O Conceito de Modo de Produção e a Pesquisa Histórica

Jacob Gorender

19 de Outubro de 1978


Fonte: Marxismo 21
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo..

Apresentação

O ensaio a seguir resultou da ampliação de uma exposição que fiz a 19 de outubro de 1978 no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP, com caráter de participação num seminário promovido pelo Programa de Pós-Graduação de História sobre o tema dos modos de produção no processo histórico brasileiro, que envolveu discussão especial em torno do meu livro O Escravismo Colonial. Sob a presidência do prof. Héctor Hernán Bruit, tomaram parte como debatedores os profs. Octavio Ianni e Theo Araújo Santiago. A eles e ao prof. José Roberto do Amaral Lapa, pelo empenho na organização do seminário, meus agradecimentos.

I

Há cerca de um século, afirmava Engels no Anti-Dühring:

“A economia política enquanto ciência das condições e das formas nas quais as diversas sociedades humanas produziram e intercambiaram e nas quais, em consequência, os produtos, cada vez, foram repartidos, — a economia política com esta extensão ainda está para ser criada. O que possuímos de ciência econômica até aqui se limita quase exclusivamente à gênese e ao desenvolvimento do modo de produção capitalista"(1).

Ou seja, limitava-se, em 1877, à obra de Marx, definidamente a O Capital.

Quase um século depois, escrevia Oskar Lange:

“A economia política aspira (...) a constituir, para cada formação social, uma teoria geral que englobaria de maneira abstrata o conjunto do modo de ação da referida formação. Trata-se da teoria econômica da formação social. Uma teoria deste gênero, inteiramente desenvolvida, não existe no presente senão para o modo de produção capitalista”.(2)

Em nota de pé de página, explicitou Lange que se referia a O Capital de Marx como à obra que contém a teoria do modo de produção capitalista.

O atraso secular não pode deixar de ser constatado. É certo que, nesse lapso de tempo, a teoria econômica marxista realizou progressos na abordagem dos novos fenômenos do capitalismo com as obras econômicas de Kautsky, Hilferding e Lênin. Já no que se refere aos modos de produção anteriores ao capitalismo, extintos ou ainda vigentes, prevaleceu o enfoque histórico acontecimental e ficou completamente arquivado o estudo teórico sistemático.

Sem entrar em considerações outras que não as metodológicas, creio que semelhante atraso se deveu ao privilegiamento do que Engels chamou de modo histórico do método dialético, o qual se aplica aos níveis do singular e do particular, porém não ascende ao nível categorial-sistemático de abordagem da matéria histórica.(3)

A este nível só se aplica o que também Engels denominou de modo lógico do método dialético. E que consiste, conforme pode ser aferido por O Capital, no estudo articulado de categorias e leis específicas de um modo de produção. Estudo categorial-sistemático ou, se quiserem, estrutural, no sentido de que deve atravessar as aparências fenomenais e revelar a estrutura essencial, com seus elementos, suas conexões internas e seu movimento próprio, que é o movimento de suas contradições. Tais contradições, por sua vez, não são disjunções, como as admitiria uma concepção funcionalista, porém pertencem ao funcionamento normal, necessário, do sistema imanente no modo de produção e determinam sua existência transitória.

Ao enfatizar o modo lógico do método dialético, não pretendo suprimir o modo histórico, pois creio que o singular e o particular são escalas legítimas para os procedimentos da ciência histórica. Esta não deve desprezar o acontecimental, mas integrá-lo na visão lógica ou sistemática. Não se trata, portanto, de optar entre historicismo antiteórico e teoria supra-histórica, porém de construir uma teoria que seja a totalização concreta das diversas determinações do processo histórico real.

O modo histórico de abordagem historiográfica não conduz obrigatoriamente ao historicismo e disto dão prova as admiráveis obras em que Marx, Engels e Lênin estudaram acontecimentos na acepção estrita do termo. Contudo, é inegável que seu privilegiamento propiciou a proliferação de variantes do historicismo, dominantes na literatura marxista deste século. Penso que a superação do historicismo é indispensável à recuperação da própria ciência da história e para tirar a economia política marxista da estagnação. É no enfrentamento do historicismo que a escola althusseriana encontra sua justificação principal e não a refutaremos com boas razões se, por nossa parte, não soubermos desprender a historiografia do historicismo, sem perder a história, como ocorre com os althusserianos.

Ultimamente, pode-se notar certo retorno à abordagem categorial-sistemática no estudo dos modos de produção. Ao alcance do meu conhecimento, pelo menos, e sem implicar concordância com todos os procedimentos e conclusões dessas obras, citarei como manifestação de tal retorno O Capital Monopolista, de Baran e Sweezy, A Evolução Econômica de Portugal, de Armando Castro, e Teoria Econômica do Sistema Feudal, de Witold Kula. No mesmo sentido, creio poder afirmar que se orientaram os esforços de Ciro Cardoso e os meus próprios.

II

O estudo dos modos de produção impõe o esclarecimento do próprio conceito de modo de produção. Isto porque, a partir da escola althusseriana, se difundiu um conceito de modo de produção que, a meu ver, representa inadmissível retrocesso do materialismo histórico em direção a uma forma especial de ecletismo. A difusão de semelhante conceito tem sido tão ampla que é impossível passar a questão por alto. Tanto mais quanto, ao que eu saiba, a respeito não se registrou nenhum pronunciamento autocrítico do próprio Althusser.(4)

O ponto de partida é aqui a distinção estabelecida por Althusser entre conceitos teóricos e conceitos empíricos. Paulo Silveira já esclareceu, com notável força crítica, o que representou essa démarche na evolução do pensamento do filósofo francês e as incoerências nela implícitas.(5) No entanto, cabem esclarecimentos especiais nas questões que aqui interessam. Vejamos, então, o que escreve Althusser:

“Os conceitos teóricos (em sentido estrito) dizem respeito às determinações ou objetos abstrato-formais. Os conceitos empíricos dizem respeito às determinações da singularidade dos objetos concretos. Assim, diremos que o conceito de modo de produção é um conceito teórico, e que se refere ao modo de produção em geral, que não é um objeto existente no sentido estrito, mas que é indispensável para o conhecimento de toda a formação social, dado que toda a formação social é estruturada pela combinação de vários modos de produção. Da mesma maneira, diremos que o conceito de modo de produção capitalista é um conceito teórico, e que se refere ao modo de produção capitalista em geral, que não é um objeto existente no sentido estrito (o modo de produção capitalista não existe em sentido estrito; apenas existem formações sociais em que domina o modo de produção capitalista), mas que, no entanto, é indispensável ao conhecimento de qualquer formação social sob a dominação do dito modo de produção capitalista, etc.”.(6)

Tendo admitido, em Lire Le Capital, somente os conceitos abstrato-formais, seu autor cedeu à crítica e resolveu dar um passo em direção à realidade empírica. Para isso, redescobriu os conceitos provisoriamente chamados «empíricos». Digo redescobriu, porque foi Kant quem originalmente classificou os conceitos em puros a priori (independentes da experiência) e empíricos (decorrentes da experiência).(7) É certo que Althusser tomou a precaução de advertir que os conceitos teóricos não concernem a idéias «puras», não caem do céu, mas estão submetidos a um processo de trabalho teórico que comporta, entre suas condições e elementos determinantes, as práticas não-teóricas e seus resultados. Logo em seguida, contudo, acrescentou:

“Mas, uma vez produzidos e constituídos, estes objetos formais-teóricos podem e devem constituir o objeto de um trabalho teórico em sentido estrito, ser analisados, pensados na sua necessidade, nas suas relações internas, e desenvolvidos para que deles se extraiam todas as consequências, isto é, toda a riqueza”.(8)

Assim, uma vez produzidos e constituídos, os conceitos teóricos, referentes a objetos abstrato-formais inexistentes em sentido estrito, desprendem-se de sua origem experimental, impura, e acabam teoricamente tão puros quanto os conceitos a priori de Kant. Com isso, Althusser se salva do empirismo, assim como Kant, com as formas transcendentais do conhecimento, se salvou do empirismo sensualista e do ... materialismo. A meu ver, como já afirmei em reflexões metodológicas precedentes, a noção de «conceito empírico» é uma contradição em termos, pois qualquer conceito, que seja minimamente científico, minimamente objetivo, diz respeito a um aspecto determinado da realidade, singular e concreta, e implica um grau qualquer de abstração, já não pertencendo mais ao empírico propriamente dito. Todos os conceitos, quaisquer que sejam, possuem ao mesmo tempo as características que Althusser discrimina e atribui separadamente aos conceitos empíricos, de um lado, e teóricos, de outro. Para aceitar que somente os conceitos chamados empíricos se refiram à realidade concreta, seria preciso, na linha da filosofia kantiana, admitir a contrapartida dos conceitos teóricos, abstrato-formais, destituídos de conteúdo ontológico e que gozariam de um movimento independente da realidade concreta.

Tem razão, portanto, Giannotti quando, a propósito dessa separação entre a abstração do modo de produção e a realidade da formação social, indaga se não estamos separando, de um lado, o real, de outro, a construção teórica, com isso abrindo um abismo que a categoria marxista tem por fim precisamente ultrapassar.(9) Em resposta à indagação, eu diria que tanto modo de produção como formação social são conceitos (ou categorias) e, por conseguinte, abstrações. Mas ambos os conceitos, e não apenas o de formação social, dizem respeito a objetos existentes, concretos, determinados, dotados de particularidades e de singularidades.

A esta altura, chegamos a uma segunda questão. É que Althusser entendeu constituir o modo de produção com as instâncias do econômico, do político e do ideológico.(10) Ora, num ensaio incluído no Pour Manc, acerca da Contradição e Sobredeterminação, seu autor, mantendo-se de acordo com os princípios fundamentais do materialismo histórico, ainda se referia à «determinação em última instância do modo de produção (econômica)».(11) Agora, porém, separou-se conceitualmente a instância econômica, que deixou de se identificar com o modo de produção, enquanto este passou a englobar também as instâncias política e ideológica. Em consequência, a determinação em última instância deixou de ser do modo de produção. Dado tal passo, foi possível elaborar uma especiosa diferenciação entre a instância determinante (sempre a econômica) e a instância dominante num modo de produção (nem sempre a econômica, pois também pode ser a político-jurídica ou a ideológica). O que se dá, no final de contas, é que o determinante vem a ser submergido pelo dominante. A subversão idealista do materialismo histórico, que a introdução do conceito de sobredeterminação deixava entrever, completou-se neste esquema, de tal maneira que a determinação em última instância pelo econômico acaba como determinação em nenhuma instância, ao menos em certos modos de produção. Por isso mesmo, Poulantzas, que faz uma exposição desenvolvida do esquema althusseriano, afirma ser ambíguo o esquema marxista de base e superestrutura, pouco valendo sua ressalva «se tomado ao pé da letra».(12) Marx nunca deixou dúvida acerca da identificação do modo de produção como base econômica ou estrutura da formação social, claramente distinta da superestrutura (político-jurídica e ideológica). Por isso mesmo, nunca deu margem à especiosa diferenciação entre instância determinante e instância dominante, considerando sempre determinante (e dominante, em consequência) o modo de produção ou a base da sociedade.(13) O esquema marxista é rigorosamente materialista, enquanto o esquema althusseriano é inequivocamente eclético.

O esquema de base e superestrutura não é ambíguo, mas perfeitamente claro. Não há inconveniente em tomá-lo ao pé da letra e, neste caso, atribuir à formação social, e não ao modo de produção, o caráter de categoria abrangente de todas as instâncias sociais, desde a econômica ao conjunto das instâncias superestruturais. A formação social não é apenas uma combinação entre vários modos de produção (um dos quais, o dominante), mas também a articulação necessária entre esses modos de produção e uma super estrutura. Se o estudo teórico deve abstrair o modo de produção das demais instâncias da formação social, essas instâncias permanecem sempre, não obstante, como pressuposto. O modo de produção não existe empiricamente como objeto puro, isolado da vida social em sua totalidade. As relações econômicas, na vida social concreta, se apresentam permeadas de relações jurídicas, políticas, religiosas e outras de natureza ideológica. Isto é particularmente evidente nos modos de produção escravistas (patriarcal e colonial) e no modo de produção feudal, nos quais a coação extra-econômica institucional é indispensável para permitir a extorsão do sobreproduto dos agentes do processo de trabalho. Mas também o modo de produção capitalista, que dispensa a coação extra-econômica sobre os operários, inexiste sem a coesão social garantida pelos aparelhos coercitivos do Estado burguês, inclusive em sua forma liberal mais pura. Só que, seja qual for o caso, o estatuto do extra-econômico é dado pelo econômico e não o contrário. A reprodução de um modo de produção é sempre a decorrência imediata da ação de suas leis econômicas específicas. Se assim não fosse, deveríamos admitir que a imposição político-ideológica seria capaz de criar por si só um modo de produção ou uma ordem econômica reprodutível e com semelhante admissão transitaríamos para alguma espécie de idealismo histórico de feição eclética, à maneira, por exemplo, de Max Weber.

De tudo isso se conclui que as várias ordens de relações sociais não devem ser confundidas categorialmente, uma vez que pretendamos que a determinação em última instância é econômica. Em segundo lugar, cabe afirmar taxativamente que modo de produção é um conceito concernente exclusivamente à produção de bens materiais, situando-se, de maneira primordial, no âmbito da ciência da economia política. Por isso, falar em «modo de produção teórico» ou «modo de produção de ideias», como faz Althusser(14), é estabelecer uma polissemia desnecessária do ponto de vista teórico e escancarar a porta à empresa de desintegração do materialismo histórico, desde o momento em que bens materiais e ideias são reunidos, do ponto de vista categorial, em seu processo de gênese.

O que ocorre — e precisamos reconhecer — é que a teoria da formação social foi muito menos elaborada pelo marxismo do que a do modo de produção. Já não podemos satisfazer- nos com as contribuições não-sistematizadas de Marx e Engels, por mais que tenham sido posteriormente desenvolvidas, sobretudo por Lênin e Gramsci. A interação entre base e superestrutura, a determinação geral em, última instância pelo econômico, as determinações particulares pelas várias instâncias super estruturais, as formas de luta de classes e sua interrelaçãoestas são questões que carecem de enfoque sistemático. Sob tal ponto de vista, os novos elementos trazidos por Gramsci — uma vez depurados do historicismo, do voluntarismo, da epistemologia idealista subjetiva sociologizada e de reminiscências crocianas — podem contribuir à elaboração de uma teoria geral sistemática da formação social capitalista, tão concretamente totalizada quanto a teoria geral do modo de produção capitalista exposta em O Capital. O fato é que podemos e devemos ter a teoria geral da formação social capitalista precisamente para focalizar com o devido acerto as formações sociais capitalistas singulares.

A teoria geral da formação social (capitalista ou outra) poderia partir da concepção abstratamente homogênea de um único modo de produção articulado com sua superestrutura correspondente e daí passar à concepção mais complexa (e mais conforme à realidade empírica) de uma combinação de modos de produção articulada com uma superestrutura correspondente. Neste último caso, um dos modos de produção exercerá o papel dominante na formação social.

Tal dominação se explicita, a meu ver, nos seguintes aspectos principais, que aparecem em conjunto ou em parte, com maior ou menor força, conforme cada caso e cada momento do processo histórico:

  1. o modo de produção dominante controla a maior massa de fatores econômicos disponíveis na formação social (recursos naturais, instrumentos de produção e transporte, instalações, mão-de-obra, recursos creditícios);
  2. extorque dos modos de produção subordinados uma parte ou mesmo a totalidade do seu sobreproduto;
  3. delimita o espaço econômico dos modos de produção subordinados e deles extrai, quando lhe convém, fatores de produção e produtos acabados, de tal maneira que os modos de produção subordinados funcionam como território de reserva;
  4. constitui a base principal da formação social e, por conseguinte, o determinante principal de sua superestrutura.

É sabido, por fim, que o modo de produção conjuga forças produtivas com um definido grau de desenvolvimento e relações de produção, que lhes devem ser adequadas nas fases progressivas do modo de produção. Da correspondência ou não-correspondência entre as relações de produção e o caráter das forças produtivas resulta a dinâmica própria do modo de produção e da formação social, numa etapa dada. São as variações nas forças produtivas (na medida em que progridem ou, mais raramente, na medida em que retrocedem) que estabelecem uma não-correspondência com as relações de produção existentes e conduzem, no final de contas, à sua substituição por outras relações de produção e ao surgimento de um novo modo de produção. Mas o surgimento de um novo modo de produção não resulta somente do desenvolvimento das forças produtivas. Sem que desapareçam as velhas relações de produção e se instaure o domínio de novas relações de produção, não há substituição do antigo por um novo modo de produção. Esta é, em síntese, uma das teses fundamentais do materialismo histórico. A questão do primado, se deve pertencer às forças produtivas, se às relações de produção, nunca foi aventada por Marx. Trata-se, na verdade, de uma falsa questão, uma vez que os homens, considerados como agentes sociais da produção, constituem um elemento que faz parte tanto do conjunto das forças produtivas (como força produtiva subjetiva dotada de intencionalidade), quanto do conjunto das relações de produção, uma vez que estas se estabelecem precisamente entre os homens. Assim, os conceitos de forças produtivas e de relações de produção não prescindem um do outro, ao mesmo tempo em que se distinguem categorialmente.

Ora, enquanto na II Internacional predominou a tendência a superestimar o desenvolvimento das forças produtivas em detrimento da atividade consciente da classe revolucionária, a escola althusseriana entendeu de proclamar o primado das relações de produção sobre as forças produtivas. A iniciativa partiu, está claro, do próprio Althusser, pois, já no Lire Le Capital, manifestava a inclinação a omitir o elemento humano nas forças produtivas, reservando-o somente às relações de produção, que bastariam para definir o econômico.(15) Até onde vai a tese do primado das relações de produção pode ser visto em autores como Barry Hindess, Paul Q. Hirst e Robert Henry Srour.(16) Hindess e Hirst, em especial, simplesmente eliminaram o conceito de modo de produção, argumentando que o conceito de relações de produção já implicava o de forças produtivas como condição de sua existência. Por conseguinte, se somente as relações de produção forem teoricamente legitimadas como categoria substantiva, o conceito de modo de produção se torna excessivo e pode ser substituído pelo de formação social, uma vez que nesta as relações de produção já aparecem juntamente com todas as suas condições de existência. Dado este passo, seguiu-se a démarche eliminatória da própria determinação em última instância pela base econômica, considerada inaceitável privilegiamento epistemológico racionalista. Lembremos que, anteriormente, os dois sociólogos ingleses haviam declarado ser a história um objeto ilusório para a pesquisa científica, enquanto Althusser, inspirador de ambos, sempre se propôs elaborar uma teoria estrutural da história, a partir da leitura sintomal de Marx. Da minha parte, parece-me inequívoco que a tese do primado das relações de produção contém, implícita ou explicitamente, um viés idealista, o qual, levado às últimas consequências, como o fizeram Hindess e Hirst, implica a desintegração do materialismo histórico.(17)

III

Ao buscar o estudo dos modos de produção, o caminho correto não consiste em proceder a construções puramente dedutivas ou em montar combinatórias estruturalistas. É indispensável fundar tal estudo no material empírico, na documentação fatual, submetendo-a a extensa e profunda investigação, com rigor historiográfico. Tratando-se de modos de produção já extintos, a fundamentação nas fontes documentais constitui obrigação incondicional da metodologia da pesquisa, não uma facultativa ilustração exemplificadora. O recurso o mais exaustivo e fiel possível às fontes documentais representa o critério epistemológico da prática para a historiografia.

Se procedermos doutra maneira, poderemos entrar pelo caminho das combinatórias estruturalistas e construir o elenco de dezesseis modos de produção, como fez R. H. Srour, sem incluir nesta lista o modo de produção escravista colonial, sob a alegação de que os modos de produção não mudam sua natureza em consequência da localização espacial em metrópoles ou colônias e, por conseguinte,

“(...) uma forma de produção escravista mantém seu estatuto e mecanismos próprios sob quaisquer céus e em quaisquer circunstâncias (...)”.(18)

Concordo com o autor no referente ao caráter arbitrário da suposição de «modos de produção periféricos», uma vez que um modo de produção não muda suas leis intrínsecas ao se transferir de uma metrópole para uma colônia ou um país dependente de qualquer gênero. Não disponho de elementos para afirmar que Ciro Cardoso, com o qual Srour polemiza, tem razão em propor a categoria de «modos de produção dependentes» ou «modos de produção coloniais», assim no plural, entendendo que foram vários os modos de produção na América colonial, nos quais a dependência constituiu um fator estrutural. O próprio Ciro Cardoso fez esta sua proposta em termos de hipótese de trabalho.(19) Mas entendo, da minha parte, que sua proposta definida de um modo de produção escravista colonial tem cabal comprovação historiográfica, com o rigor científico possível no caso.(20) Não careço de me estender sobre um tema que abordei em obra bastante extensa e, por isso, aqui me limito a alguns argumentos sucintos.

Embora os estruturalistas subestimem o estudo concreto das forças produtivas, é delas que devemos partir para estabelecer a diferença estrutural entre o escravismo patriarcal antigo e o escravismo colonial moderno. Se bem que grandes explorações agrícolas do tipo plantagem já despontassem isoladamente na Antiguidade mediterrânea, foi na América colonial que a plantagem adquiriu uma difusão e um desenvolvimento técnico muito superiores. Essa forma produtiva altamente especializada, com um nível de produtividade e de produção que tornava obrigatória sua vinculação a um mercado externo, adequava-se plenamente ao trabalho escravo e, por isso, plantagem e trabalho escravo se conjugaram com tanta coesão e de maneira tão duradoura nas regiões geograficamente favoráveis da América. Formou-se, pois, um modo de produção escravista voltado para a extração do sobre-produto sob a forma de renda monetária, sem a limitação da mera satisfação das necessidades imediatas, conforme sucedia com o escravismo patriarcal, voltado predominantemente para o autoconsumo e, portanto, para a produção de renda natural.

Esse novo modo de produção escravista só podia ser colonial, estruturalmente colonial, dado que a insuficiência insanável do seu mercado interno tomava-o necessariamente vinculado a um mercado externo em termos monopolistas. O que, por sua vez, na época do mercantilismo e mesmo depois da Revolução Industrial na Europa, só podia dar-se sob a forma de uma dependência colonial, na acepção econômica do termo (portanto, nem sempre na acepção política). Enquanto o escravismo antigo foi metropolitano, o escravismo moderno só poderia ser colonial. Neste caso, o colonial não é contingente, mas consubstancial à natureza do modo de produção. Somente colônias seriam escravistas para metrópoles que não o eram. Por isso mesmo, as relações de produção escravistas se apresentaram com uma essência diferenciada no escravismo colonial.

A especificidade do modo de produção escravista colonial se comprova, em definitivo, pelo estudo de suas leis específicas. A investigação e a formulação dessas leis específicas é que conduzem à revelação da estrutura do modo de produção na plenitude de sua identificação substantiva. Cabendo acentuar que se trata de leis tendenciais — como são todas as leis econômicas e sociológicas —, as quais não se resumem a constatações descritivas ou a tautologias, mas constituem a formulação de conexões necessárias, regulares e reiteradas, entre determinações essenciais do modo de produção.

Não obstante, o próprio estatuto teórico do conceito de modo de produção dependente (ou colonial) pode ser posto em questão. Se um modo de produção deve ser conceitualmente uma totalidade orgânica, será possível conceber como tal uma realidade cuja existência só é explicada pela sua dependência com relação a uma outra realidade, que lhe é extrínseca?

Penso que a questão é pertinente, porém seu esclarecimento deve se processar sob o enfoque dialético, se não quisermos pagar tributo à ideia metafísica das essências fechadas e completas em si mesmas. Lembremos, a propósito, que Rosa Luxemburg não conseguiu explicar a reprodução ampliada do capital senão pela realização necessária de uma parte da mais-valia num ambiente não-capitalista, erigindo, dessa maneira, o intercâmbio com modos de produção não-capitalistas em fator estrutural indispensável à própria existência do modo de produção capitalista.(21) A meu ver, o procedimento de Rosa Luxemburg não foi teoricamente ilegítimo, conquanto seja de opinião que a teoria marxista da reprodução ampliada do capital dispensa a vinculação necessária entre capitalismo e modos de produção não-capitalistas.

O contrário se dá com o escravismo colonial. Neste, tanto a reprodução ampliada como a reprodução simples não dispensam a realização da massa da produção mercantil no mercado externo, que deve ser um mercado não-escravista. Para o capitalismo, o mercado externo não constitui senão um prolongamento do mercado interno. Do ponto de vista teórico, o mercado externo não precisa ser conceituado e, por isso mesmo, não encerra significação teórica em O Capital, se bem que constasse dos planos de Marx o estudo especial das relações capitalistas no âmbito do mercado mundial. Já no concernente ao escravismo colonial, o mercado externo não-escravista constitui um pressuposto necessário do processo de produção. A circulação mercantil monopolista no mercado internacional preexistiu ao escravismo colonial e continuou autônoma com relação a ele, porém foi por ele incorporada como pressuposto e, com este estatuto, constituiu um elemento de sua estrutura. Enquanto o modo de produção capitalista cria seu próprio tipo de circulação, que o integra internamente, o escravismo colonial se vincula a um tipo de circulação externa, que ele próprio não cria, mas se limita a adequar ao seu processo de produção. Com isto, o modo de produção escravista colonial não deixa de ser uma totalidade orgânica, conceitualmente definida como tal, sobretudo pela vigência de leis rigorosamente específicas.

IV

A conceituação de determinado modo de produção colonial ou dependente — o modo de produção escravista colonial — nada tem a ver com a chamada teoria da dependência, cuja qualificação como teoria foi posta em dúvida por um dos seus patronos mais ilustres. Sem entrar na discussão a respeito, quero reconhecer, em palavras resumidas, que a teoria da dependência representou importante avanço com relação ao dualismo mecanicista (com o seu corolário — a teoria da modernização) e ao desenvolvimentismo nacionalista. Porém, mais do que isto, veio abrir um caminho de investigação sócio-econômica no âmbito das relações entre o imperialismo e os países dependentes, terreno em que o marxismo oficial vulgarizado há muito tempo estagnara num impasse estéril. Ao delinearem formas variadas de subordinação das economias dependentes às potências imperialistas, apontando inclusive para a existência de uma forma recente em que a dependência não é impeditiva do desenvolvimento industrial capitalista, os teóricos da dependência proporcionaram uma visão mais flexível e matizada da questão.

Mais do que isso, contudo, a teoria da dependência não pôde dar. Tal como foi proposta no seu nível conceituai mais elevado(22), já aparecia como uma tipologia de «situações de dependência», cujo desenvolvimento interno se resolvia na explicação historicista, acontecimental, em regra apelando para a dinâmica original dos fatores externos. Por mais que se esforçassem em internalizar o que era externo (ou seja, o imperialismo, suas empresas, sua política, vinculando-as às classes sociais e ao Estado nos países dependentes), o enfoque permaneceu integracionista, no sentido de subordinação fundamental da dinâmica do interno à dinâmica do externo. O próprio Fernando Henrique Cardoso, ao criticar autores que supõem ser possível extrair, por meio do emprego da categoria de dependência, uma teoria sobre as «leis do movimento do capitalismo dependente», não encontrou melhor argumento do que opor-lhes o que considerou uma dificuldade lógica:

“(...) como estabelecer legalidade própria daquilo que por definição está referido a outra situação que o contém?"(23)

Partindo de um pressuposto teórico de tal ordem, é evidente que o pesquisador terá por estabelecido que a legalidade do dependente é a do dominante e se interessará por pesquisar tão-somente os reflexos dos movimentos do dominante sobre o dependente. A isto se resumirá a internalização do externo.

Dificilmente, semelhante integracionismo poderia ser melhor exposto do que por Samir Amin, quando escreveu:

“Ora, se há um resultado decisivo que provém da teoria do sistema mundial, a unidade deste sistema (unidade que não supõe, de forma alguma, sua homogeneidade: ao contrário) é predominante; isto quer dizer que ela determina, em última análise, a natureza das partes que a compõem. Estamos certos de que se comete um erro fundamental cada vez que se estuda um fenômeno particular de alguma parte do Terceiro Mundo procurando sua ‘causa’ no próprio Terceiro Mundo, em vez de situá-la na dialética do sistema mundial”.(24)

Este enfoque, primordialmente externo, do sistema para o que se considera exclusivamente como partes dele, não favorece o estudo dos modos de produção em sua identidade substantiva, na especificidade de suas leis intrínsecas e no movimento derivado de suas contradições internas. Felizmente, o próprio Amin não é tão fiel ao enfoque integracionista que não nos proporcione valiosas contribuições acerca dos países atrasados. Não deixou, no entanto, de pagar tributo portentoso ao integracionismo sob a forma de uma teoria mundial da dependência, não menos supra-histórica, embora mais sofisticada, do que a de Gunder Franjk.(25)

A teoria da dependência se relaciona com um tipo de integracionismo que a precedeu e do qual recebeu reforço. Ou seja, o integracionismo que acomoda sob a categoria de capitalismo as mais diversas realidades sócio-históricas. Tal solução teórica se prende a um problema extremamente importante: o da aptidão insaciável do modo de produção capitalista para espoliar outros modos de produção, com os quais estabelece formas variadíssimas e complexas de vinculação. Foi este o problema enfrentado por Rosa Luxemburg e que, sob muitos aspectos, ela esclareceu, embora se servisse de um equivocado enfoque teórico. Mas a diferença essencial entre capitalismo e não-capitalismo, que Rosa Luxemburg não apagou, foi sumariamente eliminada pelos integracionistas.

A explicação tem sido a de que, uma vez integrados no circuito da reprodução do capital, os modos de produção pré-capitalistas, que o capitalismo encontra ou mesmo recria, perdem seu caráter específico e passam a fazer parte do processo capitalista propriamente dito. O que ocorre é que, sob tal ponto de vista, a realidade sócio-histórica é violentada e aplainada em benefício de um esquema teórico de fácil manejo, pois se esquiva de enfrentar as diferenciações e as especificidades. No que concerne à teoria em si mesma, o resultado inevitável é o de sua deterioração.

Concordo com Giannotti em que a categoria marxista de modo de produção não é um tipo ideal

“(...) arbitrariamente construído, que pudesse nomear este ou aquele fenômeno social, salientado segundo o arbítrio do investigador”.(26)

Como a epistemologia de Marx não era kantiana, não se poderia esperar dele a construção de tipos formais. Ao invés, o que nos deu foi a totalização concretizadora das múltiplas determinações da realidade empírica. É em obediência à própria epistemologia de Marx que a categoria de modo de produção (escravista colonial, feudal, capitalista ou outro) deve merecer a máxima precisão possível e não admitir arranjos acomodatícios. Parece que assim não entendeu Giannotti, ao propor uma nova versão de integracionismo, prestigiada, é certo, por alto nível de sofisticação filosófica, como se vê pelo trecho a seguir:

“Em suma, a circularidade do capital se perfaz configurando um círculo de círculos. Até quando estamos autorizados a chamar cada um desses círculos um modo de produção? A pergunta pela denominação perde importância quando se privilegia a lógica da constituição das circularidades. É somente para evitar que se coloque num mesmo nível de realidade o modo de produção capitalista e os modos de produção subsidiários, que se torna então conveniente reservar a categoria de modo de produção para designar o movimento objetivo de reposição que integra, num mesmo processo autônomo, a produção, a distribuição, a troca e o consumo, deixando outros nomes para as formas produtivas subsidiárias, que o modo de produção capitalista exige no processo de sua efetivação”.(27)

Só se pode esperar que, no último período do trecho acima citado, o verbo exigir haja sido empregado com rigor semântico e filosófico. Sendo assim, seria preciso requerer as provas teoricamente fundamentadas de que o processo de efetivação do modo de produção capitalista exige formas produtivas subsidiárias, como Giannotti prefere designar os modos de produção ditos subsidiários. A meu ver, não há para isso nenhuma necessidade concebível sob o aspecto teórico, como necessidade imanente na essência do modo de produção capitalista. Os argumentos a respeito, de ordem categorial- sistemática, estão em O Capital. Na realidade histórica fatual, o modo de produção capitalista em nenhuma parte se estabeleceu no vazio e em estado puro, porém teve de se defrontar e coexistir com outros modos de produção. Alguns deles se lhe tornaram subsidiários ou foram mesmo por ele recriados, enquanto não conseguiu reorganizar suas forças produtivas à maneira capitalista. Este é um processo que, com suas peculiaridades, se acha em curso no Brasil, acelerado nos últimos anos, na medida em que se fortalece a acumulação do capital e se expandem as relações de produção capitalistas. Não obstante, desde o momento em que os círculos menores são identificados, enquanto modo de produção, pelo círculo maior, pelo círculo dos círculos — temos uma forma de integracionismo em que desaparece a historicidade (pois tudo já é de antemão capitalismo) e se perde a coerência teórica. Uma forma de integracionismo tão obstaculizante como as outras para o estudo das diferenciações do processo histórico, em particular, para o estudo dos modos de produção específicos e de suas relações recíprocas no âmbito de uma mesma formação social.

V

Da concepção do modo de produção escravista colonial, como modo de produção que constituiu a base principal da formação social vigente no Brasil até o final do século XIX, seguem-se várias direções de pesquisa historiográfica, que não podem deixar de trazer a marca daquela concepção. Não pretendo aqui, de maneira alguma, invocar privilégios de originalidade, pois, sob diversos aspectos, essas direções de pesquisa já têm sido trabalhadas, com o resultado de valiosos esclarecimentos. Meu propósito é tão-somente o de oferecer uma visão sistematizada da pesquisa histórica logicamente decorrente da concepção por mim proposta acerca do escravismo colonial. Esta visão se sumaria num linha de pesquisa com as quatro direções a seguir expostas.

1. A formação do capitalismo no Brasil se deu diretamente a partir do escravismo colonial e não do feudalismo, conforme ocorreu na Europa.

O escravismo patriarcal romano, ao decair, não poderia abrir caminho para o capitalismo, apesar de, no âmbito urbano de Roma, se haverem formado uma classe de proletários despossuídos e uma classe de patrícios que monopolizava a riqueza monetária. É que, ao nível então atingido pelas forças produtivas, dominava amplamente a produção agrícola (a qual incluía o artesanato) e, nesta, por sua vez, dominava a economia natural. Assim, após os quatro séculos de convulsões subsequentes à extinção do Império romano, não podia formar-se na Europa o capitalismo, mas o feudalismo.

Já o escravismo colonial, tal como existiu no Brasil, implicou um grau de comercialização muito superior ao do escravismo patriarcal antigo e superior mesmo ao do feudalismo, na sua forma de segunda servidão. Estudando o feudalismo na Polônia entre os séculos XVI e XVIII, W. Kula chegou à conclusão de que, na segunda metade do século XVIII, o coeficiente aproximado de comercialização da produção feudal polonesa seria de 35 a 40%.(28) O inverso, segundo meus cálculos também estimativos, se deu no Brasil sob o domínio do escravismo colonial: a produção escravista brasileira possuía um coeficiente de economia natural de 25 a 35%, com o que o seu coeficiente de comercialização era, portanto, de 65 a 75%, nas conjunturas medianas (com variações nas conjunturas de alta ou de baixa).(29) Compreende-se, em consequência, que havia no escravismo colonial um meio favorável ao surgimento imediato do capitalismo, desde o momento em que as relações de produção escravistas entrassem em processo de desintegração.

Advirta-se que isto não ocorreu em todas as regiões escravistas da América. Se se verificou no Brasil, foi porque aqui o escravismo colonial se prolongou mais do que em qualquer outra parte e porque principalmente legou um desenvolvimento de forças produtivas e uma acumulação originária de capital, que poderiam servir de ponto de partida para o processo propriamente capitalista.

O modo de produção capitalista já desponta no Brasil na segunda metade do século XIX, sobretudo a partir da oitava década, sob a forma de núcleos industriais que empregam operários assalariados. Esta indústria autenticamente capitalista se desenvolveu mais ainda, está claro, após a Abolição. Mas o que se estabeleceu, em seguida à extinção da escravidão, foi uma formação social em que o capitalismo seria ainda um modo de produção subordinado, enquanto prevaleceu uma forma de latifúndio pré-capitalista, a qual abrangia o latifúndio plantacionista e o latifúndio pecuário.

Nessas condições, o estudo do desenvolvimento do capitalismo no Brasil é o estudo dos processos de acumulação do capital e de expansão do mercado interno, que finalmente conduziram o capitalismo a se converter no modo de produção dominante na formação social. Tais processos, segundo me parece, se diferenciaram regionalmente em quatro tipos mais peculiares: os de São Paulo, do Rio de Janeiro, do Sul e do Nordeste. Em cada caso, foram também peculiares os processos de formação da moderna classe operária e de estabelecimento do patamar histórico do seu nível de vida, bem como variou sua importância enquanto consumidora para a constituição do mercado interno e do circuito de reprodução ampliada do capital.

2. De maneira geral, surgem e se expandem, no final do escravismo e após a Abolição, formas camponesas pré- capitalistas combinadas à estrutura da plantagem e do latifúndio pecuário. Concomitantemente, proliferaram formas pré-capitalistas de renda da terra, envolvendo, em certas regiões, aspectos de servidão.

Não se trata, contudo, de sobrevivências feudais, uma vez que não houve um sistema feudal antecedente. Nem tampouco havia a possibilidade, no Brasil pós-escravista, de evolução na direção de um sistema feudal, se se considera que a economia brasileira, sob o ponto de vista global, já era demasiado mercantilizada, continuando predominante o setor exportador agrícola e surgindo uma indústria fabril capitalista. As formas pré-capitalistas de renda da terra, que absorvem a totalidade do sobreproduto do camponês, não são obrigatoriamente feudais no seu conceito. Para que o sejam, é preciso um regime especial de co-propriedade da terra: o regime de servidão da gleba ou de enfiteuse. Este regime territorial confere ao senhorio somente o domínio eminente, garantindo- lhe a apropriação da renda, e fixa o camponês à terra, assegurando-lhe seu usufruto hereditário. No Brasil, um regime territorial desse tipo foi embrionário, localizado e raro.

Assim, o que se oferece à pesquisa é uma variedade de formas camponesas precedentes do modo de produção capitalista, as quais incluem o pequeno produtor mercantil independente, o colono de café, o morador do Nordeste, o meeiro e o parceiro, o vaqueiro que trabalhava pela quarta, etc.

Ao mesmo tempo, oferece-se à pesquisa a formação da classe dominante latifundiária pós-escravista, cuja base econômica residiu, em primeiro lugar, na renda da terra e, secundariamente, no lucro capitalista (ao contrário do que sucede na verdadeira agricultura capitalista). Tal pesquisa certamente deverá impor o desenvolvimento da própria teoria marxista da renda da terra, no sentido de desprendê-la de algumas peculiaridades puramente inglesas e de enriquecê-la com novas categorias.

3. A burguesia nacional, que se formou com o capitalismo no Brasil, não teve tarefas revolucionárias para resolver.

A Independência nos deu um Estado nacional, ainda sob o domínio do modo de produção escravista colonial. A Abolição desvinculou a mão-de-obra de coações jurídicas e possibilitou a imigração maciça de trabalhadores livres. A propriedade da terra, desde o início da colonização, sempre foi alodial e alienável, sem que o regime territorial precisasse ser revolucionado. O instituto da enfiteuse registrou difusão insignificante, manifestando-se mais no âmbito urbano e sofrendo adaptações jurídicas às condições modernas. No Brasil, não teve importância prática o problema da desamortização ou desvinculação dos bens fundiários da Igreja Católica, como aconteceu na Europa e até mesmo num país latino-americano como o México. Por fim, os sistemas monetário e tributário se unificaram nacionalmente sem dificuldade, pois inexistiam, desde a Independência, barreiras politico-jurídicas ao livre trânsito de mercadorias através do País.

Por conseguinte, os problemas a pesquisar não se referem a uma burguesia com potencial revolucionário, porém a uma burguesia socialmente conservadora, suscetível, em certas circunstâncias, a tendências nacional-reformistas. Essa burguesia nacional teve contradições com os latifundiários no nível da economia e da política estatal. Como, no entanto, desde o seu surgimento, não encontrou obstáculo para adquirir a propriedade de terra e teve na especulação fundiária uma das fontes da acumulação originária do capital, a burguesia nacional não aprofundou sua contradição com os latifundiários. Pelo contrário, atuou no sentido de incorporar o latifúndio à estrutura do capitalismo no Brasil, onerando seu desenvolvimento, dessa maneira, com o peso exorbitante do preço e da renda da terra, em regime de concentração monopolista.

4. A evolução das formas de dependência nacional deve ser pesquisada, antes de tudo, sob o aspecto do desenvolvimento da formação social no Brasil. Em especial, esta pesquisa precisa assumir a ótica da constituição e do desenvolvimento do modo de produção capitalista em nosso País, partindo sempre do interno para o externo.

Assim, ao invés de estudar formas (ou situações) de dependência como tais ou de apelar a uma categoria teoricamente tão imprecisa como a do «capitalismo dependente» — o que é feito pelos adeptos da teoria da dependência —, defrontar-nos-emos com a dependência com relação ao imperialismo como um fator que surge com a própria acumulação originária de capital e que adquire formas diversas em decorrência da própria lógica interna do desenvolvimento do modo de produção capitalista no Brasil.

As relações entre a economia brasileira e o imperialismo são o resultado de uma interação cujo foco dinâmico não reside somente no imperialismo. Em certos momentos cruciais, o foco dinâmico esteve na economia brasileira — refletindo-se em atitudes das classes dominantes nacionais —, o que determinou reações nos centros imperialistas e mudanças nas formas da dependência.

Do mesmo modo, as relações entre a economia brasileira e o imperialismo não são relações unilaterais de acumulação ou de desacumulação, mas ambas as coisas, num entrelaçamento extremamente dúplice. O que se manifesta no plano das relações entre a burguesia nacional e o imperialismo, ao mesmo tempo associativas e contraditórias.

Com tal enfoque, não se perderão de vista a identidade substantiva do modo de produção capitalista no Brasil e seu dinamismo interno, nem se subestimará tampouco tudo o que decorre do seu entrosamento no sistema capitalista mundial.

A acumulação capitalista no Brasil implica o universal: a exploração da classe operária, a produção de mais-valia. E implica o particular: as relações entre o capital nacional e o capital estrangeiro monopolista, entre a burguesia nacional e o capitalismo de Estado e entre o capitalismo de Estado e o imperialismo.(30)


Notas de rodapé:

(1) Engels, Friedrich, Anti-Dühring (M. E. Dühring Bouleverse la Science), Paris, Êditions Sociales, 1950, p. 182. (retornar ao texto)

(2) Lange, Oskar, Économie Politique, Paris, Presses Universitaires de France, 1962, t. 1, p. 121. (retornar ao texto)

(3) Engels, Friedrich, “La ‘Contribución a la Crítica de la Economia Política’, de K. Marx”, in Marx e Engels, Obras Escogidas, Moscou, Ediciones en Lenguas Extranjeras, 1961, t. 1, p. 340-345. (retornar ao texto)

(4) Cf. Althusser, Louis, Elementos de Autocrítica, Barcelona, Ed. Laia, 1975. (retornar ao texto)

(5) Cf. Silveira, Paulo, Do Lado da História, São Paulo, Liv. Ed. Polis, 1978, p. 39-47. (retornar ao texto)

(6) Althusser, Louis, Sobre o Trabalho Teórico, Lisboa, Ed. Presença, p. 65-56. [s.d.]. (retornar ao texto)

(7) Kant, Critica de la Razôn Pura, 2ª ed., Buenos Aires, Ed. Sopena, Argentina 1945, t. 1, p. 77-78; t. 2, p. 165-166. (retornar ao texto)

(8) Althusser, Louis, ibid., p. 68. (retornar ao texto)

(9) Cf. Giannotti, José Arthur, “Notas sobre a Categoria 'Modo de Produção’ para Uso e Abuso dos Sociólogos”, in Estudos CEBRAP, n. 17, São Paulo, Ed. Brasileira de Ciências, 1976, p. 167. (retornar ao texto)

(10) Althusser, Louis, ibid., p. 62. (retornar ao texto)

(11) ld., Pour Marx, Paris, François Maspéro, 1967, p. 111. (retornar ao texto)

(12) Cf. Poulantzas, Nicos, Poder Político e Classes Sociais, São Paulo, Lív. Martins Fontes Ed., 1977, p. 16, (retornar ao texto)

(13) A fim de comprovar tal assertiva, começamos pelo célebre e tão citado Prefácio da Contribuição à Critica da Economia. Política: “O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas sociais de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e espiritual em geral”, Marx, Karl, Contribution a la Critique de l'Économie Politique, Paris, Éditions Sociales, 1957. p. 4. Em O Capital, a tese se repete: “Porque o conjunto destas relações, em que os agentes da produção se encontram no que se refere à natureza e entre eles próprios [portanto, o modo de produçãoJ.G.l, este conjunto é precisamente a sociedade, do ponto de vista de sua estrutura econômica”, Marx, KarI, Das Kapital, Berlim, Dietz Verlag, 1964, livro terceiro, p. 826-827 (Marx-Engels, Werke, v. 25). Agora, chegamos a uma citação de Marx freqüentemente exibida pelos adeptos da escola althusseriana (inclusive Poulantzas, cf. op. cit.f p. 27): “Segundo ele [um jornal germano-americano — J.G.], minha opinião de que o modo de produção determinado e as relações de produção que lhe correspondem, em uma palavra, de que a estrutura econômica da sociedade é a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas sociais de consciência, de tal maneira que o modo de produção da vida material condiciona acima de tudo o processo da vida social, política e espiritual (Contribuição à Crítica, Prefácio), — segundo ele, esta opinião é justa para o mundo moderno, dominado pelos interesses materiais, mas não para a Idade Média, onde reinava o catolicismo, nem para Atenas e Roma, onde reinava a política. (...) O que é claro é que nem a Idade Média podia viver do catolicismo, nem a Antiguidade da política. O modo pelo qual se ganhava a vida explica por que, pelo contrário, aqui, a política, e ali, o catolicismo exerciam o papel principal. O mínimo conhecimento da história da República romana, por exemplo, faz ver que o segredo desta história é a história da propriedade fundiária. Por outro lado, já D. Quixote se penitenciou do erro de haver acreditado que a cavalaria andante era compatível com todas as formas econômicas da sociedade”, Marx, Karl, ibid., livro primeiro, p. 96, n. 33 (Marx-Engels, Werke, v. 23). Exceto pequena frase de significação puramente polêmica, reproduzi a citação na íntegra, o que não costuma ser feito pelos althusserianos. Estes se apegam à afirmação de que a política e o catolicismo desempenhavam o papel principal, respectivamente, na Antiguidade e na Idade Média. Seriam as instâncias dominantes, embora a economia continuasse determinante em última instância. Como é possível supor, não obstante, que Marx, com uma única frase em nota de pé de página, fosse subverter sua construção teórica penosamente levantada? Se considerarmos o que, no trecho acima, está dito acerca da República romana e de D. Quixote, deveremos concluir que o papel principal não se refere aí ao conjunto da formação social, porém somente à superestrutura. Ou seja, a política e o catolicismo eram, em cada época, os fatores principais da superestrutura, enquanto a economia — o modo de produção — continuava sendo o fator determinante e dominante da formação social em seu conjunto. (retornar ao texto)

(14) Cf. Althusser, Louis, Sobre o Trabalho Teórico op. cit., p. 52, 69. (retornar ao texto)

(15) Cf. Althusser, Louis, et al., Lire Le Capital, Paris, François Maspéro, 1967, t. 2, p. 144-159. (retornar ao texto)

(16) Cf. Hindess, Barry e Hirst, Paul Q., Modos de Produção Pré-Capitalistas, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1976, p. 19 et pas; id., Modo de Produção e Formação Social, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1978; Srour, Robert Henry, Modos de Produção: Elementos da Problemática, Rio de Janeiro, Ed. Graal, 1978, p. 106-110. (retornar ao texto)

(17) Uma crítica mais desenvolvida das obras de Hindess e Hirst encontra-se no meu artigo “O Enfoque Neopositivista do Marxismo", in Movimento, São Paulo, n. 182, 13-12-1978. (retornar ao texto)

(18) Srour, Robert Henry, op. cit., p. 483. (retornar ao texto)

(19) Cf. Cardoso, Ciro Flamarión Santana, “Sobre los Modos de Producción Coloniales de América”, in Assadourian et al., Modos de Producción en América Latina, Córdoba, Argentina, Cuadernos de Pasado y Presente, 1973. (retornar ao texto)

(20) Id., “El Modo de Producción Esclavista Colonial en América”, in Assadourian et al„ op. cit. (retornar ao texto)

(21) Cf. Luxemburg, Rosa, La Acumulación del Capital, Barcelona, Ed. Grijalbo, 1978. Ver especialmente cap. XXVI. (retornar ao texto)

(22) Cf. Cardoso, Fernando Henrique, e Faletto, Enzo, Dependência e Desenvolvimento na América Latina (Ensaio de Interpretação Sociológica), 3ª ed., Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975. (retornar ao texto)

(23) Cardoso, Fernando Henrique, “O Consumo da Teoria da Dependência nos EUA”, in Ensaios de Opinião, Rio de Janeiro, Ed. Inúbia, 1977, v. 4, p. 11. Do mesmo autor, ver tarribénu O Modelo Político Brasileiro e Outros Ensaios, Sao Paulo, Difel, 1972; Notas sobre Estado e Dependência, Cadernos CEBRAP, n. 11, São Paulo 1975. E ainda: Figueiredo, Vilma, Desenvolvimento Dependente Brasileiro - Industrialização, Classes Sociais e Estado, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1978. (retornar ao texto)

(24) Amin, Samir, “O Capitalismo e a Renda Fundiária (A Dominação do Capitalismo sobre a Agricultura)”, in Amin, Samir, e Vergopoulos, Kostas, A Questão Agrária e o Capitalismo, Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 1977, p. 33-34. (retornar ao texto)

(25) Cf. Amin, Samir, O Desenvolvimento DesigualEnsaio sobre as Formações Sociais do Capitalismo Periférico, Rio de Janeiro, Ed. Forense Universitária, 1976. (retornar ao texto)

(26) Giannotti, op. cit., p. 163. (retornar ao texto)

(27) W., ibid., p. 167. (retornar ao texto)

(28) Kula, Witold, Teoria Econômica del Sistema Feudal, Buenos Aires, Siglo Veintiuno Ed., 1974, p. 108-109. (retornar ao texto)

(29) Cf. Gorender, Jacob, O Escravismo Colonial, 2ª ed., São Paulo, Ed. Ática, 1978, p. 253-254. (retornar ao texto)

(30) Evidencia-se, sem dificuldade, que esta linha de pesquisa, assim exposta em suas direções principais, é muitíssimo diversa daquela seguida por Florestan Fernandes em sua obra A Revolução Burguesa no Brasil (Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975). (retornar ao texto)

Inclusão 24/05/2016