Discurso Proferido na Cerimónia da Independência de Cabo Verde

Vasco Gonçalves

6 de Julho de 1975


Fonte: Vasco Gonçalves - Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas. Organização e Edição Augusto Paulo da Gama.
Transcrição: João Filipe Freitas
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Fernando A. S. Araújo.

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Povo de Cabo Verde:

Em nome do Presidente da República Portuguesa, em meu nome, em nome do Conselho da Revolução, em nome do Governo Provisório e sobretudo em nome do povo português, eu grito, do fundo da nossa alma de portugueses: Viva a Independência de Cabo Verde!

Este dia, para nós portugueses, é também um dia histórico. Não me atreverei a dizer que representa tanto para nós como para vós, mas é um dia extraordinário, porque Portugal viu nascer uma nova Nação de expressão portuguesa, libertada do colonialismo, libertada do fascismo. Nós hoje, portugueses, somos mais livres. Porque é uma nova Nação que se liberta das cangas do passado e essa libertação é também nossa. Eu desejo agradecer as palavras extremamente cordiais que o camarada Aristides Pereira me dirigiu. Não as dirigiu a mim, concerteza, dirigiu-se ao Povo Português.

A nossa luta é de facto, uma só. A luta do PAIGC contribuiu poderosamente para que os portugueses se libertassem da ditadura fascista. A vossa luta contribuiu poderosamente; a vossa luta foi um instrumento que ajudou os portugueses a esclarecerem-se sobre o seu próprio destino e permitiu que as Forças Armadas Portuguesas tomassem, em suas mãos, o dever histórico de libertar o Povo Português da ditadura de Salazar e de Caetano.

Essa ditadura que vos oprimia, também nos oprimia a nós. Os fascistas de Salazar tinham criado para Portugal a imagem de que Cabo Verde era uma terra de morte. Era para aqui, para o «campo de morte» do Tarrafal, que mandavam os anti-fascistas portugueses; os verdadeiros combatentes da liberdade do nosso Povo.

Na nossa Delegação, temos aqui anti-fascistas que foram perseguidos, porque lutaram pela liberdade de Portugal e pela liberdade dos povos colonizados. Os fascistas, Salazar e Caetano, era para aqui, para o «campo de morte» do Tarrafal que mandavam os melhores filhos do povo português. Esse «campo de morte» foi sempre profundamente odiado pelos portugueses e se no fim eles o transformaram, ou procuraram transformar, e lhe deram uma nova aparência, isso foi devido à luta do povo português. Não havia uma campanha, naqueles escassos tempos em que era permitido a liberdade em Portugal, em que o povo não se levantasse contra esse «campo de morte» do Tarrafal. Era uma vergonha para nós, porque nós, os anti-fascistas, nada temos com isso e estamos, hoje, muito satisfeitos porque o campo do Tarrafal jamais será um «campo de morte»: nem dos portugueses nem dos caboverdianos.

A nossa luta é comum. É a luta de todos os povos que se pretendem libertar das cadeias do obscurantismo, da opressão, daqueles povos que pretendem expandir toda a criatividade que existe em nós, em cada homem e em cada mulher.

Por isso a nossa luta é comum, por isso afirmamos que o MFA é um movimento de libertação. Porque é que esse Movimento é um Movimento de libertação do Povo Português?

Por querer libertar das cangas do sistema capitalista que oprime os homens e que não lhes permite que expandam todas as potencialidades que existem no cérebro humano, no trabalho humano, e se opõe à libertação do homem. E nós hoje em Portugal, caminhamos, embora com passos lentos, com passos duros, com passos muito difíceis — rodeados de inimigos por todos os lados — nós caminhamos com um único objectivo. Idêntico àquele que é também o último objectivo do PAIGC: que termine na terra a exploração do homem pelo homem.

Nós somos um País pequeno, somos um País muito pequeno, mas somos, provavelmente o País mais velho da Europa. Embora sejamos humildes devem reconhecer que temos orgulho em estabelecer relações destas convosco, e com os povos de Moçambique, de Angola e da Guiné. Com todos os povos que estiveram debaixo do colonialismo português. Nós viemos aqui como irmãos, sentimo-nos iguais. Não temos preconceitos. Afirmámos no nosso Programa que éramos contra o neocolonialismo, e isso é um ponto de honra nosso. É por isso que nos sentimos bem entre homens de todas as raças e de todas as cores, entre homens de todos os credos religiosos. Nunca fomos racistas. Somos anti-racistas.

O racismo, como sabeis — como também já o disse — o racismo é um alibi que esconde qualquer coisa de mais profundo, que é a luta de classe. Essa é que é de facto a charneira do sistema que nos oprime: a exploração do homem pelo homem. Não é a raça nem é a cor, nós somos todos iguais. Temos todos as mesmas possibilidades, isso está demonstrado à saciedade. Há exemplos históricos, em qualquer momento da história — hoje mesmo— em que os homens demonstraram, sem sombra de dúvidas que não há raças superiores. Os homens são todos iguais e os portugueses, sempre se sentiram bem misturados com os outros, de todas as cores e de todas as raças. Não era isso que nos dividia. O que nos dividia era a opressão colonialista, era o mesmo fascismo que existia em Portugal, que se exercia aqui em Cabo Verde, em Angola e em Moçambique, eram os mesmos grupos económicos que exploravam as colónias portuguesas, que exploravam o povo português, e é na luta contra esses grupos que o povo português está empenhado.

Nessa luta nós devemos ser aliados e vós, os caboverdianos, os moçambicanos e os povos que se vão libertando do colonialismo, são nossos aliados. Nós pensamos que quando as nações ascendem à independência o povo colonizador não pode virar as costas ao povo colonizado. Em rigor histórico eu deveria dizer as classes colonizadoras, pois não houve nunca povo colonizador de outro povo. Há, sim, relações e troca de experiências entre os povos.

Assim, nós estamos aqui de mãos dadas, para cooperarmos para o futuro baseados em relações que, como disse o camarada Samora Machel, devem ser exemplares. O que quer dizer que essas relações devem ser baseadas no respeito mútuo, no interesse mútuo, na não ingerência de um país no outro, e sobretudo conservando e desenvolvendo os laços que apesar do colonialismo se estabeleceram entre o povo português e os povos colonizados pelos colonialistas portugueses, porque isso é uma realidade. Como todos vós sabeis não somos um País rico. Também não somos um país pobre como apregoava o Salazar. Nós vivemos hoje um período de grandes dificuldades económicas, políticas e sociais, vivemos uma transformação profunda e qualquer transformação profunda da sociedade é feita em crise. É um período de crise.

A transformação do velho no novo não é fácil. É dura, custa e é preciso que haja gerações que se empenhem nela.

Vós, por exemplo, tendes a geração do PAIGC, tendes os vossos chefes do PAIGC, que tudo sacrificaram nessa transformação do velho no novo. Eles provavelmente já não verão aquilo que os vossos filhos verão, mas essa é que é a verdadeira missão histórica dos verdadeiros combatentes: bater-se e sacrificar-se num dado momento pelo futuro da sua pátria, que eles já não verão, mas que usufruirão os seus filhos e os seus netos. Isso é que é consciência política, e essa consciência política tiveram-na os vossos chefes do PAIGC.

Nós não pensamos, portanto, que descolonizar é abandonar, de maneira nenhuma. Nem tomem isso como uma palavra de superioridade.

Abandonar... vocês podem-me responder: para que é que você está para aí a dizer isso de abandonar? Nós não precisamos de você para nada.

Eu não quero dizer abandonar com esse sentido. Quero dizer que o povo português tem a consciência das suas responsabilidades históricas. Tem a consciência de que apesar do colonialismo, não é em vão que durante 500 anos passaram por aqui portugueses. Deixamos sempre qualquer coisa de nós por onde passamos. Portanto devem-nos permitir que consideremos que temos, nesse sentido — e é nesse sentido que falo — não é no sentido metafísico, mas é no sentido prático, nós temos uma certa vocação para nos darmos com os povos africanos. Para estabelecermos boas relações com os povos africanos, porque nem todos os portugueses que vinham para aqui eram colonialistas, e em Portugal poucos colonialistas havia. Havia aqueles que dominavam Angola, Moçambique, Guiné, etc., mas o grosso do povo português era colonizado, colonizado como vocês. Portanto nós pensamos que se podem e devem estabelecer relações e apoio mútuos. Estamos trabalhando nesse sentido, temos elaborado acordos, temos tido comissões que negoceiam com a Guiné, que trabalham com Cabo Verde, dentro da maior harmonia e compreensão.

Nós pensamos e desejamos estreitar essas relações com os povos que foram antigas colónias portuguesas. Não temos dons miríficos para fazer aqui um milagre de Cabo Verde. Ou o milagre de Angola, ou o milagre da Guiné. Somos um povo pobre, mas na medida das nossas possibilidades podemos colaborar convosco e vós sabeis que na Guiné estamos colaborando convosco e que aqui estamos colaborando convosco.

Temos ainda de nos orgulhar pela maneira como foi conduzido este período de transição. Da maneira como durante vários meses se foram estabelecendo novas relações entre os portugueses e os caboverdianos. Relações que espero tenham sido, de facto, cimentadas. Assistimos a esta cerimónia da independência, tal como assistimos em Moçambique, com a maior alegria do povo e com a maior ordem, sem distúrbios, sem tiros, com respeito uns pelos outros. Os portugueses — os tais antigos colonizadores — andam entre vós, normalmente, abraçam-se, olham uns para os outros francamente. Isto é um exemplo formidável que damos aos outros povos do mundo. E eu duvido que haja outros povos do mundo que tenham conseguido isto. Este é o nosso grande orgulho. Somos pobres, nós somos de facto pobres, mas somos capazes de dar exemplos destes ao Mundo, como demos noutras épocas da nossa História.

Desejo terminar afirmando que é esse, profundamente, o desejo do Presidente da República, do Conselho da Revolução, do Governo Provisório, da delegação portuguesa que aqui está do Povo Português. Que as relações entre nós e vós se estreitem para o futuro. E essas relações poderão ser muito mais benéficas, tanto para vós como para nós, porque as relações anteriores só beneficiaram meia dúzia de tipos, aqui em Cabo Verde, e outra meia dúzia de tipos em Portugal. Não beneficiavam os dois povos.

Por isso este dia para mim é, de facto, um dia inolvidável, como o é para os portugueses que aqui assistem a esta cerimónia.

Faço votos para que essa amizade fraternal, essas relações exemplares, se estabeleçam na prática, porque esta coisa dos discursos pouco vale se não for traduzida em actos práticos. E eu penso que temos traduzido em actos práticos a nossa acção depois do 25 de Abril, de tal maneira que tenho o direito de estar a falar aqui assim. Porque temos procurado levar processos de descolonização que conduzam a cimentar as nossas relações e a melhorá-las. Se elas são difíceis, isso é natural, porque o colonialismo português deixou Portugal arruinado, deixou Angola arruinada, deixou Moçambique arruinado, deixou Cabo Verde arruinado. Mas vamos construir novos países e daqui a uns anos serão, decerto, muito frutuosas as nossas relações.

Para isso é preciso compreender que temos de arrancar quase do nada. Esse futuro constrói-se lentamente e é preciso muita tenacidade, muita força de vontade, muita temperança, muita vigilância popular. Vigilância popular a combater os nossos inimigos, porque vocês também têm inimigos, concerteza, aqui em Cabo Verde, como nós temos em Portugal.

Termino, mas antes quero dizer o que representa para os democratas portugueses, para os anti-fascistas portugueses, que aqui se encontram desde a ala esquerda até ali, à ala direita, o que era Amílcar Cabral para nós.

Julgamos ter também o direito de considerarmos Amílcar Cabral como um português. Amílcar Cabral era também um português. Teve uma formação em Portugal. Em Portugal ajudou os portugueses a aprenderem a ler nos centros republicanos. Combateu pela liberdade em Portugal e numa determinada altura veio continuar esse combate para a sua terra. Amílcar Cabral enriqueceu a vossa cultura, mas enriqueceu também a nossa, enriqueceu também a cultura dos portugueses. Devemos muito a Amílcar Cabral. Os nossos teóricos, os nossos rapazes, leram e leem as obras de Amílcar Cabral. Meditam, e meditam sobretudo no seu corajoso exemplo. Isto não é uma figura de retórica. Peço pois que me permitam que considere Amílcar Cabral uma figura da nossa cultura. É da cultura portuguesa, é da cultura caboverdiana, é da cultura luso-africana.

Eu termino agora finalmente.

Viva a unidade dos povos africanos!
Viva a unidade do PAIGC!
Viva a unidade desejada entre os povos da Guiné e Cabo Verde!
Viva a unidade do povo de Cabo Verde!
Viva a unidade inquebrantável das relações entre Portugal, Cabo Verde e a Guiné-Bissau!

 

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Abriu o arquivo 05/05/2014