que existiam também no Socialismo de Estado: monopólio do comércio exterior, fixação estatal de preços, propriedade estatal dos meios de produção mais avançados (que na época eram as manufaturas). Não é nada totalmente novo, o fato é que apenas aconteceu no ocidente muito antes e já foi esquecido. Nesse sentido repetiu-se o desenvolvimento ocidental, inclusive suas formas revolucionárias.

Deste ponto de vista, a famosa Revolução de Outubro foi a retomada da Revolução Francesa no leste europeu. E também os movimentos de libertação nacional posteriores, a revolução na China e revoluções semelhantes foram, por assim dizer, a imitação ou o resgate retardatário daquilo que no ocidente foi a Revolução Francesa, inclusive as bandeiras, as barricadas, a luta armada e tudo que soa à mitologia. Obviamente isto significa para a esquerda ocidental o reconhecimento amargo de que ela sofria, de certa forma, de uma ilusão de ótica. Não que os fatos não tivessem sentido — é uma abordagem questionável querer julgar processos e desenvolvimentos históricos como certos ou errados ou até como bons ou maus — são formações de época nas quais apareceram atores sob condições determinadas. Eles não podiam saltar sobre suas próprias sombras, assim como nós hoje também não poderemos saltar sobre as nossas. Porém, as nossas sombras são outras, pois passaram-se oitenta ou cem anos e podemos olhar a história passada como se fosse uma gigantesca paisagem de ruínas. Assim, trata-se no fundo de uma história de modernização conjunta que produziu os assim chamados conflitos de sistema, determinados muito mais pela não-simultaneidade histórica das diversas regiões mundiais do que por conteúdos pós-capitalistas diferentes.

Isso não é uma condenação da história, ao contrário, eu gostaria de demonstrar o caráter da crise atual como uma crise conjunta do sistema mundial contemporâneo unificado.

Já se falava antes do colapso do Socialismo de Estado que também o ocidente estaria em crise. Desde o início dos anos 80 surgiu também no ocidente a palavra-chave "crise da sociedade do trabalho". Lembro-me muito bem como foi preocupante quando na Alemanha, no início da década de 80, o desemprego ultrapassou pela primeira vez o limite de um milhão de pessoas. Hoje esta cifra seria uma notícia de sucesso; na época temia-se, e até se falava que o leste europeu poderia ser a melhor alternativa de sistema. Esta perspectiva ainda era admitida naquela época. E então aconteceu o grande colapso. Todo o sistema do leste europeu se desfez em pó como uma múmia, e na seqüência a própria crise ocidental foi reprimida e esquecida, apesar dos processos sociais ligados ao desemprego em massa e nova pobreza ainda existentes. Dez anos antes, em grande parte do Terceiro Mundo, economias nacionais inteiras entraram em colapso. Na época iniciou-se a miséria africana e na América Latina começaram as hiperinflações e a desindustrialização. No final dos anos 80 falava-se da década perdida. Assim, primeiro a crise foi reprimida e o colapso do pretenso sistema opositor foi utilizado na ocasião para sustentar o auto-engano.

A isto ligava-se a expectativa de que com a abertura do leste europeu poderiam se estabelecer novos e maravilhosos mercados e um novo impulso de acumulação de capital como após o fim da 2ª Guerra, ou seja, esperava-se poder resolver a crise do Ocidente justamente com o colapso do leste europeu. Hoje, meia década depois, estas ilusões revelam-se cada vez mais claramente como miragens e podem ser descartadas. Ao contrário: não só a crise volta ao ocidente (de onde na verdade nunca saiu), mas sua dimensão é cada vez mais clara. Os processos retardatários dos colapsos no leste europeu alcançam o ocidente pouco a pouco, isto é, chegam à ordem ocidental problemas oriundos das regiões de colapso. Isso pode ser abordado em várias direções.

Um aspecto da crise no leste europeu é certamente ela ter gerado "fluxos de refugiados", imigrações de trabalho, novas formas de criminalidade em massa — até então tínhamos máfia só no Sul, agora também a temos na Europa de leste — o que, entre outras coisas, é ocasião para reações racistas na população ocidental, em especial na população alemã. São manifestações desta crise que continuarão a persistir. Para isso, é essencial que a esperança nos novos mercados não tenha se cumprido, e que, quão paradoxal isto possa soar do ponto de vista da velha crítica do capitalismo, o capital ocidental não tenha sido capaz de explorar as massas gigantescas do leste europeu. De qualquer maneira, não se realizaram até agora os grandes fluxos de investimentos no leste europeu. Também não existem tendências reconhecíveis ou intenções reais de anexar de outra maneira estas regiões enormes e, por assim dizer, indefesas. Elas representam uma espécie de terra arrasada da economia de mercado ou da modernização, e no fundo o ocidente não sabe o que deve fazer com isto. De novo o leste provoca medo, talvez ainda mais do que nos tempos da antiga União Soviética, pois trata-se de uma região gigantesca, altamente armada, equipada com bombas atômicas, que cria figuras totalmente incontroláveis e muito menos previsíveis que o bom e velho Brejnev.

Agora, no que diz respeito à crise em comum, chega-nos através de uma bela manchete dos jornais em relação à reunificação alemã: em vez de prosperidade no leste europeu, recessão no ocidente. Este resultado está relacionado à conjuntura recessiva dos últimos dois anos. Agora cria-se de novo esperança na revitalização da conjuntura, mas mesmo os comentaristas oficiais deixam transparecer que essa recuperação pode ainda demorar — ao menos não é previsível um boom secular que pudesse reverter a crise atual.

Isso tem algo a ver com o fato de não tratar-se de um puro movimento cíclico. O ciclo normal, por assim dizer, do movimento capitalista, é recoberto por um outro problema, muitas vezes chamado de crise estrutural. Por isso, fala-se hoje já em desemprego estrutural em massa e não apenas em desemprego cíclico. Isto quer dizer que as cifras do desemprego não se reduzem na fase de recuperação cíclica da conjuntura, mas ao contrário, elas ainda se ampliam.

Nunca houve na história da modernização algo assim. O desemprego em massa (se é que existiu na grande crise mundial de 1929) era um fenômeno cíclico que também foi reduzido com a recuperação conjuntural cíclica. Marx chamava isso de "exército industrial de reserva". Os desempregados foram considerados apenas como exército de reserva para a próxima recuperação conjuntural e assim ficavam à disposição para a reabsorção como força de trabalho no movimento de valorização do capital. Isso parece que acabou. De ciclo para ciclo, e totalmente independente de seus altos e baixos, aumentou o desemprego natural. Já mencionei que na República Federal da Alemanha falar de um desemprego de "apenas" um milhão de pessoas seria um ótimo resultado, hoje já são quatro milhões. O desemprego em massa seria muito maior se nós considerarmos as diversas medidas amortecedoras — aposentadorias prévias, medidas de política social do Ministério do Trabalho — e os truques estatísticos. Essa maquiagem do desemprego em massa com ajuda de truques estatísticos é comum em todos os países que ainda se utilizam de estatísticas de desemprego. Na República Federal da Alemanha esta maquiagem pode ser vista pela mudança na apresentação do índice que, até alguns anos atrás, ainda era feita em relação ao número total de empregados, isto é, de assalariados. Entrementes, já se faz a relação com o número total da população economicamente ativa, incluindo todos os autônomos, os empresários e a força de trabalho de família integrada para embelezar a estatística. Estes são apenas exemplos; os truques mudam de Estado para Estado, de país para país, mas são aplicados.

O crescente desemprego de base é, assim, independente de ciclo, não é só um fenômeno alemão ou da Europa central, mas um fenômeno global. Na primavera de 94 a Organização Internacional do Trabalho em Genebra publicou uma análise indicando que 30% da população apta para o trabalho está de fato sem emprego. Nessa análise crítica, alguns dos truques mencionados foram revelados; este número se aproxima mais da verdade que as estatísticas oficiais e sobrepuja o desemprego da crise mundial de 1929/33. Antes de tudo, deve-se lembrar que aquela crise mundial, apesar de seu nome, não teve conseqüências globais como o atual desemprego estrutural em massa. Pode-se de fato falar em uma verdadeira crise da sociedade do trabalho. Nisto, existem duas coisas estranhas: a primeira, é que todas as ideologias de modernização, inclusive o marxismo e o liberalismo, compreendem o trabalho como um fundamento ontológico ou antropológico. Assume-se que o homem, desde que existe, "tem trabalhado", e o trabalho aparece como algo fora da história. Se se fala agora em uma crise da sociedade do trabalho, contradiz-se a própria ideologia de base segundo a qual o trabalho é algo que diferencia o homem do animal. E então, naturalmente, o trabalho nunca poderia entrar em crise.

A contradição se revela no fato de que a relação que entra em crise até agora não foi analisada como histórica, isto é, como algo que possui um vir-a-ser e desaparecimento, mas como fundamento humano por excelência. Não se trata daquilo que Marx denominou de metabolismo com a natureza, que é insuperável, enquanto os homens existirem. Hoje parece, ao contrário, que entra em crise o processo de transformação do trabalho em dinheiro, o que Marx chamava de trabalho abstrato, isto é, o dispêndio de cérebro, nervos, músculos na forma social de dinheiro, e assim, a reprodução do homem no contexto de trabalho-dinheiro-consumo de mercadorias — essa conexão do trabalho com o dinheiro é histórica e de forma alguma supra-histórica.

O segundo fato que parece paradoxal é que quando se falava antigamente de uma crise potencial ou de uma crise futura do capitalismo, falava-se da crise de valorização do dinheiro. Isto está totalmente fora de cogitação, parece que o capital não está em crise, apenas o trabalho. Isto é um paradoxo porque os dois são pólos de uma só e mesma relação. É tão impossível ao trabalho, o abstractum da modernidade, emancipar-se do capital e poder continuar sozinho a trabalhar para si, tal como era representado na religião de Estado no leste europeu ou também na visão fundamental do marxismo, quanto é impossível que o trabalho por si entre sozinho em crise e o capital continue a acumular. Acreditaria antes no dogma católico da transubstanciação ou em Virgem Maria que na possibilidade de valorização do capital sem o uso da força de trabalho abstrato, puramente como multiplicação de dinheiro. Aqui alguma coisa está errada. E quero agora ver isso mais de perto. Gostaria de delinear a análise desta crise em comum a partir de quatro palavras-chave: 1. Racionalização; 2. Globalização; 3. Terciarização; 4. Ficcionalização.

1. Racionalização

O que parece ser o cerne da crise é, no mais amplo sentido, a racionalização. Dela faz parte a automatização de processos de produção, redução de linhas organizacionais, portanto, aquela racionalização organizacional pela qual se racionaliza e elimina tão fortemente a força de trabalho em todo o território; isto causa um aumento de produtividade em tal medida que ultrapassa a capacidade de absorção de trabalho vivo pelo capital em sua valorização, nos processos de produção empresariais. Esta constatação enfrenta a crítica de economistas de todas as orientações. Aumento da produtividade, dizem eles, significa também ampliação dos mercados e, assim, mais cedo ou mais tarde, a superação da crise, portanto, nova prosperidade e em algum momento a redução do desemprego em massa.

Bem, penso que também essa argumentação se baseia em uma ilusão de ótica. Ela apenas considera a racionalização até o início da revolução micro-eletrônica, pressupondo que tudo continua da mesma velha maneira. Para a época chamada fordista, isto é, mais ou menos entre a 1ª Guerra Mundial e o final da década de 70, a racionalização — que somente nesta época se tornou uma palavra-chave — realmente levava à ampliação do mercado e à absorção de pessoas pelos mercados de trabalho, pelo menos a médio e longo prazo. Por quê? Podemos apresentar isso facilmente na pessoa do próprio mister Henry Ford. Ford, como sabemos, aplicou os métodos de racionalização da nova ciência do trabalho, inventado neste período pelo engenheiro Frederick Taylor. Esses métodos foram cada vez mais sofisticados. Por exemplo, na Alemanha, desde a década de 20, existe uma "Curadoria de Racionalização da Economia Alemã", que cuida desses processos. Ford utilizou, como primeiro empresário, os métodos de racionalização de Taylor e iniciou, assim, um método de trabalho ao qual os executivos capitalistas até então não haviam prestado a devida atenção. Os empresários descobriram que nas suas fábricas existiam espaços livres para a racionalização com métodos científicos, podendo assim evitar desperdícios de tempo e dinheiro - time is money.

Em vez de deixar a organização do processo de trabalho na mão dos mestres e encarregados, como havia sido feito até este momento, começaram a utilizar os famosos cronômetros, analisando cientificamente cada seqüência de eventos nos mínimos detalhes.

Essa foi a primeira inovação. A outra, como sabemos, foi a esteira. Esta invenção não veio contudo de Ford, mas foi, de modo característico, copiada dos matadouros de Chicago. Depois do abate, os pedaços dos bois e dos porcos eram distribuídos em esteiras, e esse processo (a esteira, não o abate) foi aplicado à força de trabalho humana, tal como Charlie Chaplin caricaturou maravilhosamente em seu filme "Tempos Modernos".

O que Henry Ford conseguiu com isso? Isso pode ser expresso por uma simples cifra. Até pouco antes da 1ª Guerra Mundial uma fábrica automobilística produzia entre 6 a 10 mil automóveis por ano. Isso já era feito em grandes galpões de fábrica, mas de uma maneira artesanal e não racionalizada. Qual foi então o ganho de racionalização de Ford com esses seus novos métodos? O número é certamente impressionante. Foi impressionante na época e continua a ser hoje. No ano comercial de 1914 — os EUA ainda não tinham entrado na guerra — foram produzidos 248 mil automóveis. Isso teve o efeito de uma bomba, o mundo todo tomou um susto, a figura de Henry Ford tornou-se famosíssima em todos os cantos do mundo, os mais diversos teóricos e analistas logo falaram em "fordismo". Era uma nova onda, não apenas uma nova moda, mas o futuro do capitalismo, da economia de mercado e da produção industrial em geral.

Ninguém menos do que Lênin interessava-se ardentemente pelos métodos fordistas e dizia: nós precisamos adotar este último grito da ciência, da tecnologia e da racionalização ocidentais. Porque agora essa racionalização como tal não levava à crise, mas, a longo prazo (incluindo o boom da 2ª Guerra Mundial), ao seu oposto ? Para a produção de cada automóvel a racionalização significava a economia massiva de tempo. Mas a força de trabalho humano, dessa maneira, não foi racionalizada para desaparecer, mas antes a sua própria execução foi por assim dizer racionalizada. Charlie Chaplin utilizava-se dos movimentos manuais robotizados dos trabalhadores da esteira para criar um conceito imagético. E esse enorme salto que a racionalização permitiu em nome da produtividade levou a uma ampliação da produção tão forte que se necessitava não de menos, mas de mais trabalhadores. Isso não teria sido possível se o automóvel, ao mesmo tempo, não tivesse dessa maneira ficado muito mais barato. Este foi o trunfo mais forte de Henry Ford: possibilitar a seus trabalhadores serem proprietários de um carro; isso naquela época parecia revolucionário, porque até então o automóvel era um objeto quase de luxo para os playboys. Com o método de produção de Henry Ford o automóvel se tornou extremamente mais barato e um artigo de consumo de massas.

Isto na época era sensacional. Sabemos, hoje que o princípio do trabalho abstrato na economia de mercado em sua forma fordista também levou a acontecimentos catastróficos, com conseqüências destrutivas, tais como as do turismo e do consumo de massas.

Esse impulso gigantesco causado pela racionalização da força de trabalho humano em sua execução, ao lado da ampliação monstruosa da produção e do barateamento dos produtos, se realizou em diversas ondas, mas não conseguiu evitar a crise econômica mundial; a maioria dos países não estava preparada para isso. Todavia tratava-se do início de uma nova era que nos EUA se iniciou antes da 2ª Guerra Mundial. Falava-se de um novo modo de vida, que Ford denominou — e isso hoje soa cínico — modo de vida racionalizado.

Este processo não diz respeito somente à indústria automobilística, logo outras indústrias se apropriaram dos novos métodos, a indústria de eletrodomésticos e de entretenimentos eletrônicos, a indústria de alimentos, a distribuição de alimentos e de utilidades domésticas, o que hoje tem como conseqüência a eliminação das pequenas mercearias pelos grandes supermercados. Também a mecanização e industrialização da agricultura foi fortemente impulsionada: não só os carros ficaram mais baratos mas também os tratores; aliás Henry Ford desenvolveu um trator barato e robusto que fazia quase tanto sucesso quanto seus automóveis.

Tudo isso trouxe consigo uma mudança profunda. Não era apenas o modo de vida fordista que passava por um processo de difusão geral, mas pela primeira vez massas gigantescas de força de trabalho humana entravam no cálculo de rentabilidade desse processo de valorização da economia de mercado. Muitas vezes se esquece que até meados do século 20 o sistema capitalista foi permeado por inúmeros setores de economia doméstica e agrícola pequenos produtores não-capitalistas de mercadorias. Só com a racionalização essa lógica de economia empresarial, com a utilização abstrata do homem e da natureza, pôde cobrir todo o território com sua enorme capacidade de absorção. Um sociólogo de Munique, Burkart Lutz, fez o cálculo que esta racionalização teria significado, somente para a velha República Federal da Alemanha, de 8 a 10 milhões de novos postos de trabalho. Assim, foram integrados nos processos de trabalho, sem grandes complicações, os fluxos de refugiados do leste europeu em seguida à 2ª Guerra Mundial. Depois da década de 60, este mesmo processo de trabalho exigiu a participação dos assim chamados trabalhadores hóspedes do mediterrâneo, migrantes do sul.

Por que a racionalização de hoje é exatamente o oposto disso ? Isto pode ser facilmente explicado. Com a ajuda da nova tecnologia micro-eletrônica a lacuna que o trabalhador humano ainda ocupava no sistema altamente racionalizado do fordismo, em que ele ou ela assumia por assim dizer a tarefa de um robô chapliniano, esta lacuna será preenchida com os novos potenciais de automatização e comando. E não só isso: sabemos que se galgou um novo degrau da racionalização organizacional sob o lema da lean production (produção enxuta). Com a lean production, com a ajuda do computador e da micro-eletrônica, racionalizam-se e desaparecem muitas etapas. Todo o processo é visto como um processo geral unitário — na construção já está incluída o planejamento e a distribuição, o que leva à eliminação de atritos até então inevitáveis. Entre outras coisas, isso significa que até parcelas dos próprios executivos foram racionalizados. Somente nos níveis intermediários da administração da indústria automobilística alemã foram desempregados 40 mil pessoas nos últimos dois anos.

Aqui chega-se a um limite absoluto. Pois este processo continua, e estamos hoje apenas em seu início. Depois de racionalizar eliminando 5 milhões de empregos, iniciam-se, de ano em ano, campanhas do tipo "o ser humano no centro", criando-se 30 mil novos postos de trabalho, afirmando-os como altamente qualificados e especialmente humanizados. E logo depois aparece a nova onda de racionalização. Aliás, a próxima já está batendo à porta, basta que se leia a imprensa econômica e suas análises. Já existem novos potenciais de miniaturização que implicam possibilidades de racionalização até então consideradas impossíveis. A cibernética e a informática chamam isso de "a mão na caixa". Não é mais necessário pôr em ordem todos os instrumentos de trabalho, o robô pode ser programado para retirar corretamente as peças de uma caixa que não necessita estar previamente organizada. Esse desenvolvimento não se restringe à indústria, mas se amplia também a outros setores: por exemplo, ao setor de serviços, ao setor bancário e o de seguros. Entre outras, este processo tem como conseqüência que a clientela deve se servir ela mesma. As nossas "Caixas Econômicas" (Sparkasse), por exemplo, já não mandam mais os extratos para sua casa, o próprio cliente tira seu saldo no caixa automático — o que há alguns anos atrás era totalmente impossível, isso ainda demandava trabalho. Mas se esse desenvolvimento continuar assim, o desemprego estrutural em massa nunca mais poderá ser invertido com um boom a la fordismo. O desemprego em massa se ampliará sem parar. Em algum momento chegaremos ao limite crítico e as redes sociais se romperão. Como financiar as redes sociais, quando o Estado que hoje ainda tem possibilidades de arrecadação passar a não ter mais? A relação trabalho/renda monetária/consumo de mercadorias será posta em questão com o rompimento das redes sociais, sem falar em outras razões como por exemplo as razões ecológicas, que põem tudo em questão.

2. Globalização

Esta palavra-chave representa a globalização dos mercados e a produção de um capital mundial imediato. Esse desenvolvimento também é novo e baseia-se nas novas forças produtivas da micro-eletrônica. Tal desenvolvimento permite buscar os mercados do mundo inteiro através dos satélites, que revela os novos potenciais de comunicação e de comando. Por isso, este processo não pode ser encarado como as tradicionais relações exteriores de importação e exportação entre economias nacionais coerentes. Esses novos potenciais permitem perpassar ao processo capitalista as tradicionais economias nacionais; rompe-se a coerência da economia nacional tradicional. Gostaria de ilustrar isto através de um simples exemplo que pode ser potencializado para os setores centrais da indústria e dos serviços. Um escritor de Berlin Oriental me contou que uma pequena revista de cultura e teatro que deveria ser extinta pela Treuhandanstalt(1) porque as assinaturas de alguns milhares de pessoas não parecia ser rentável. Todavia, encontraram um editor inglês para o mesmo número de assinaturas. A sua receita de rentabilidade era a seguinte: mandou imprimir a revista em Cingapura, fez a distribuição a partir do Caribe, onde os gastos postais são inferiores. Isto é, continua a ser uma revista cultural alemã para um pequeno grupo de assinantes da Alemanha Oriental, impressa em Cingapura por um editor inglês, distribuída pelo Caribe, e mesmo assim é rentável.

Agora podemos imaginar como isso é rentável para os fornecedores da indústria automobilística e eletrônica. Nos últimos 10 a 15 anos, o comércio mundial aumentou mais do que a produção. Isto é um fenômeno que pode ser estranho à primeira vista, mas que pode ser explicado pela globalização. Pois muitas coisas que por seu lado puramente formal aparecem como importação e exportação de algumas nações são há muito tempo, na realidade, parte de uma divisão internacional de trabalho na própria produção. Isto significa que essa produção internacionalizada ultrapassa as fronteiras da economia nacional. Vê-se há tempos também no setor dos mercados financeiros que os bancos nacionais não possuem mais controle sobre seu próprio dinheiro, que está vagabundeando pelas zonas extraterritoriais do mundo. Assim, por exemplo, são oferecidos créditos em marcos alemães, francos, dólares e ienes sem qualquer controle dos respectivos bancos centrais, representando assim processos de criação de dinheiro fora dos mecanismos de controle tradicionais. Isto pode ser ilustrado ainda mais: no final de 1994, por exemplo, a empresa modelo das instituições financeiras alemãs, o Deutsche Bank, transferiu ostensivamente o seu setor de investimentos para Londres. Este fato resultou em uma grande gritaria e até o Banco Central alemão falou de uma postura desleal. Precisamos perguntar em que se baseia este conceito de lealdade. Parece que ele ainda se baseia na antiga economia nacional.

Uma parte da esquerda, que ainda pensa nas antigas categorias do imperialismo partindo de uma coerência nacional em que os executivos do mercado mundial, a classe política ou pelo menos as equipes de liderança ainda possuem uma estratégia em comum, tal como na 1ª Guerra Mundial, está num beco sem saída. Esta interpretação tornou-se um anacronismo, porém de um modo ruim: o próprio processo capitalista ultrapassa as fronteiras das economias nacionais, acentuando, assim, a crise da sociedade do trabalho com a internacionalização dos mercados de trabalho. Mas a internacionalização é possível somente para o capital: ele pode ir onde a força de trabalho é mais barata, mas também pode retirar rapidamente sua tenda, como no caso da indústria têxtil alemã: todos os postos de trabalho produtivos foram removidos para o sudeste asiático ou para a Europa meridional, e agora atingido o grau elevado de racionalização, compensa lucrativamente transferir de volta a produção. Só que agora não voltam os postos de trabalho, mas uma produção intensamente automatizada.

Estes processos avançam cada vez mais e sem nenhuma segurança. A administração tenta por meio de global outsourcing transferir todas as atividades para qualquer lugar do mundo onde existam mercados, créditos, força de trabalho, impostos ou qualquer coisa favorável à rentabilidade. Assim, despedem-se da lealdade da economia nacional e também dos processos sociais.

Há pessoas que tentam explicar isso com o conceito de nivelamento, que superaria a divisão econômica nacional entre países ricos e pobres. Existe ainda uma espécie de silhueta do Primeiro, Segundo e Terceiro Mundos, mas em grandes traços essa divisão está aos poucos nivelando-se; o Primeiro e o Terceiro Mundo estão em todos os lugares. Em Gelsenkirchen encontramos o Primeiro Mundo ao lado do Terceiro Mundo; na Bulgária e na Índia encontramos produtores de softwares competitivos, o Brasil exporta com êxito aviões militares e produtos químicos — sem falar do sudeste asiático –, mas logo ao lado começa a favela. Este é um mundo que segue o princípio da "auto-semelhança", como poderíamos definir quase ironicamente, conforme o princípio da Teoria do Caos. As microestruturas correspondem à macroestrutura, existindo as assim chamadas ilhas de produtividade em cada cidade, cada bairro, cada país, em breve, em cada região do mundo, que sempre ainda podem produzir para o mercado mundial — e ao lado a favelização. Isto é obviamente o retrato de um só momento, o processo da crise ainda continuará.

3. Terciarização

Com este termo referimo-nos à esperança de que a crise estrutural só atinja o setor industrial e que a ocupação possa ser transferida para o setor terciário, que, então, também deveria ser suporte da acumulação de capital. Em relação às esperanças neste setor somente uma observação: não me parece oferecer nenhuma resposta ao problema, e isto devido ao caráter deste setor. Os serviços comerciais em parte não representam um setor autônomo da acumulação capitalista, mas são desde sempre, apesar da independência formal, capitalisticamente improdutivos e precisam ser alimentados pela mais-valia industrial. Marx demonstrou isso para o setor de comércio e dos bancos.

A indústria do tempo livre e do turismo, por sua vez, é puro luxo dos ainda-vencedores do mercado mundial. A maioria da população mundial, principalmente dos países de salários baixos e das regiões já desconectadas, não faz turismo. Como fenômeno de massas, o turismo depende do salário em massa da indústria dos poucos países centrais. Se estas rendas reduzem-se rapidamente, o turismo em massas entra em colapso, assim como os processos de distribuição que nele se baseiam de norte a sul, tanto na Europa quanto em nível global. Agora temos uma espécie de turismo de crise, não só pelos danos intensivos por ele provocados, mas também pelo fato de que as pessoas já rebaixam a sua qualidade de alimentação para poderem permitir-se um certo padrão durante as férias. Isto vai explodir nos próximos anos se não surgir um novo boom industrial, o que porém não é de se esperar.

Particularmente mal vão grande parte dos serviços estatais: a assim chamada infra-estrutura, da canalização dos esgotos às universidades. Tudo isso não é produção de mercadorias para o mercado, mas trata-se de condições gerais para o conjunto da sociedade, que não pode funcionar segundo as leis de oferta e demanda. Esses setores cresceram no processo capitalista de cientificização, mas apenas apontam para mais uma contradição do sistema. Do ponto de vista do sistema, isto não é produção, mas consumo; e por isso o Estado precisa garanti-los, pois é consumo público. O que aponta para problemas de financiamento sem solução a longo prazo; a isso vou me referir a seguir.

Os setores de infra-estrutura são quase todos deficitários crônicos, mas isso subjaz justamente em seu próprio caráter, e não ao fato de o Estado empreendê-los. Os neoliberais não podem ser tão bobos a ponto de não reconhecerem isto, imaginando que tudo o que o Estado faz é apenas uma falha ideológica e que, através da privatização, estes setores poderiam se transformar em campos de acumulação de capital. Mas a execução privada da infra-estrutura também não acumula nenhum capital, mas se alimenta da mais-valia industrial, trata-se apenas da redistribuição interna do capital como um todo. E antes de tudo: se esses setores, improdutivos em relação ao capital conjunto, deveriam tornar-se lucrativos enquanto empreendimentos privados, então, para tanto precisariam eliminar ou desativar tudo que funciona apenas de forma deficitária; isso significaria no fim das contas que o setor de infra-estrutura não poderia mais cumprir seu papel e, como tal, entraria em colapso.

O setor terciário não é, portanto, nenhuma possibilidade de desvio, mas sempre uma carga, um custo para a acumulação real do capital e, se é que existe uma criação de valor, ela seria tão baixa que antes reduziria a taxa geral de lucro. Não há transferência de emprego para o setor terciário no nível da própria estrutura do capital, mas apenas através dos ganhos industriais de um país no mercado mundial. Obviamente os vencedores do mercado mundial, com produtos industriais, ainda podem por um tempo se permitir fornecer serviços estatais, por exemplo, uma infra-estrutura que abranja todo o território. Mas em todos os lugares onde está mais adiantado o processo da crise, que produz-se segundo o princípio da auto-semelhança, a infra-estrutura que cobre todo o território entra em colapso. A parte da força de trabalho até então absorvida neste setor também se torna desempregada.

4. Ficcionalização

Agora quero chegar ao último ponto, que talvez soe estranho: ficcionalização. Este termo faz referência ao conceito do capital fictício que é, novamente, do bom e velho Karl Marx e do famoso "Capital". Porém, está no final, no terceiro volume, onde poucos marxistas chegaram, embora essas partes sejam hoje as mais interessantes.

O que é capital fictício? Eu falei há pouco do problema da acumulação de capital, ou melhor: como o dinheiro pode se valorizar se ele não pode mais usar medida suficiente de força de trabalho vivo? Assim, se o trabalho está sendo cada vez mais racionalizado, de onde vem então o bom êxito aparente do processo capitalista ? Aqui o conceito de capital fictício de Marx pode nos ajudar. Ele refere-se a dois setores. O primeiro é a especulação comercial, isto é, a ação paralela ao capital real, que se valoriza realmente nos processos de produção empresarial; e a seu lado, como pode ser constatado com clareza no capital acionário, um movimento próprio, por assim dizer, um aparente movimento de valorização meramente nominal de capital-dinheiro.

Isso parece mais complicado do que de fato é: se o movimento de cotações das ações rende muito mais do que a renda real dos processos de produção que estão por trás deste capital, este fenômeno torna os dividendos hoje algo secundário. Era de se esperar que investir dinheiro em um processo capitalista real, que tem êxito no mercado, proporcionasse um rendimento em forma de dividendos. Contudo, isto hoje é insignificante. Os dividendos não interessam mais: o que interessa é o movimento das cotações das ações na bolsa de valores, pois se o aumento do valor nominal de uma ação pode ser de 50 marcos para 800 ou 1.000 ou 2.000, isto é fantástico e incomparável com o rendimento dos dividendos.

Coisa semelhante acontece na especulação imobiliária. Já é famosa a história do estacionamento em Tóquio que pela especulação imobiliária "vale" tanto quanto uma grande região na Califórnia. Isto mostra relações distorcidas, por trás das quais não existe mais um processo produtivo capitalista efetivo, mas apenas ar quente. Não podemos mais imaginar (e ninguém sabe ou seria capaz de calcular isso em valores exatos) qual é a dimensão que este capital especulativo fictício assumiu desde os anos 80, que hoje é uma coisa gigantesca. Comparando-se a situação atual com a crise de 29, a crise financeira daquela época e a desvalorização do capital especulativo parecem um pequeno acidente de trânsito. Para fazer uma comparação mais visual: se essa bolha especulativa de hoje em dia explodir, isso seria, em relação à crise mundial de 29, como comparar a queda de alguém do qüinquagésimo andar com alguém caindo no andar térreo.

Por isso, as instituições financeiras internacionais e o sistema bancário procuram impedir por todos os meios a explosão desta bolha. Elas tentam uma impossibilidade lógica e, acho que no fundo também prática, a saber, deixar proliferar o capital fictício até a eternidade, ou seja, permitem uma criação improdutiva mas válida de dinheiro ou que a bolha se rompa suavemente. Confesso que não posso imaginar um rompimento suave desta bolha. Não posso abordar agora os mecanismos de manipulação que existem. No Japão eles são fantasticamente desenvolvidos; lá existem sociedades de absorção que não fazem outra coisa senão assumir temporariamente os créditos podres acumulados durante o período da apresentação dos balanços, para manter a empresa limpa. Pode-se, portanto, trabalhar com truques no balanço contábil, mas eu me pergunto: até quando?

Agora vem o mais relevante: uma parte deste capital fictício não continua na superestrutura especulativa, tal como denominaria Marx, mas retorna ao ciclo conjuntural aparentemente real. Um exemplo simples: se um especulador tem ganhos, ele compra um Mercedes Benz, e isso significa também produção real. Só que na hora em que a bolha explodir alguém ficará com o mico na mão, em algum momento o choque de desvalorização se realizará.

Para uma reflexão crítica, é importante lembrar que se trata de uma contradição objetiva do sistema, que é a barreira objetiva para a acumulação real de capital, gerada pelo capital fictício comercial. Não é possível responsabilizar subjetivamente a corporação dos especuladores, fazendo-os bodes expiatórios. O "produtivismo" marxista, que às vezes cai em uma tal discussão, mostra aqui a sua fixação na produção fordista de mercadorias. Se o todo não é derivado da contradição do sistema, mas da maldade subjetiva e da cobiça dos especuladores, então o anti-semitismo não está muito longe, pois também este enxerga a crise só no nível das finanças e do crédito, reduzindo irracionalmente a questão a uma conspiração mundial de um suposto capital financeiro "judaico". É necessário, portanto, explicar a crise enquanto crise da acumulação real do capital e dirigir a crítica do capitalismo contra o próprio trabalho abstrato, contra a própria loucura do trabalho do moderno "produtivismo".

Tratei acima de um dos dois setores da criação de capital fictício, a especulação comercial, que pelo menos temporariamente torna possível uma aparente impossibilidade: o capital pode acumular sem trabalho ou sem um padrão correspondente de utilização de força de trabalho.

O segundo setor é a dívida pública. Marx também mostrou isto extensa e claramente no terceiro volume d’O Capital, só que ele obviamente não poderia imaginar a dimensão que isso assumiria no século XX. Do "ponto de vista" da economia de mercado, capitalista, real, a dívida pública na verdade é um paradoxo. Pois a única fonte de recursos real que o Estado possui, do ponto de vista sistêmico, são os impostos. Ele precisa, assim, tributar lucros reais de mercado ou rendimentos de trabalho. Mas as obrigações estatais como infra-estrutura, setores sociais, ou mesmo armamentos, faz tempo que alcançaram uma dimensão que não pode mais ser coberta só com os impostos. Esse processo já havia se iniciado antes da 1ª Guerra Mundial. Depois de algumas poucas semanas de guerra já se notava que era impossível fazer esta primeira guerra industrializada com as arrecadações reais. Aí começaram grandes campanhas de doações, como por exemplo: "ouro para ferro" nas quais os casais ofereciam suas alianças. Todos os países participantes da guerra notaram muito rapidamente que essa fonte de renda era insignificante, gotas d’água na pedra quente, insuficientes para fazer a guerra. Assim, iniciaram-se os créditos estatais em um volume até então desconhecido. Isto fez com que o Estado permitisse seu Banco Central imprimir dinheiro ou, neste entretempo, permitisse sua transferência eletrônica, e assim o surgimento de dinheiro em suas contas, por trás do qual não há nada senão as ordens do Banco Central. Porém, imediatamente a hiperinflação bate à porta, ou seja, desvaloriza-se o dinheiro.

Essa hiperinflação, que marcou o final da 1ª Guerra Mundial, hoje em dia pode ser vista como ciclo inflacionário ou hiperinflacionário em uma grande quantidade de países. Isto diz respeito à América Latina, à África, à Ásia, principalmente às Repúblicas da Ásia central, à Rússia e a uma parte do leste europeu. Hoje, para a maioria das pessoas o modo de vida e o modo de economia baseados no dinheiro está no fim, pois elas experimentam diariamente o ciclo hiperinflacionário.

Esse processo iniciou-se com o fim da 1ª Guerra, teve continuidade com o keynesianismo e transbordou finalmente na década de 80. Existem, de fato, contra-campanhas monetárias, mas é fácil constatar em países como a Grã-Bretanha ou os EUA, que tentam reduzir a dívida pública, que isso não funciona. Não precisariam apenas paralisar a maior parte da indústria de armamento, os serviços do estado social e a infra-estrutura, mas muito mais, pois de 40 a 50% da população em todos os Estados modernos já dependem direta ou indiretamente da dívida pública. E se o Estado não pretende extrair suas receitas diretamente da criação hiperinflacionária de dinheiro, dando ordem ao seu Banco Central, tal como em muitos países já é comum, não lhe sobra nada senão pedir crédito aos proprietários de dinheiro, portanto, aquele dinheiro concentrado no sistema bancário. O Estado deixa de ser, de repente, aquele enérgico Soberano uniformizado, tornando-se um tomador de crédito normal que precisa pagar e atender a todas as regras da estrutura creditícia.

Para que serve o crédito num sistema capitalista? Seu papel é, do ponto de vista capitalista, concentrar no sistema bancário, dinheiro improdutivo, pequenas economias, cash, tudo o que momentaneamente não pode ser usado como capital produtivo, emprestando-o, devolvendo-o à produção, e pondo em movimento processos produtivos reais e empresariais. Nisto está o sentido do sistema de crédito no processo de modernização.

Mas o que faz o Estado quando toma crédito? Formulando de maneira neutra, ele, do ponto de vista do sistema, está consumindo, pois todas as suas atividades são, do ponto de vista da economia de mercado, consumo. O dinheiro a juros já desapareceu no cemitério do consumo estatal, mas continua sendo tratado como parte do processo produtivo capitalista em pleno funcionamento. A dívida pública inflada pelos juros já alcança nos países desenvolvidos 10 a 20% do orçamento estatal. Isto não continuará assim eternamente.

Até este ponto chega Marx no terceiro volume, que descreve como processo do capital fictício. Na minha opinião os dois pilares do capital fictício, inclusive a dívida pública, vão desabar mais cedo ou mais tarde.

Quando falo isso a um público de esquerda a maioria mostra-se cética, mas já tive oportunidade de falar com banqueiros, diretores de Caixas Econômicas, que entendem bem do assunto. Sua reação sempre é: "Não diga isso publicamente", "se o grande público souber disso, tudo perderá o controle e desabará". Todos os governos (principalmente os EUA que com o dólar controla uma espécie de dinheiro mundial) possuem ainda cianotipia para poderem reagir de maneira controlada a um choque de desvalorização que bate a porta. Um banqueiro muito bem informado me disse: se isso acontecer, todos, desde os aposentados até os grandes especuladores, serão desapropriados. Pois aquilo em que nossa reprodução se baseia, e que foi construído em harmonia com a racionalização e a globalização nos últimos quinze anos, é em grande parte bolha de ar quente, isso precisa ser dito.

Apresentar esse panorama de crise tem um objetivo. Agora coloca-se a questão: o que fazer diante desta crise? Parece que com os velhos conceitos da crítica social marxista não podemos mais avançar. Não só porque o pensamento conceitual marxista das últimas décadas foi filtrado pelo problema da modernização retardatária, definido por uma situação na qual o processo de modernização, aparentemente infinito, chegou a seu fim definitivo, mas também pelo fato de que o marxismo, em especial, e isso começa com o próprio Marx, está fortemente ancorado no paradigma do trabalho, num mito do "produtivismo" abstrato. O conceito de trabalho só foi esboçado esquematicamente: por um lado, suprahistoricamente como fundamento humano ontológico, e por outro, já numa forma disfarçada e sub-reptícia que se identifica como capitalista, isto é, na relação aparentemente coerente de trabalho/renda monetária/consumo de mercadorias. E se numa crise efetiva da sociedade do trabalho rasga-se este nexo de mediação trabalho/dinheiro/consumo, assim, obviamente, e assim agora fecha-se o círculo, a tradicional crítica social marxista fica de mãos vazias. Então, as formas anteriores de crítica, assim como as idéias anteriores de emancipação, arrebentam-se conjuntamente nesta barreira da modernidade. E regredir à pré-modernidade nós também não podemos. Trata-se quase de uma situação de paralisia.

Acho que deve ser possível desenvolver um pensamento que gere uma força de superação da crise. Deve ser possível não apenas representar, mas desenvolver isso praticamente, partindo de debates atuais como, por exemplo, a redução da jornada de trabalho sem redução de salário — ao menos na Alemanha existe uma forte discussão sobre isso. Imediatamente lança-se a questão: o que fazer então com o tempo disponível ganho, que não pode mais ser absorvido como antes em trabalho e dinheiro? Consumir no modo tradicional, inclusive no sentido destrutivo daquele consumo de massas do capitalismo, não dá mais; mas o que então ? Pode-se agora nesta nova situação e sob condições que nunca existiram, voltar, por exemplo, a formas antigas e conhecidas como cooperativas, kibutz, outras formas de agrupamento social como autogestão e autoconsumo? Já existiram muitas formulações — de movimentos alternativos até diversas formas de autogestão, grupos de ajuda-mútua, comunidades de moradia, movimentos de bairro, iniciativas civis etc. Já houveram muitas tentativas, só que de algum modo ainda estiveram presas ao quadro referencial trabalho-dinheiro-mercadoria, inclusive com o uso do dinheiro do Estado.

Que eu saiba, também esta casa [o Centro Cultural "Rote Fabrik"] depende do dinheiro do Estado. Não que eu seja contra, afinal por que não usá-lo ? Mas acho apenas que isso esbarra em limites, não deveríamos ser totalmente dependentes disso. De fato esbarra não apenas em limites da consciência subjetiva ou de qualquer política da direita, mas em barreiras objetivas do sistema. Portanto teríamos de pensar em um modo de auto-organização que pudesse se sustentar e experimentasse novas formas de vida e autoreprodução, sem cair em utopias ou em posições sectárias. Em como, neste contexto, poderiam ser desenvolvidas novas reivindicações e também novos lemas de luta, pois tudo isso evidentemente não virá sem conflitos. Isto também é uma questão de recursos; não se trata de chegar ao nível da pobreza e da auto-exploração. Se o sistema da economia de mercado, enquanto sistema mundial, não é mais capaz de utilizar uma grande parte dos recursos, se por falta de rentabilidade cada vez mais setores das forças produtivas são paralisados e a respectiva população é excluída, então põe-se claramente a questão: esses recursos podem ser mobilizados de um outro modo ou tem de ficar parados? Isto começa com a questão da terra e do solo, as palavras de ordem para ocupação de terras e ocupação de casas não são desconhecidas e já tiveram um papel no passado. E como já dito, talvez todas essas tentativas e formulações poderiam ganhar um novo significado neste novo contexto nunca antes existente da barreira absoluta do moderno sistema produtor de mercadorias, sem serem absorvidas tão facilmente por um novo impulso de acumulação capitalista como no passado. E isso é algo que não pode mais ser concluído a partir da teoria, esta é uma questão para todos aqueles que lidam com isso praticamente.


Notas de rodapé:

(1) Instituição responsável pela transição das empresas da Alemanha Oriental para a economia de mercado (N.d.T.). (retornar ao texto)

Inclusão: 20/12/2019