Ética e política: uma trajetória

Ruy Fausto

28 de agosto de 2013


Primeira Edição: Entrevista concedida a Marcelo Carvalho no parque lage, no Rio de Janeiro, nela, o professor reflete sobre as relações entre ética, filosofia e política. A concepção e realização da entrevista contou com a participação de Rodinei Nascimento. Edição e revisão de Bento Prado Neto.

Fonte: Filosofia: Estética e Política, vol. 3 — Universidade Aberta do Brasil

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Relembrando sua própria trajetória, ele tematiza as relações entre as motivações políticas e o trabalho mais propriamente acadêmico, as relações entre política e filosofia. Para ele, a militância política foi sua porta de entrada para o mundo acadêmico: a crítica (de início ainda leninista) do estalinismo, levantava questões cuja discussão exigia o recurso à dialética e, portanto, a questões técnicas de lógica (não formal). Esse contexto político também ditou seu destino acadêmico: os sucessivos golpes militares no Brasil e no Chile acabaram instalando-o na França. Seu percurso pessoal (da crítica ainda leninista do Estalinismo à crítica do próprio leninismo) serve de ponto de apoio para refletir sobre as relações entre democracia e capitalismo, de um lado, e, de outro, sobre ética e política, a partir de uma perspectiva que não é pura e simplesmente revolucionária. Mas dá também ensejo a uma reflexão sobre as peculiaridades do trabalho filosófico, sobre as relações complicadas que o trabalho acadêmico mantém não só com o conhecimento da realidade social imediata como também com o saber histórico.

Marcelo (M) Nós estamos aqui com o professor Ruy Fausto, que é professor emérito da Universidade de São Paulo, mestre de conferências da Universidade de Paris VIII, e vamos conversar a respeito de ética e filosofia política.

Ruy, nós comentávamos há pouco que aqui, neste lugar onde a gente está, parque Lage, no Rio de Janeiro, foi filmado, em 1967, boa parte do “Terra em transe”, do Glauber Rocha. O filme apresenta um contexto dos anos 60, de populismo, debate sobre luta armada, uma esquerda pensando aquele contexto, o regime militar no Brasil — que é um pouco o contexto da sua formação. Você não poderia apresentar um pouco esse contexto da sua formação na relação que ele mantém com o final dos anos 60, início dos anos setenta?

Ruy (R) É, na realidade, a minha história começa antes. Começa antes. Eu frequentei os pequenos grupos de esquerda anteriores a 1968. Então, de certo modo, em 1968, eu já era um pouco veterano nessas coisas, não é? Bom, se vocês quiserem minha história, na realidade, eu sempre tive, digamos, um pé na universidade, nos problemas teóricos, e um pé nas coisas que eram extrauniversitárias. Não que eu tenha sido ou que eu seja homem político ou coisa desse tipo, mas sempre tive preocupações extrauniversitárias que se ligavam com as preocupações universitárias. E digamos que isso vai se cristalizar de alguma forma em 1968 — mas já há uma espécie de pré-história antes disso, não é? Eu tinha um interesse grande por política e me interessei bastante por filosofia, em especial por lógica (mas num sentido muito geral) e fiquei um pouco entre estas duas coisas, de tal forma que minha série de livros mais importantes é em torno de lógica e política. Desde cedo, comecei a trabalhar muito Marx — que era, digamos, a referência. Alguém da nova geração pergunta, “mas por que é que você escolheu o Marx?”, eu digo: eu não escolhi, foi ele que nos escolheu. Quer dizer, para essa geração, não se tratava de uma série de possibilidades, de um programa de filosofia no qual a gente escolhia este ou outro — não! Aquilo se impunha na época, não é? Então, eu comecei a trabalhar muito o Marx e...

(M) Mas ele era presente na universidade? A leitura do Marx era presente na universidade?

(R) Não, eu começo antes disso, eu começo, digamos, me interessando por Marx pela via dos grupos de que eu participava, dos grupos de extrema esquerda, grupos antiestalinistas — mas leninistas. Bom, depois, há um longo caminho que termina com a crítica do Marx, que começa com leitura do Marx etc., e que termina... — mas aí entra uma série de coisas pelo meio de várias ordens, não é? Tem a política brasileira, tem as viagens, que estão ligadas um pouco com a política brasileira — mas não só, porque houve uma primeira viagem como bolsista para França, que tem a ver com a história da faculdade, porque...

(M) Da formação da USP, não é?

(R) Da formação da USP, tem muito a ver com a formação da USP

(M) Mas neste contexto de 1968, de regime militar, quando vem a repressão mais dura do regime, você sai do Brasil...

(R) Eu saí do Brasil, ficou insuportável eu... Bom, não vou detalhar a história toda, mas eu tive que sair do Brasil. Na realidade, eu não estava ligado a nenhum grupo diretamente, mas finalmente todos nós estávamos ligados a tudo, não é? E eu tive que sair e fui para o Chile e passei mais ou menos uns dois anos no Chile, em 1968 ... — é isso: dois anos e meio no Chile.

(M) Governo Allende.

(R) Governo Frei no início, depois governo Allende — que foi muito interessante, foi uma experiência muito interessante. E de lá eu fui continuar meus estudos na Europa, porque eu já tinha sido bolsista na França, por conta dos acordos entre os departamentos de filosofia da USP e da França. Daí eu fui, e veio o golpe chileno. Então eu escapei — eu tenho muita sorte, porque eu escapei do golpe brasileiro (os riscos eram grandes, mesmo para quem não estivesse diretamente ligado, mas estávamos todos muito ligados, não é?) e escapei do golpe chileno, escapei dos dois. Tive muita sorte, me sinto um pouco um sobrevivente nesta história...

(M) E foi ser docente na Universidade de Paris?

(R) Eu era, não sei como é que se chamava, instrutor, instrutor na USP (tinha esse nome muito modesto, mas a gente não ganhava mal e tinha um certo peso lá dentro) e fui parar no Chile; lá eu me tornei professor da Universidade Católica de Santiago — quem me apresentou foi o Ernani Fiori, que era um brasileiro exilado, um filósofo católico que tinha saído do Rio Grande do Sul. Ele me ajudou, e me tornei professor lá. Foi uma experiência interessante: fiquei fazendo a reorganização do departamento e espiando muito o país e a experiência toda. Então eu fui para Europa, pensando em voltar — aí veio o golpe chileno e fiquei pela Europa, e lá comecei uma nova carreira. Lá eu defendi duas teses e virei professor (maítre de conférences, que é uma espécie de equivalente do livre docente) em Paris VIII, e só não virei professor titular por causa de maracutaias locais ali.

(M) E passou três décadas lá?

(R) E passei três décadas lá, na França; mas depois comecei a vir ao Brasil, retomei os meus contatos com a USP; quer dizer, finalmente eu tive, e tenho, um pé na Europa e um pé aqui. E realmente não me queixo, porque é uma experiência muito enriquecedora. quer dizer, as atmosferas são diferentes, a bibliografia é diferente, eu acho que me alimentei com esse confronto dos dois mundos...

(M) Mas este contexto, particularmente o inicial que você citou, o final dos anos sessenta, início dos anos setenta, o golpe no Brasil, o golpe no Chile, é um contexto muito polêmico para se pensar a política e a ética também. Isso se manifesta no seu trabalho? quer dizer, como você vê a relação entre o contexto que você viveu e os percursos que você seguiu pensando a filosofia?

(R) Na realidade, o peso é um pouco mais geral. O peso político é muito grande, muito grande. A minha preocupação (que era a preocupação da época — e de certo modo isso existe ainda) era a tentativa de fundamentar ou de legitimar um projeto que, na época, era um projeto revolucionário, não é? Na época, era um projeto revolucionário — hoje, eu diria que era um projeto de esquerda. E a gente não estava satisfeito com a ideia de que o socialismo — era assim que a gente pensava as coisas, de certo modo é assim que eu penso, mas esse socialismo de hoje já não tem muito a ver com aquele -, de que o

socialismo poderia ser justificado pela ideia de que ele vai vir. “Ele vai vir” é o futuro. Bom, o futuro pode ser muito ruim. Isso parece óbvio, mas a ideia de progresso era tão profunda na cabeça da gente que, para muita gente, o fato de que ele viria bastava. Isto, para mim, não bastou. Não só para mim, essa era uma discussão mais geral. E aí aparece uma discussão sobre política e ética, se você pode fundamentar ou não pode fundamentar (a fundamentação não é inocente). Bom, entram problemas muito complicados de lógica e de dialética, não é? Digamos que foi pela via da política que eu cheguei à dialética; foi por aí. Fui trabalhar O Capital, depois. Fui trabalhar os problemas teóricos etc. — isso foi depois, foi um pouco através da faculdade.

(M) Neste sentido, a reflexão sobre a política...

(R) Foi a porta.

(M) Foi a porta de entrada. Mas o problema de pensar a filosofia política, pensar a política a partir da filosofia, era a contraposição a uma concepção determinista, economicista?

(R) Era a reflexão filosófica em torno da política. E eu acho que isso era interessante e ao mesmo tempo limitado, tinha um escopo muito preciso, mas era isso. Era pensar a ideia de fundamentação da política — fundamentação ou não, porque o problema era saber se fundamentava. Se o ato de fundamentar é inocente ou não é inocente; bom, isso nos leva para o Hegel, isso tem consequências enormes. Foi isso. Foi isso que desencadeou. E depois eu comecei a trabalhar mais, digamos, os problemas de filosofia teórica, ou de lógica teórica. Lógica sempre num sentido não formal. Mas, pouco a pouco, fui ficando com uma perspectiva crítica. Digamos que eu, há vinte anos, trinta anos, há mais de trinta anos que eu não me considero marxista, por exemplo. Então, esse foi o meu caminho. Mas me considero ligado à dialética, a essa tradição.

(M) De alguma maneira, o interlocutor ou os interlocutores, nessa sua reflexão sobre a política e sobre esse contexto que vem da década de 1960 para cá (que de alguma maneira é o contexto da sua vida), o interlocutor para a reflexão a respeito disso é Marx ou Hegel? Essa é uma chave relevante para olhar...

(R) É, era Hegel, era Marx, depois passa a ser Adorno, mas isso é a teoria. Eu tinha outras referências. Eu era e sou leitor de política. Então, na minha juventude fui trotskista; hoje, eu tenho reservas muito grandes em relação a essa figura (o Trotski), com exceção do jovem...

(M) Muitos foram trotskistas.

(R) Muitos foram. O clube dos “ex” é muito grande, tem de tudo lá dentro. Como os ex-Mao. Então, eu tinha as referências políticas, quer dizer, esse personagem do qual nós falamos é um dos autores que eu mais li. Aliás, se eu contar toda a história... Depois, voltei a uma reflexão especificamente política. Então, eu tinha um pé, eu tinha um interesse pela filosofia ligado à política, mas que não se esgotava na política. E, ao mesmo tempo, eu fazia as minhas leituras políticas por debaixo da mesa — porque depois eu virei filósofo; portanto, a minha profissão não era ler política: então, eu lia escondido, de certo modo. Escondido de mim mesmo, não é? Até que em certa época isso estourou, lá pelos anos noventa, muito tarde, aliás. Eu sou tardio, sou, como é que se diz, o “sujeito fetal”, que demora muito, que leva muito tempo. Bom, aí entram vários fatores pessoais, eu não vou entrar nos detalhes enfim, perdi minha mãe com três anos e meio, tem toda uma história. Gozado, a história do indivíduo é realmente confluência de história universal, de história do Brasil, da família, uma coisa entra dentro da outra, não é? Sobredetermina ou limita. Então, foi um longo processo. O lado pessoal tem muito peso nisso, eu não vou entrar na história toda, vou perder muito tempo para me encontrar. E nisso entram desde a situação da filosofia no Brasil até os problemas do menino tímido que perdeu a mãe muito cedo, meio esmagado pela estrutura familiar, essa coisa toda, não é? Bem, digamos, as referências eram a filosofia, mas muito pelo caminho da reflexão sobre a política. A minha relação com a filosofia foi sempre complicada, até hoje é. E, por outro lado, tem esse interesse grande por política, por história etc.

(M) Mas, invertendo essa relação, você fala do seu duplo interesse pela filosofia e pela política; essa política, da qual a filosofia fala, dialoga com facilidade com essa política do dia a dia, com esse nosso cotidiano?

(R) Bom, o dia a dia é mais complicado. O que caracterizava os grupos de extrema esquerda, nesse tempo, era a sua ignorância em matéria de Brasil e do cotidiano. Era gente que tinha certo número de coisas na cabeça que eram interessantes. Por exemplo: a gente considerava o Stalin um bandido; nessa época, na esquerda havia zero, vírgula, zero, zero, zero, zero, um, que tinha essa opinião. Bom, então, no plano internacional, apesar de muitas ilusões com o leninismo e o diabo a quatro, tinha coisas positivas — mas a gente não sabia nada de Brasil. Tinha uma visão completamente abstrata do que era o Brasil; enfim, havia interesse pela política brasileira, mas, de certo modo, esses clássicos da política caíam na nossa cabeça — essa é a minha experiência, não é? Depois vem sessenta e oito. Havia os esquemas que vinham ou dos clássicos da revolução russa ou, depois, dos cubanos e não sei mais o quê. Então, a política brasileira entrou muito, mas a gente não sabia nada.

(M) Mas a sociedade se apropria desse debate da filosofia no seu processo?

(R) Não, não. Nós, lá nessa época? Não. Quer dizer, o pessoal se lançou na história da luta armada, se sacrificou, mas é difícil dizer que...

(M) Mas mesmo para além daquele contexto, no contexto atual, por exemplo?

(R) Depois muda, depois muda. Depois a gente trata de entender o país, critica aquelas grandes coisas. Bom, para mim, foi a crítica: primeiro, a crítica do stalinismo; depois, a crítica do leninismo, foi essa a minha história em matéria de política, sem abandonar a esquerda — é essa a história. Sem abandonar a esquerda, passar da crítica do stalinismo para a crítica do leninismo. Isso foi um longo processo. Em filosofia, digamos, foi diversificar os interesses. E também pensar mais o Brasil, integrar-se mais na política brasileira — isso vem um pouco da própria crítica dos clássicos. E começou a haver um interesse cada vez maior e, digamos, a gente faz o que pode: a gente tenta seguir a política brasileira, tenta opinar... Acabei escrevendo para jornal tratando de...

(M) Mas a política é efetiva nesse debate? você acha que ela interfere de maneira efetiva no debate cotidiano sobre a política, hoje em dia?(R) O que é a intelectualidade nisso tudo, vocês podem dizer melhor do que eu, porque eu estou fora do Brasil. Acho que, em alguma medida... ...mas é um pouco difícil. Ouvi recentemente alguém que dizia que a imprensa tinha um peso grande e que atualmente não tem muito porque tem o corpo de políticos que mais ou menos controla isso tudo. Eu acho que houve, houve cada vez mais, houve um número cada vez maior de intelectuais que fizeram intervenções na política. O que isso pesa, eu tenho um pouco de dificuldade para julgar. Eu acho que a gente é obrigado a fazer isso, eu me propus a fazer, inclusive em artigos de jornal. Bom, eu tenho fases e fases. Eu vou lá e me ocupo disso, depois me retiro. Eu estou fora: tem mais esse problema. Eu me interesso pela política francesa. É pensável que isso tenha ou possa a vir a ter algum efeito — eu não sou quem está mais em evidência, muitos outros participaram. Agora, é um peso relativo. Eu acho que é um peso relativo — vamos ver para o futuro o que isso pode vir a ser, o que isso pode significar. Mas, de qualquer maneira, há hoje uma relação com o país, por parte de uma boa parte da intelectualidade da esquerda, que talvez seja mais concreta, mais viva do que era naquela época, muito marcada pelos grandes modelos e coisas desse tipo. hoje, eu acho que há um pouco mais de interesse pelo dia a dia etc. Eu tenho um certo gosto pelo individual. Eu tenho um certo gosto pelo detalhe, pelo individual, que vai a contrapelo da filosofia — que, em geral, não dá muita importância para isso. Então, eu tento compor um pouco esse duplo interesse: eu gosto muito de teoria e de coisas abstratas, não necessariamente filosóficas (filosóficas também, mas pode ser de teoria política), mas tenho muito interesse por história. Por saber o que aconteceu exatamente. E este é o capítulo final da minha história: o interesse pelas revoluções do século XX. Faz um dez anos mais ou menos, ou quinze anos, que eu retomei... — eu leio, eu continuo lendo filosofia etc., etc., mas eu retomei as minhas leituras de juventude e trabalhei muito; estou dando curso sobre isso, sobre as revoluções, com uma perspectiva muito crítica, entendeu?

(M) Esse debate sobre revoluções (particularmente se a gente pega do final do século XVIII para cá, marcadamente o início da revolução francesa, a revolução americana), pauta muito o debate posterior, eventualmente até o contemporâneo; eu quero ouvir você a respeito disso, e a respeito da política e da ética também. Esses dois temas são jogados no centro do debate. De alguma maneira, talvez a gente possa descrever o início de um ímpeto revolucionário, de construção de uma sociedade diferente a partir do projeto do século XVIII, que é um projeto iluminista e que ganha várias formas depois disso. O contexto atual não é um contexto de crise desse modelo? De crise da ideia de uma nova sociedade construída a partir do projeto no qual a filosofia tem um papel importante?

(R) Bom, eu vou continuar um pouquinho a minha história, não por narcisismo, mas porque talvez fique mais claro, e aí a gente poderia entrar numa discussão um pouco mais geral. A partir de determinado momento, me pareceu que seria preciso (eu senti essa necessidade) retomar esses trabalhos propriamente políticos, essas leituras propriamente políticas e históricas — por quê? Porque existe ainda muita confusão a respeito dessa história; quer dizer, em primeiro lugar, é preciso conhecer bem os fatos. E esses fatos não são bem conhecidos. Comecei a trabalhar a revolução russa. Bom, você sabe, ninguém fala nisso: quantos conhecem a insurreição de Kronstadt, por exemplo, a insurreição de marinheiros contra os bolchevistas? Ninguém conhece essas coisas. Tem gente que pensa que isso é velharia, na universidade tem gente que pensa que a gente está trabalhando com medalhas antigas, alguma coisa assim. E, na realidade, essas coisas a meu ver são questões essenciais para a esquerda atual.

(M) Para a filosofia também? Porque os fatos transitam mal pelos departamentos de filosofia...

(R) Exatamente; mas o meu compromisso não é com a filosofia, meu compromisso é com o pensamento e com a política. A filosofia entra aí. Eu tenho um pé na filosofia, mas eu tenho um pé fora também. Então, a partir de determinado momento, eu quebrei o formalismo de que o que eu tenho de fazer é filosofia — eu não larguei a filosofia, de jeito nenhum, mas eu comecei a trabalhar esses temas sem me preocupar com a ideia de que eu não sou historiador: eu não sou, pouco me interessa o que eu sou. Isso não me interessa. E comecei a trabalhar. E há todo um trabalho a fazer: não se conhecem os fatos, em primeiro lugar; então a empiria é a mais urgente nesse caso. Precisa começar por isso. Então vem um aluno e declara que é leninista. Está bom, você é leninista, mas escuta, você sabe o que aconteceu? Não sabe nada. Não tem ideia disso. Aluno e professor também; de vez em quando tem professor também. Então a primeira coisa é saber o que aconteceu; e aí o modelo é um pouco Aristóteles, essa coisa da empiria e de que a especulação não fica fora da empiria. Você encontra a especulação na empiria. Você pensa os fatos e de lá você tira coisas.

(M) quer dizer, você transita pela história, pela antropologia?

(R) É, eu comecei a trabalhar muito isso, e a fazer história, de certo modo. Eu quero fazer filosofia da história. Se você quer fazer filosofia da física, você tem que ser pelo menos um físico amador; se quer fazer filosofia da história, tem que ser um historiador amador, bonzinho, amador. Eu até me meti a estudar russo, por exemplo. É muito difícil, é tarde, mas até isso eu faço atualmente. Não sei se é muito sério, porque é tarde e difícil, mas até isso eu tento fazer. Bom, então tem esse trabalho a fazer e eu acho que ele é essencial, principalmente no Brasil. A primeira coisa é saber o que aconteceu — a primeira coisa é saber que precisa saber disso. E você diz: “os filósofos não se interessam”. Não é que os filósofos não se interessam: os filósofos não se interessam, os “politólogos” não se interessam também. Os historiadores, no Brasil, quando se interessam, estão preocupados com outros problemas, e quando se interessam por esse problema, salvo muito poucas exceções, é gente ainda muito ligada à tradição — porque o que eu estou fazendo com colegas são coisas críticas. Nós fizemos um colóquio sobre revolução russa, trouxemos gente de vários países, tudo uma leitura crítica disso, não é? Acho que isso é essencial. Para começar, a gente vê que isso escapa da universidade: na USP não tem um curso sobre nazismo, um curso sobre comunismo. A história do século XX escapa pelos dedos. Nem filósofos se interessam, nem historiadores. Talvez se interessem um pouco, mas, por várias razões, não entram nisso; e “politólogos”, cientistas políticos também não entram. Então existe esse problema. Mas para terminar esse tópico, eu acho que essa é uma batalha. Ao mesmo tempo, a filosofia está aí; eu me interessei muito por problemas de humanismo e anti-humanismo, isso está muito ligado à questão da fundamentação da política. Pois é: esse problema está meio vivo, porque agora tem uma espécie de ofensiva do anti-humanismo, reaparece o anti-humanismo porque há na esquerda, eu diria, a confusão, a ignorância histórica, a confusão teórica e a insuficiência na teoria política, na teoria das formas sociais. Então, eu diria que há coisas a fazer em filosofia, em história e em ciência política. É claro, não vou fazer tudo isso, mas você tem blocos de pessoas que podem fazer isso.

(M) Mas você descreve então o seu trabalho diluindo um pouco as fronteiras dessas coisas e transitando...

(R) Ah, sem dúvida; não, sem dúvida. Essa é a minha coisa.

(M) você sempre fala da necessidade de quem trabalha com filosofia transitar por outras áreas, não é?

(R) Bom, todo mundo faz isso um pouco, mas acho que insuficientemente; tem riscos nisso. Isso pode dar em ecletismo e tudo mais. Tem riscos, mas é essencial e, nesse sentido, eu acho que os frankfurtianos (Adorno etc., etc.) são um grande exemplo. Entre os franceses, bom, todos eles leem muitas coisas, mas há uma referência excessiva à sua especialidade — isso vale para os filósofos, vale para os politólogos, etc. Os frankfurtianos são os que melhor quebram isso. O Adorno, em primeiro lugar; e isso tem a ver com a organização de ensino na Alemanha, porque eles estudam duas coisas.

(M) E a filosofia dialoga necessariamente com o resto...

(R) Muito. E os franceses não. Os franceses não fazem isso, eles vão ler. Na França, acho que o melhor exemplo — bom, todo mundo leu outras coisas, o Sartre lia tudo, fazia romance etc., etc., mas eu acho que o exemplo do sujeito que domina bem problemas externos é o Merleau-Ponty. É o sujeito que mais dominou, que mais sabia política. Filósofo que sabe política. Mas eu iria até mais longe. Eu gostaria de um ideal em que você faz coisas quase históricas...

(M) E, nesse debate, como se relaciona a questão ética com a questão política que você vem apresentando?

(R) Bom, é complexo o problema, não é? Porque as relações são muito variadas, difíceis. Nesse problema de fundamentar a política — fundamentar ou não fundamentar -, aparece a ética, porque a ideia de uma fundamentação pura e simples da política acaba redundando num certo tipo de ética. E era esse o problema. Mas, se você quiser, vamos tentar partir um pouco de coisas mais concretas. As relações aí vão aparecer em vários níveis. Dentro da política, você tem... bom, primeiro, esse problema clássico nos leva à questão da violência, que é um problema político, é um problema ético. Então, é por aí. Esse é o caminho, digamos, clássico, da relação entre ética e política dentro da esquerda. Tratava-se de escapar da ideia de uma política fundada numa ética, na ideia de um bem e alguma coisa desse tipo. Numa ética totalmente posta.

(M) Porque o debate sobre ética costuma ser relacionado à ideologia, não é?

(R) Pois é. Porque ela poderia descambar na ideologia e, ao mesmo tempo, para evitar a ideia de uma política que seja violência pura, uma política sem princípios. Então, de certo modo, a solução estava nos princípios, mas princípios negados, no sentido técnico. Princípios que são neutralizados, como se a ideia do bem estivesse lá, mas de uma maneira prudente, para que ela não se transformasse em ideologia, entendeu? Quer dizer, a fala do bem etc., em política, pode virar ideologia e justificação de coisa ruim, mas se você não falar nada pode virar pura violência. Então, esse é o estatuto clássico da discussão sobre os fundamentos de uma política interna e política revolucionária. Esse é um nível da discussão. Mas existem outros níveis. hoje, se coloca o problema da corrupção dentro da política, que é um nível mais empírico, mas tem a ver com aquele também, por caminhos que seria preciso explicar melhor. Ele vai aparecer muito, vai surgir muito num momento em que você abandona uma perspectiva pura e simplesmente revolucionária. Porque, se você tiver uma perspectiva pura e simplesmente revolucionária, o problema da corrupção em política aparece como um problema secundário na tradição. Mas, no momento em que você abandona um projeto utópico de sociedade transparente e coisas desse tipo, o real passa a ter grande importância e o problema da honestidade, da seriedade, no interior de uma sociedade democrática, passa a ser importante. Na realidade, o que passa a ser sério é a democracia, a sociedade democrática que os revolucionários não respeitavam, não levaram a sério. No momento em que isso aparece, o problema da corrupção passa a ser absolutamente essencial — e isso o pessoal não entende muito bem, porque está preso a uma determinada perspectiva. Esse é o segundo nível. Outra coisa que eu gostaria de dizer é que a ética, independentemente da política, a ética interessa nessa história. Acho que seria preciso pensar o problema da ética — eu sou finalmente muito simpático ao kantismo, na ética; não sou kantiano, mas acho que há coisas profundas por trás disso. Houve uma espécie de liquidação da ética que veio de todo lado. Vem do Marx, vem do Nietzsche — Schopenhauer não, Schopenhauer é exceção nisso -, os lógicos... bom, e o senso comum, a ideia da ética como...

(M) Mas, nessa sua descrição, me pergunto se, no debate sobre o fundamento, não aparece uma contradição entre a ética e política — a política como fundamento da ética não é uma negação da política?

(R) Pois é, mas de que tipo de negação se trata? Você encontra a negação, ela está presente no esquema clássico, no melhor esquema clássico ela tem que estar lá. Como se fosse reguladora. Mas ela não tem que ser posta como ideia do bem etc., porque aí vira ideologia. Esse é um problema clássico. Hoje, eu já daria um pouco mais de lugar para a ética. Depois que você reflete sobre os problemas do século XX... Eu acho que há uma verdade nesse argumento da crítica da ética que se transforma em ideologia, mas há também uma verdade na crítica inversa. Já na posição clássica, você tinha alguma coisa de intermediário entre a posição da violência e a posição da ética. Eu diria que há uma nova camada se você refletir a respeito do que aconteceu no século XX; você dá mais lastro para a ideia do “não podemos”. “Não posso”, não posso matar um milhão de pessoas ou quinhentas mil pessoas em nome da realização de um objetivo. Não se justificava isso propriamente, mas, digamos, a tradição não tinha muitos instrumentos para dizer “não” para este tipo de coisa.

(M) A ética aparece como limitadora da política?

(R) Como limitadora da política. Mas acho que a ética não é só isso. Isso é minha posição. Acho que a ética tem um domínio particular. Estou convencido de que é preciso cultivar a ideia de ética no plano individual. Isso é de certo modo desvalorizado. Mas ela vai aparecer e vai ter importância em vários campos. Na universidade, porque a gente tem o macrossocial, é preciso não pensar a política e a ética. Tem várias políticas. Você tem o macropolítico e o micropolítico, e vários micropolíticos: a política da universidade, a política da educação. você tem vários níveis, até que você chega a uma espécie de problemas de ética individual. E você não pode deixar de refletir sobre esses problemas de ética individual. E é preciso entender, por um lado, a ligação entre elas e, por outro, a separação. No seguinte sentido: acho que há muita confusão entre esses planos. Sem dúvida eles se interpenetram em muita coisa, mas no julgamento não se deve confundir o juízo político e o juízo ético. Para dizer a coisa de uma maneira grosseira, tem gente que não vale nada eticamente e que politicamente não é tão ruim, e vice e versa. São esferas diferentes e o pessoal confunde muito isso.

(M) Mas, de alguma maneira, essa confusão não é fundamental? De fato, não há um conflito entre o juízo político e o juízo ético?

(R) Não é só isso. Não é só isso. Esse é um aspecto do problema. Eu valorizaria muito. Eu valorizaria isso, por exemplo, dentro da universidade. Bom, não sei se vão dizer que minha posição é moralizante, mas eu rejeito a ideia de que os indivíduos são fundamentalmente ruins e eu rejeito a ideia de que os indivíduos são fundamentalmente bons. Existem bons e ruins, melhores e piores. Existe uma gama de opções, os indivíduos são diferentes, como existem opções na política. Isso se perdeu um pouco. Isso é importante mesmo nos seus efeitos, claro que é importante nos efeitos, mas seria importante distinguir bem essas esferas para depois combinar bem onde tem que combinar. Digo isso porque... olha, sabe qual é o modelo que domina na universidade, de certo modo? É um hiper-radicalismo político. Não em todas as esferas, mas isso ainda existe; não é só isso, não é o modelo dominante, mas é dominante em certas esferas. E um amoralismo em tudo o mais. Tem uma utopia, nós vamos realizar não sei o quê — e o resto? E na universidade? E nos concursos? E na relação com os amigos? vale tudo. Tudo vale. Isso é um pouco a figura — não é a única, mas é a figura de um certo intelectual no terceiro mundo.

(M) Está presente na sociedade também, ou você limita isso?(R) Também, também. hiper-radical, quer mudar o mundo e para o resto não há critério nenhum. Bom, um pouco é porque o mundo vai mudar mesmo, é um pouco assim. hoje já não é tanto assim. É meio atitude. Quer dizer, o desprezo pelas coisas que estão aí, tudo vale, todo mundo é igual. E, a meu ver, é preciso atacar o problema pelos dois lados. Não só pelo lado da política (que é criticar a utopia etc., etc.), mas também analisar o sujeito individualmente. Eu acredito em coisas do tipo... bom, não existe ninguém puro, mas eu acredito em coisas do tipo lealdade, seriedade nos concursos, por exemplo; eu sou por brigar, por exemplo, com o objetivo de que a gente tenha concursos nos quais não se saiba quem é que vai ganhar. Isso para mim é tão importante quanto a grande política, não menos. Não estou visando ninguém em especial, porque isso é um problema muito geral; mas é um problema que se coloca e é um problema ético. No fundo, é um problema ético, não é um problema político. É um problema de ética, e ele é mal entendido, ele é confundido com a política. O amoralismo não vem da esquerda, nem da direita, existe gente da direita que joga limpo e gente da esquerda..

(M) Então, o debate sobre a democracia é outro debate que a gente herda através de uma leitura que o vincula a uma sociedade burguesa, pela crítica que a tradição da esquerda fez a isso. Você relê isso de uma outra forma a partir do que você falou sobre ética agora?

(R) Mais ou menos. A ética entra... quer dizer, a ideia democrática é que vai representar um solo para a discussão ética, mas não é exatamente a mesma coisa.

(M) E como é que você situa então esse debate sobre a democracia no contexto contemporâneo?

(R) Bom, o debate sobre a democracia é primeiro uma discussão política. Na realidade, as duas coisas são importantes, mas digamos que, no problema da democracia, eu acho que o lado mais quente no plano político é o das relações entre democracia e capitalismo. A tradição da esquerda, que foi dominada pelo marxismo, que era hegemônico, colocava as duas coisas juntas: democracia e capitalismo. Não é que o marxismo os confundisse, mas a democracia era uma espécie de expressão, uma das expressões possíveis do capitalismo. Acho que não, acho que ele erra nisso aí. A democracia pode ser ideologizada na boca do Bush, mas acho que há uma tensão entre capitalismo e democracia. Isso, para mim, é o essencial. E, na realidade, o peso da tradição marxista fez com que se juntassem as duas coisas, e com isso, do lado comunista, se jogou fora a democracia — a criança junto com a água suja. Poderia acrescentar que, de certo modo, de um outro lado, do lado da social-democracia — cuja história não é muito bonita, mas eu acho que ela é muito melhor do que a história do leninismo, pelo menos não levou ao genocídio e coisas desse tipo -, do outro lado aconteceu a mesma coisa, mas com sinal positivo. Dizendo sim à democracia, acabou se dizendo sim ao capitalismo. Então, de certo modo, na tradição, a junção entre democracia e capitalismo não se fez e essa é um pouco a tragédia da esquerda. E isso tem que separar. Eu diria mais (essa é uma forma que eu usei recentemente, eu vou jogar aqui essa forma), tem o famoso debate sobre reforma e revolução, que não termina nunca; você diz, bom, isso é velho, isso existe, não existe; eu diria o seguinte (é uma forma à qual eu cheguei — era um pouco evidente, mas cheguei há pouco a formular assim, eu vou repetir): é que em relação à democracia é preciso ser reformista. Ninguém pode ser revolucionário em relação à democracia. quem quer ser revolucionário em democracia dá em regressão, vai acabar com a democracia, não vai para frente. E em relação ao capitalismo, em primeira instância, é preciso ser revolucionário, eu acredito. Só que, se você for democrata, ser revolucionário não irá significar acabar com a ordem institucional etc., etc. Significa uma posição radical de crítica desse sistema; isso não é crítica de todo mercado, é crítica do capital enquanto tal, do movimento do capital com expansão ilimitada, contraditória etc., etc. Então eu acho que o debate sobre reformismo e revolucionarismo é um debate que tem um certo sentido e que se resolve um pouco na ideia de que você tem que ser reformista em matéria de democracia e de certo modo revolucionário em matéria de capitalismo.

(M) De certa maneira kantiana?

(R) De certa maneira, mas só que, se você é democrata, você não quer (pelo menos não eu) soluções armadas ou coisa desse tipo, mas você faz uma crítica muito radical ao próprio sistema. Então é um progresso para além desse sistema. Enquanto que no caso da democracia, no nosso horizonte, pode haver progresso, mas é progresso de reforma. Bom, isso pode parecer uma banalidade, mas ninguém pensa assim. Pouca gente pensa assim. Em geral, é esse bloco, tem esse bloco que pesa, ou se é a favor dos dois ou se é contra os dois ou, mais comumente, há uma confusão, uma espécie de salada.

(M) Essa confusão está no texto do Marx, por exemplo?

(R) No Marx está. Eu acho que é um erro teórico do Marx, um erro político do Marx e que passa para a tradição. No terceiro mundo latino-americano, nas esquerdas etc., eu acho que há uma camada profunda de leninismo presente, mesmo naqueles que não dizem que são. A ideia de que todo mundo tem vergonha de ser reformista. Essa palavra não vende; parece que, numa editora, tem um livro que se chama “O novo reformismo”, e não vende, não vende porque tem a palavra reformismo. Reformismo é tabu. E eu acho que em relação à democracia não é preciso ter vergonha de ser reformista, se o objeto for a democracia. Porque a revolução contra a democracia (contra a democracia, não contra o capitalismo) é regressão, ela não é progresso.

(M) E se a tradição de leitura do Marx compartilha dessa confusão, onde é que você encontra interlocutor para fazer a distinção que você está fazendo?

(R) Certamente em Castoriadis, por exemplo. No Claude Lefort. Bom, são os dois principais. O último Adorno não está muito longe disso, mas, digamos, o último Adorno vai vindo lentamente até aí. Ele é um grande pensador, mas eu sinto que na política o pessoal de Frankfurt, como dizia o Oscar Negt, eles não eram muito fortes em política. Essa gente não era muito forte em política. Quem disse isso era alguém que os conheceu muito bem. Mas enfim, pelo menos tem esses dois. A Hannah Arendt, que é um caso um pouco especial para discutir, é interessante. Mas têm pelo menos esses dois que despontam claramente, e cada um faz algo um pouco à sua maneira. Acho que os dois, até certo ponto, se completam. O Lefort escorrega um pouco às vezes na coisa da democracia. Talvez o Castoriadis acerte mais, mas às vezes ele vai um pouco para o anarquismo.

(M) E, a partir daí, como é que se poderia, por exemplo, falar de socialismo neste contexto contemporâneo?

(R) Bom, aí é complicado. O que é que vocês querem? O que é o socialismo? Bom, em primeiro lugar, você deveria dizer o que é que vocês querem com o comunismo. É aquilo que está lá? É uma sociedade transparente? É uma sociedade russa? É Cuba? É o Vietnã? Bom, evidentemente isso não tem muito o que oferecer, isso não basta. É preciso dizer o que é que a gente poderia fazer. Não é fácil. Mas eu diria: uma sociedade com o máximo de liberdade — o Habermas dizia democracia radical. No plano econômico, tudo é complicado, é difícil; mas haveria, digamos, uma sociedade que desse possibilidades máximas aos indivíduos e na qual haveria desigualdade, mas pouca desigualdade — porque a ideia de uma igualdade absoluta é utópica e vira o contrário. Do ponto de vista econômico seria o quê? Uma sociedade em que... A gente é obrigado a particularizar, mas haveria mecanismos de imposto de renda muito alto como havia nos nórdicos, haveria cooperativas (que é uma ideia que se desenvolveu, mas não muito, e que existe pelo mundo afora) e, certamente, um setor nacionalizado — portanto, a ideia de Estado reaparece — e, provavelmente, um setor privado minoritário poderia existir, mas alguma coisa centrada na ideia de cooperativas, de indústrias nacionalizadas e de um imposto de renda muito alto. Então, poderia haver, inclusive, coisa privada.

(M) Mas, para fazer uma provocação a você neste contexto, esta sua descrição não flerta com o pensamento do século XVIII, com uma utopia iluminista de sociedade?

(R) Bom, o socialismo é filho do iluminismo. Então, você pode abandoná-lo, você pode aderir ao sistema. Eu acho que o sistema atual, o que a gente tem aí é um capitalismo democrático, porque tem democracia e capitalismo. Então, não é só capitalismo que a gente tem aí. A definição marxista está errada e a definição liberal também está errada. A definição liberal diz: a gente tem democracia; não tem só isso. E a definição marxista diz: a gente tem capitalismo; não, a gente tem capitalismo democrata. Mas isso existe? Existe, mas é um bicho complicado, contraditório. Pois é! Ele é um círculo quadrado, mas é assim. A realidade é essa. Tem democracia e tem capitalismo. Só que em cada país isso é variado. No Brasil, tem democracia; essa história de Estado de exceção no Brasil... não tem Estado de exceção. A polícia é violenta, é claro. A polícia é violenta, tem criminalidade, mas Estado de exceção é outra coisa; inclusive, quando tem Estado de exceção você não pode sair por aí dizendo que tem Estado de exceção. Se você pode sair por aí dizendo nos jornais, “olha, tem Estado de exceção” é porque não tem. Acho que o pessoal macaqueia, a esquerda inventou a macaqueação do pensamento da nova direita, e é essa a história do anti-humanismo. Então, eles desenterraram o Schmitt, um certo Benjamim (uma coisa é um artigo sobre a violência do Benjamim) e o Nietzsche mais à distância; tem esses teóricos mais recentes, eu prefiro não dizer o nome deles porque eles são muito ruins, tem dois, mas eu não vou dizer o nome deles. E começam a pensar a partir dessa gente; essa gente é a nova direita. Porque se volta à reflexão, ao pensamento de esquerda dos anos vinte, que era um pensamento radicalmente antidemocrático. Isso é uma tragédia. Eu lamento, vejo gente inteligente que entra nessa canoa. Essa é uma briga a fazer, além da briga pela história, por mostrar o que existe. Não digo que tenha as respostas feitas para isso, mas trata-se de pensar a noção de democracia, mas sem perder a crítica do capitalismo. É esse, não existe outro caminho. Esse caminho é fácil? Não é.

(M) Mas a descrição que você faz me dá, por exemplo, uma forte impressão da grande dificuldade que há em ter uma compreensão de totalidade dessa sociedade, da dimensão ética, da política, do capital.

(R) Pois é, mas não é tão complicado isso. O pessoal não chega a isso porque tem barreiras. Eu diria que as barreiras são duas. Tem barreiras políticas: numa certa esquerda é o peso do revolucionarismo — isso não morreu, está lá presente. E a outra eu acho que é a ideia de progresso; quer dizer, a gente tem que pensar a ideia de regressão; a esquerda nunca pensou a ideia de regressão. Começou a pensar, mas acho que mesmo o pessoal de Frankfurt não vai suficientemente longe nisso. Pensar que não só o nazismo foi regressão, mas o ciclo russo, soviético, leninista-stalinista foi regressivo. Conseguiram algumas coisas, mas por um preço absurdo, o preço do genocídio. Globalmente, eu diria que ele foi regressivo. Agora, essa ideia da regressão histórica, isto não passa pela cabeça da esquerda, nem por parte do pessoal que fala o tempo todo da crítica do progresso — isso é que é interessante. O pessoal fala o tempo todo da crítica do progresso, mas fala em termos de ecologia etc., etc., sem pensar que a grande ideologia do progresso, o grande progressismo foi o leninismo e o stalinismo. Esse é o progressismo, a ideia do desenvolvimento histórico e não sei mais o quê. Então, existem algumas barreiras. Então, aí os problemas são problemas de consciência, e existem problemas práticos imensos — esses são outros. Bom, quais são as possibilidades políticas? É tudo complicadíssimo. No Brasil, você vai fazer o quê? Mas a primeira coisa é ter a cabeça clara.

(M) Quando você fala de regressão, regressão na história, esta crítica que você faz é uma crítica moral, mas é também política?

(R) É crítica política. A história pode também ir para trás. quer dizer, o tempo histórico não vai para trás. Por exemplo, no caso do nazismo, a história evidentemente foi para trás. É claro que foi para trás. você não ganhou, você perdeu, se matou milhões e milhões. O ciclo russo, é claro, tem algumas coisas, houve progresso técnico etc., etc., mas, se você considerar as vantagens e desvantagens, foi regressão aquilo ali. A gente tem que retomar a meada...

(M) No sentido frankfurtiano?

(R) É mais. É frankfurtiano, mas eles são pouco políticos. Tem que cruzar Frankfurt com Castoriadis. Tem que pensar.

(M) A esse respeito, eu queria retomar um tema no qual a gente esbarrou lá atrás sobre o debate ético: há uma retomada do debate sobre ética em sobreposição à política na sociedade, principalmente na sociedade brasileira contemporânea. Como é que você vê isso? Uma certa visão da ética que é negação da política, negação dos espaços políticos institucionais, inclusive?

(R) Não sei bem o que você está visando, porque eu não vejo muito o debate sobre ética. Bom, surgem os problemas de micropolítica. Isso existe. Mas não sei. Ética para mim seria exigência, um certo número de exigências, e aí seriam as coisas que você não faz. É o respeito pelas formas. Isto não está muito presente. É preciso brigar. Se você faz isso, vão dizer que você é moralista. Acho que a esquerda entregou o Kant para a direita. A esquerda abandonou as ideias, e você não pode ficar só nisso. Na Europa, de certo modo, você tem um problema contrário. Você tem os direitos do homem, tem não sei mais o quê, e a crítica do capitalismo acaba indo.

(M) Mas quando você pega, por exemplo, a partir da década de 1990 em que a gente vive uma crítica forte ao Estado, o contexto de neoliberalismo, e um certo recuo do debate sobre a esfera privada que é o contexto no qual surgem essas iniciativas mais locais, que surge pelo menos naquele momento o debate sobre ecologia...

(R) Pois é, aí você se aproxima de alguma coisa, mas não é exatamente ético, eu acho. Acho que surgiu uma nova camada, aí. A gente tinha uma diferença entre esquerda e direita, diferença que não morreu, que está presente. É isso que eu queria dizer. Surgiu uma nova diferença, que é a diferença entre o totalitário e o não totalitário. A gente tem um quadrado, tem duas opo- sições. Quando você fala de um sujeito, ele é de esquerda, você quer saber se ele é totalitário ou não. Porque o Stalin era esquerda, a não ser que você defina a ideia de esquerda de maneira a não incluir estes monstros, mas é mais complicado. Acho que o mais interessante é dizer que há uma diferença entre esquerda e direita, mas há uma diferença entre totalitários e não totalitários. Em grandes linhas, o totalitário de esquerda é pior que o democrata de direita. Em grandes linhas. Sei lá, o De Gaulle é melhor que o Stalin, se você quiser; isso em grandes linhas, porque é mais complicado. Mas surgiu uma outra coisa: porque era ecologia, tinha um movimento de crítica do progresso, se você quiser, do progresso na maneira clássica de pensar as coisas. Isso, para mim, não é imediatamente ética, é uma nova dimensão que, eu acho, é uma das esperanças para a esquerda atual. Porque o modelo comunista acabou, ele vai se arrastando, tem no Brasil um pensamento fóssil que não vai para adiante. Infelizmente, tem essa coisa do anti-humanismo, que engana muito porque é moderna e não sei mais o quê. E tem a social-democracia. A social-democracia não se aguenta muito, o balanço dela é melhor, tem uma experiência nórdica que é boa, mas ela vem perdendo a velocidade, veio a crise e ela deveria ganhar e ela não está ganhando. Bom, quem é que está ganhando? Quem está ganhando na Europa são forças novas, e dentre essas forças os verdes têm um peso muito grande. Acabou de haver um problema francês, a eleição europeia francesa em que houve a aliança dos verdes com gente preocupada com ética.

(M) Uma última pergunta: quando você faz essa exposição, a questão da ecologia é um tema que aparece muito no debate brasileiro hoje, pela própria condição do Brasil. Minha pergunta é: o quanto a filosofia — dentro da escola, especificamente, porque ela está presente hoje na escola brasileira — participa desse debate, ou participa de maneira mais ampla desse debate sobre a sociedade?

(R) Muito atrasado. É tudo muito atrasado. Tem o peso do leninismo. Não é a filosofia que vai resolver isso, a filosofia universitária; eu não vou falar mal do que se faz, é bom trabalho, é tudo sério; mas, primeiro, ela é muito técnica, o pessoal fica lá com os seus problemas técnicos. Quando se trata de pensar os problemas gerais, não há muito, a meu ver. Não há muito porque é muito clássico. Primeiro, se perde o rigor quando se passa a discutir política, entendeu? E não é da filosofia que eu espero vir isso; a filosofia entra como um componente de reflexão. Mas só para retomar a história da ecologia: eu acho que na França houve isso, na Alemanha existe, e agora todo o problema será a fusão da reflexão ecológica (que é uma reflexão que apareceu na esquerda, mas também na direita) com o que resta das tradições. Isso é um pouco fácil, o que eu estou dizendo, mas uma parte dessas forças ligadas à social-democracia será salva, digamos. Tem a ecologia e, na Alemanha, por exemplo, tem uma parte das forças ligadas à extrema esquerda que está se reorganizando. Disso tudo, desse caldo todo pode sair alguma coisa boa a meu ver. É um pouco otimista e fácil dizer isso, mas isso é um processo que está havendo lá, na França e na Alemanha, nestes dois países; nos outros, eu não diria.

(M) Obrigado, professor Ruy Fausto.

(R) Eu é que agradeço.


Inclusão: 02/05/2020