O Fim da União Soviética Não é o Fim do Comunismo

Álvaro Cunhal

Abril de 1995


Fonte: Revista Princípios nº 38, ago-out/1995, pag: 42-47.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.
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O capitalismo não é a etapa final da história, como alardeia a mídia burguesa; são os comunistas que indicam o caminho para resolver os problemas da humanidade

No ultimo mês de abril, o presidente do Conselho Nacional do Partido Comunista Português visitou o Brasil a convite do Centro Cultural 25 de Abril, para comemorar com os brasileiros e a colônia portuguesa o vigésimo- primeiro aniversário do movimento popular e militar que passou à história como Revolução dos Cravos.

Álvaro Cunhal fez, em nosso país, inúmeros contatos políticos, proferiu palestras, realizou reuniões com ativistas sindicais, debateu com intelectuais e estudantes questões candentes do mundo contemporâneo. Entre esses encontros, destacamos a reunião realizada com a direção nacional do PCdoB, ocasião em que os dois partidos fizeram uma profícua reflexão conjunta sobre problemas políticos e ideológicos de grande atualidade, e reafirmaram a convicção nos valores e ideias socialistas.

Nesta entrevista, o veterano dirigente comunista português faz um balanço do processo revolucionário vivido em seu país a partir do 25 de abril de 1974, destacando seu caráter democrático e popular, o alcance das suas conquistas e o papel desempenhado pelo Partido Comunista Português.

De grande interesse são as suas análises sobre os componentes e vertentes inseparáveis da democracia e sobre a defesa da soberania nacional portuguesa, hoje seriamente ameaçada pela integração na União Europeia, “dominada e comandada supranacional mente”, na opinião de Cunhal, “pelos países mais poderosos e pelas transnacionais

Nas páginas que seguem, o leitor conhecerá também a opinião do dirigente comunista português sobre as causas que levaram à derrota as primeiras experiências de construção do socialismo na União Soviética e no Leste europeu, uma análise crítica que não perde de vista o inestimável valor histórico da Revolução de Outubro de 1917, da criação da União Soviética e da construção do socialismo. No texto, Cunhal reafirma enfaticamente sua noção de que “o século XX não é, como proclamam alguns, o século da morte do comunismo, mas o século em que o comunismo nasceu Em tempos de abjuração e apostasia, encontramos nas declarações de Al varo Cunhal uma firme defesa da identidade comunista do Partido, do socialismo e das ideias de Marx, Engels e Lênin.

As ilustrações desta matéria são fragmentos dos Desenhos da prisão, do artista Álvaro Cunhal

José Reinaldo Carvalho

Entrevista à Revista Princípios

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PrincípiosDuas décadas depois, como se pode avaliar o processo revolucionário que liquidou a ditadura fascista em Portugal?

Cunhal — A revolução portuguesa dos anos 1974 e 1975 constitui um glorioso empreendimento libertador do povo português e um momento imorredouro na história da nação portuguesa.

A questão colocada utiliza muito corretamente a expressão “processo revolucionário”. De fato a revolução democrática portuguesa não foi, como alguns afirmam, um golpe militar, mas uma insurreição militar e popular que transformou profundamente a sociedade. O levante militar conduzido pelos “capitães” do Movimento das Forças Armadas (MFA) levou à rendição o governo fascista e foi imediatamente seguido de um levante popular cm nível nacional, fundindo numa mesma e impetuosa corrente revolucionária o povo e as forças armadas. Isso imprimiu uma nova dinâmica e objetivos mais avançados ao processo de conquista, instauração e institucionalização do novo regime democrático.

PrincípiosQuais as principais conquistas da Revolução?

Cunhal — Conforme o Partido Comunista Português (PCP) definiu no seu VI Congresso, realizado na clandestinidade em 1965, a ditadura fascista era o governo terrorista dos monopólios (associados ao imperialismo estrangeiro) e dos

latifundiários. Além dessa natureza de classe, uma característica específica da situação era o fato de Portugal, com império colonial na África, ser um país efetivamente colonizado na Europa. Dessa situação decorriam os objetivos definidos pelo PCP para a revolução antifascista: a conquista da liberdade como primeiro e central objetivo, do qual dependiam todos os outros; a liquidação do poder dos monopólios e o desenvolvimento econômico geral; a reforma agrária com a liquidação dos latifúndios e a entrega da terra a quem trabalha; a elevação do nível de vida das classes trabalhadoras e do povo cm geral; a democratização da instrução e da cultura; a libertação de Portugal do imperialismo; o reconhecimento do direito à imediata independência aos povos das colônias portuguesas; e uma política de paz e amizade com todos os povos. Esses objetivos foram comprovados como necessidades concretas no processo revolucionário.

Foi instaurado um regime político democrático avançado, com reconhecimento das liberdades e direitos dos cidadãos; órgãos do poder interdependentes e responsabilizados; poder municipal descentralizado e ligado às populações; leis eleitorais com o princípio da proporcionalidade; formas de democracia representativa; formas diversas e criativas de democracia direta e participativa.

Foram liquidados os grupos monopolistas com a nacionalização da banca e das empresas e setores básicos da economia. Uma reforma agrária expropriou os latifúndios e constituiu cerca de 550 Unidades Coletivas de Produção (UCPs/Cooperativas), que asseguraram um rápido desenvolvimento agrícola, o fim do desemprego na região e o melhoramento das condições de vida das populações. Trabalhadores, mulheres, jovens e idosos tiveram seus direitos fundamentais reconhecidos, e a situação das camadas desfavorecidas melhorou. O ensino e a cultura se democratizaram. A criminosa guerra colonial teve fim, reconhecendo-se aos povos submetidos ao colonialismo português o direito a imediata autodeterminação e independência. O isolamento internacional foi rompido, com o estabelecimento de relações com numerosos Estados de todos os continentes.

Essas transformações revolucionárias se realizaram no curto período de um ano e meio. Desde 1976, sucessivos governos tentaram destruí-las sem sucesso — o que comprova o quanto tais mudanças correspondiam às necessidades objetivas e aspirações profundas do povo português.

PrincípiosAs forças reacionárias têm investido contra essas conquistas. Como está essa situação?

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Cunhal — As forças reacionárias procuraram, logo a partir do primeiro dia da insurreição, sabotar as transformações democráticas, organizar provocações, golpes de Estado, golpes militares, ações terroristas, para abafar o movimento popular, subjugar os elementos progressistas do MFA e assaltar o poder. Deve-se ter cm conta uma particularidade da revolução portuguesa: a Junta de Salvação Nacional, inicialmente instituída pelos militares, era composta e dominada por generais reacionários, tendo como presidente o general Spínola. Este foi, nos anos de 1974 e 1975, o promotor direto de sucessivos golpes e tentativas de golpe contrarrevolucionários, sem êxito. Os Governos Provisórios, com participação do PCP, eram constituídos por partidos e forças muito contraditórias. As grandes conquistas democráticas (a começar pelas liberdades fundamentais, a legalidade dos partidos, a libertação dos presos políticos e a extinção da criminosa polícia política) não foram concedidas pelo poder (Junta de Salvação Nacional e Governo Provisório), mas conquistadas pela ação revolucionária dos trabalhadores e das massas populares, aliados aos setores progressistas do MFA. A revolução portuguesa mostrou que, num processo revolucionário, as massas populares podem realizar profundas transformações na sociedade, mesmo não dispondo do poder político. Mas, por outro lado, confirmou também que as grandes conquistas ficam comprometidas e podem acabar por perder-se, se o poder não for alcançado e continuar ocupado por forças contrarrevolucionárias.

Assim foi de fato. A partir de 1976, depois de um processo irregular e acidentado que levou à liquidação do MFA (novembro de 1975), sucessivos governos empreenderam passo a passo a liquidação das grandes conquistas da revolução democrática, perseguindo o objetivo estratégico de reconstituição e restauração do poder dos grandes grupos monopolistas e dos grandes latifundiários. Tais governos foram do Partido Socialista (PS) sozinho, do PS coligado com o Centro Democrático Social (CDS), do PS coligado com o Partido Social Democrata (PSD), do PSD coligado com o CDS, e do PSD sozinho.

Num escandaloso processo de privatizações desenvolvidas num pântano de ilegalidades e corrupção nas mais altas esferas do poder, esses governos entregaram e entregam as empresas, os setores básicos da economia e tudo o que é rentável aos grupos monopolistas associados às transnacionais. Isso tem significado, em muitos casos, o domínio estrangeiro sobre alavancas fundamentais da economia portuguesa. A reforma agrária foi liquidada, restaurando-se os latifúndios e o poder dos latifundiários, o que significa a eliminação de 50.000 postos de trabalho, desemprego em massa, terras abandonadas, emigração, desertificação de regiões inteiras. A exploração, o desemprego e o trabalho precário se agravaram, e muitos dos direitos vitais dos trabalhadores foram suprimidos. A ação desses governos diminuiu drasticamente as obrigações do Estado no domínio da saúde, da educação e da habitação e perverteu anticonstitucionalmente o funcionamento das instituições, com vistas a um poder absoluto e impune.

É uma situação de desastre nacional a que é imperioso pôr fim. É nesse sentido que lutamos. As eleições para a Assembleia da República que terão lugar no dia Io de outubro de 1995 têm um significado particularmente importante. Lutamos para afastar a direita do poder e por uma alternativa democrática, certos de que o PS sozinho no poder continuaria a mesma política de direita, e que não é possível uma alternativa democrática à política atual sem a participação do PCP.

PrincípiosQual o papel do Partido Comunista Português no processo revolucionário do 25 de Abril em 1974 e nos anos seguintes?

Cunhal — Logo nas primeiras horas do levante militar, antes da rendição do governo fascista cercado pelas forças do MFA e pelas massas populares, as nossas organizações e militantes intervieram ativamente, promovendo grandes manifestações de massa, aparecendo com as bandeiras e a afirmação corajosa do Partido. Com as massas populares, contrariamos as decisões dos generais da Junta de Salvação Nacional, que queriam obrigar o povo a se recolher às suas casas, impedir a legalização dos partidos, manter a sinistra polícia política (PIDE-DSG), atrasar e excluir os comunistas da libertação dos presos políticos. Poucos dias depois do 25 de Abril, no dia Io de Maio, uma gigantesca manifestação e comício em que interviemos marcou a poderosa participação da classe operária e do PCP no processo revolucionário. Na luta contra a ditadura, no processo revolucionário e no atual enfrentamento da política reacionária, a ação de massas foi — e continua sendo — uma direção fundamental e prioritária da ação do partido.

Ao mesmo tempo, participamos ativamente nas instituições: em 1974 e 1975, nos quatro primeiros Governos Provisórios; em 1975 e 1976, nas eleições para a Assembleia Constituinte, elegendo 30 deputados; na elaboração e na aprovação da Constituição da República, com papel destacado; nos órgãos municipais provisórios e na direção dos municípios em vastas regiões onde ganhamos as eleições. Elegemos deputados para o Parlamento Europeu, e eu próprio fui muitos anos (1982-1992) membro do Conselho de Estado.

A associação da luta institucional e da luta de massas é uma constante da nossa intervenção e ação na vida nacional.

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PrincípiosO último Congresso do Partido Comunista foi realizado sob o lema “Socialismo e Democracia em Portugal”. Aprovaram-se resoluções e um Programa que apontam para a luta pelas cinco vertentes da democracia em Portugal. Poderia o camarada discorrer sobre o assunto?

Cunhal — Quando se definem as grandes linhas de uma política democrática, são geralmente referidas as áreas política, econômica, social e cultural. Nossa experiência na luta contra o fascismo, na Revolução de Abril e instauração do novo regime democrático e na resistência à contrarrevolução, conduziu-nos a um aprofundamento dessa problemática.

Ao contrário do que afirmam as forças do capital, reacionárias e conservadoras, não são quatro áreas que possam ser consideradas independentes, e sim quatro componentes ou vertentes inseparáveis da democracia, e também quatro componentes inseparáveis de uma política contrarrevolucionária ou antidemocrática.

A reconstituição e restauração do capitalismo monopolista, processo de centralização e acumulação do capital, tem como componentes a maior exploração dos trabalhadores e das massas laboriosas em geral; o elitismo no domínio da cultura; as limitações, discriminações e perversões das liberdades e direitos dos cidadãos e do regime político sujeito às alterações que garantam a continuidade das forças no poder.

Ao contrário, uma política verdadeiramente democrática exige não só democracia política, mas democracia econômica, social e cultural.

No programa do nosso Partido, aprovado no XIV Congresso, são indicados e desenvolvidos quatro objetivos ou componentes fundamentais inseparáveis: um regime de liberdade com um Estado democrático; um desenvolvimento econômico com um forte setor do Estado nas empresas e ramos estratégicos; uma política social que garanta o melhoramento das condições de vida do povo; e uma política cultural que assegure o acesso à livre criação e fruição culturais.

No caso português, acrescentamos ainda um quinto componente e objetivo: o nacional. A integração de Portugal na União Europeia é um obstáculo utilizado pelas forças reacionárias a uma opção política verdadeiramente democrática no país. A União Europeia é dominada e comandada supranacionalmente pelos países mais poderosos e pelas transnacionais, o que significa a perda de elementos fundamentais de soberania e independência nacional portuguesa.

PrincípiosComo está Portugal no quadro da integração à União Europeia?

Cunhal — Dada a natureza da União Europeia e a política de capitulação nacional de sucessivos governos, Portugal está sendo tratado como um país periférico, cujos interesses vitais são sacrificados aos interesses dos países mais ricos e poderosos. O Tratado de Maastricht, de objetivos federalistas, estabelece a obrigatoriedade de “uma política comum” da União Europeia, à qual se devem submeter as políticas dos países membros. Isso diz respeito às diferentes políticas: econômica e financeira, orçamentária, industrial, agrícola e de pescas, de defesa e de segurança e, também, externa e militar. Quem decide a política comum são as instâncias supranacionais, cm que as decisões acabam por ser impostas pelos três mais ricos e poderosos — a Alemanha, a França e a Grã-Bretanha.

Os resultados estão à vista. Por imposição da União Europeia e pela orientação antinacional de sucessivos governos de Portugal, leva-se a cabo um processo sistemático de desindustrialização, arruínam-se a agricultura e a pesca, o mercado interno é invadido por produtos importados, agravam-se os déficits energético, agroalimentar e tecnológico. Em tal situação, atinge as raias do crime o envio para Portugal de fundos para pagar a agricultores para não produzirem, ou para enterrarem os produtos, sob pretexto de não estarem estes cm conformidade com as normas comunitárias.

Não somos partidários do isolamento internacional nem de soluções autárcicas. A internacionalização dos processos produtivos, a divisão internacional do trabalho, a cooperação científica e tecnológica e os sistemas de integração são necessidades objetivas do desenvolvimento neste final do século. Mas devem desenvolver-se no quadro da cooperação de Estados livres e iguais, e não cm situações de dominação e exploração dos mais atrasados e mais fracos pelos mais poderosos.

Em relação ao nosso pais, consequentemente, defendemos que o governo lute na União Europeia pelos interesses portugueses, invocando a aplicação de princípios que, em termos dos tratados, são reconhecidos mas não têm sido respeitados, como os interesses vitais de Portugal, a característica específica da agricultura, os prazos de aplicação das medidas decididas, a necessidade de não contradizer a proclamada coesão econômica e social etc.

PrincípiosComo pôde o Par lido Comunista Português sobreviver a quarenta e oito anos de perseguições do regime fascista e ainda emergir do processo revolucionário como uma organização de vanguarda influente e estruturada?

Cunhal — A luta e o desenvolvimento do PCP nas duras condições de clandestinidade tiveram um processo muito difícil e acidentado. Nos quarenta e oito anos de resistência ao fascismo e de luta pela liberdade, foi praticamente o único partido que, através da dedicação e coragem de gerações de militantes, fez frente à repressão e desenvolveu permanentemente uma atividade política. Perseguições, torturas na polícia por vezes até à morte, pesadas condenações, camaradas que chegaram a estar presos mais de vinte anos, assassinatos de militantes, não impediram a atividade constante do Partido. Entre os elementos que permitiram ao PCP tornar-se, nas duras condições de clandestinidade, um grande partido nacional, contam-se um forte núcleo dirigente inteiramente dedicado; um aparelho e organização clandestinos; a publicação de imprensa clandestina, principalmente do órgão central do Partido (Avante!) sem interrupções nos últimos trinta anos da ditadura; uma ação política constante; a iniciativa de movimentos unitários; a associação da atividade ilegal, semilegal e legal. Mas o elemento fundamental e determinante foi a criação de profunda ligação e indestrutíveis raízes na classe operária, nas massas trabalhadoras, e isso significa a criação não apenas de apoio à ação do partido, mas participação e empenho, desenvolvimento constante da luta de massas em todas as frentes, reforço e renovação do próprio partido e da sua direção por militantes vindos dos locais de trabalho, das massas, com sua rica experiência.

Assim foi na revolução democrática e nas conquistas revolucionárias, e assim tem sido na situação atual.

PrincípiosComo analisar as causas que levaram à derrota as primeiras experiências de construção do socialismoUnião Soviética e Leste europeu?

Cunhal — Antes de mais nada, é necessário confirmar e afirmar que a revolução socialista de 1917, as transformações, conquistas e realizações na construção da sociedade socialista, a criação da União Soviética e o poderoso impulso dado à luta libertadora dos trabalhadores e dos povos do mundo ao longo do século XX constituem acontecimentos históricos, que os comunistas, as forças revolucionárias e os trabalhadores têm justo motivo de considerar grandes aquisições do patrimônio revolucionário. Temos afirmado que o século XX não é, como proclamam alguns, o século da morte do comunismo, mas o século em que o comunismo nasceu, pois foi e é no século XX que, pela primeira vez cm milênios de história, o sentimento de injustiça, a revolta, o sonho e a utopia se tornaram um projeto político, uma luta revolucionária, e o ser humano empenhou-se concretamente na construção efetiva da nova sociedade.

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Em nosso entender, a grande derrota da construção da nova sociedade na União Soviética e no Leste da Europa não significa derrota e fracasso do ideal e objetivos do comunismo, mas derrota e fracasso de um “modelo” que, numa evolução complexa, se afastou desse ideal e desses objetivos.

Ainda antes da derrocada da União Soviética, o nosso Partido realizou, cm maio de 1990, um Congresso extraordinário (o XIII) cm que procedeu a uma primeira análise dos graves acontecimentos no Leste da Europa. É um tema que necessita de aprofundamento, e sobre o qual estamos sempre interessados em conhecer as análises de outros partidos, como contribuição para a nossa reflexão. Temos como certas, entretanto, até hoje, algumas das conclusões acerca das grandes derrotas na construção do socialismo.

Assim o poder político dos trabalhadores e a democracia política “mais rica que a mais democrática das democracias burguesas” acabaram por dar lugar a um poder e a um Estado altamente centralizados, cada vez mais distantes da intervenção e da vontade das massas populares, e tendendo, como norma, a substituir soluções políticas por decisões administrativas e processos repressivos. Acabaram por dar lugar a uma estatização excessiva da economia, a uma planificação decidida longe das realidades do aparelho produtivo e da experiência dos trabalhadores e indiferente ao mercado como realidade objetiva. No partido, o centralismo democrático acabou por ser concebido e praticado com o enfraquecimento da intervenção democrática da massa de militantes e com uma centralização burocrática e intolerante da direção, com esta distanciando- se cada vez mais da base e dos sentimentos e aspirações das populações. A cristalização e dogmatização do marxismo-leninismo, impostos como ideologia do partido e do Estado, incapacitou uma análise objetiva das novas situações, dos novos fenômenos, das novas realidades.

Os acontecimentos são para nós uma advertência de que a repetição de traços negativos de um tal “modelo” poderá conduzir, no futuro, a semelhantes derrotas.

As conclusões nesta matéria não são apenas importantes cm termos de análise histórica. São importantes também em termos de experiência, de ensinamentos, de maior rigor na definição de situações, das perspectivas e do próprio projeto da sociedade socialista, que nós, comunistas portugueses, continuamos a ter como objetivo.

PrincípiosQue significa a cristalização da teoria, e como se luta contra ela? Como relacionar, por exemplo, o combate ao dogmatismo com a defesa e renovação dos princípios?

Cunhal — Confirmar o marxismo-leninismo como teoria revolucionária dos comunistas não pode significar que se considerem como válidas, neste fim do século XX, todas as análises e conclusões teóricas de Marx e Lênin na sua época. Passaram-se 150 anos desde a realidade do capitalismo em que o Manifesto Comunista e O Capital foram editados, e 100 anos desde a nova realidade do capitalismo analisada criativamente por Lênin na sua célebre obra O imperialismo, estágio supremo do capitalismo. Desde então, houve profundas transformações econômicas, sociais, científicas e tecnológicas. Não se pode substituir a análise das novas realidades pela citação acrítica de textos que respondiam a realidades diferentes e distantes, e tomadas como “princípios” de validade intemporal. E isso foi feito com frequência no movimento comunista ao longo do século, numa cristalização e dogmatização que limitaram e, por vezes, incapacitaram a análise e a compreensão de novos fenômenos e realidades, e uma resposta criativa e correta, teórica e prática. A teoria tem um desenvolvimento próprio, produto da inteligência de sucessivas gerações. Mas nasce da realidade, e a ela responde.

Há “princípios” comprovados pela vida. Mas a sua validade exige, ao mesmo tempo, desenvolvimentos criativos acompanhando as mudanças da realidade.

Assim, por exemplo, são válidos e comprovados pela ciência e pela vida o materialismo dialético e a ideia de que o sobrenatural é criação do homem, produto do seu insuficiente conhecimento da realidade. E válido o materialismo histórico, e neste o papel das estruturas socioeconômicas e da luta de classes como determinantes da evolução das sociedades e da natureza do Estado. São válidas as teorias do valor e da mais-valia, assim como a definição da natureza exploradora e agressiva do capitalismo e do imperialismo atuais. São válidos e comprovados pela história do século XX o projeto revolucionário e o empreendimento da construção de uma sociedade libertada de exploração, desigualdades, injustiças e flagelos sociais do capitalismo — uma sociedade socialista.

Mas, em todas e em cada uma dessas áreas do conhecimento e da teoria, a análise da realidade, a resposta teórica e o desenvolvimento da ação não devem estar condicionados à ideia de que já se é senhor de verdades eternas. A criatividade e um elemento integrante da teoria revolucionária dos comunistas.

PrincípiosEm que termos se pode afirmar a atualidade e a vigência da luta pelo socialismo no quadro político e ideológico do mundo contemporâneo?

Cunhal — A luta pelo socialismo, neste final do século XX, oferece novas dificuldades, com o desaparecimento da União Soviética, a resultante alteração radical da correlação de forças e a nova ofensiva do imperialismo para recuperar e impor a sua hegemonia mundial. Algumas realidades são, porém, incontestáveis. O capitalismo mantém a sua natureza exploradora e agressiva, e não só não resolve como agrava os grandes problemas da humanidade. A luta contra a exploração, a opressão, as cada vez mais gritantes desigualdades e injustiças sociais, as agressões, intervenções e guerras contra a liberdade e a opção dos povos não só é necessária, como o seu desenvolvimento é inevitável. As contradições e as crises do capitalismo geram os fatores da sua própria destruição. O capitalismo não é um sistema final. Os comunistas continuam a indicar o justo caminho para a solução dos grandes problemas da humanidade. E com os comunistas novas forças nascem e se desenvolvem. E tarefa intensificar a cooperação e a solidariedade, e, sempre que possível, a ação comum de todas essas forças. A convicção e a coragem dos comunistas são particularmente necessárias e podem ser determinantes no momento atual.


Inclusão 01/10/2019