Cinco Notas sobre Forma e Conteúdo

Álvaro Cunhal

Setembro de 1954


Primeira edição: publicado na revista ‘Vértice’ nº 131-132 de Agosto-Setembro de 1954, sob o pseudónimo de António Vale, foi enviado clandestinamente do Estabelecimento Prisional de Lisboa, onde Álvaro Cunhal estava encerrado. Foi uma das peças centrais da polémica forma-conteúdo que grassou então nos meios neo-realistas, opondo Cunhal e António José Saraiva a Fernando Lopes-Graça, Mário Dionísio e João José Cochofel. Durante muito tempo a real identidade do autor permaneceu por esclarecer. As posições aqui expressas seriam reforrmuladas, desenvolvidas, ilustradas e parcialmente retificadas, muito mais tarde, em ‘A arte, o artista e a sociedade’, Editorial Caminho, Lisboa, 1996. Entre os vários motivos de interesse deste escrito histórico, realçamos o seu ponto 3, que parece prefigurar algumas teses de Fredric Jameson sobre o pós-modernismo.
Fonte: O Comuneiro.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: Licença Creative Commons licenciado sob uma Licença Creative Commons.

Aceitando como fundamental e elementar a diferença entre forma e conteúdo, combatendo o formalismo e defendendo uma arte de tendência, corre-se o risco de ser tido por intruso no campo sagrado da criação artística e por pessoa insensível às obras de arte. Corremos o risco e não apresentamos atestados que nos salvem. Porque, na própria acção de entrarmos no debate, se defendemos também alguma coisa que não é apenas arte, defendemos por isso mesmo, com razão reforçada, a própria arte.

1. A «pureza» da arte e a posição dos «puristas»

Há quem pretenda que, nos nossos dias, a recusa da arte a representar a vida e do artista a «servir» com a sua arte, longe de significar uma posição conservadora, revela uma posição de desacordo, horror e protesto para com a realidade social. Será isto assim?

Há efectivamente circunstâncias em que o afastamento da arte da representação da vida traduz uma tal posição. Isto sucede quando aparecem como remotas quaisquer possibilidades de transformação e os artistas são pressionados para realizar uma arte apologética. Em tais circunstâncias, a resistência a louvar, ou sequer a representar, a realidade leva os artistas à «arte pela arte». Quando no reinado de Nicolau I, marcado de início pelo esmagamento da revolta de Dezembro de 1825 e pelo cruel castigo dos progressivos filhos da aristocracia, Púchkine se tornou um defensor da «arte pela arte», tal posição reflectia, como notou um crítico notável, o seu desgosto pela realidade social e a sua resistência aos esforços do tsar para «guiar a sua pena e os seus discursos».

Este horror pela realidade social manifesta-se não apenas em especulações formais, mas também em tendências egocentristas, místicas, românticas, e na criação de heróis irreais ou patológicos, contrapondo-se à vulgaridade dos tipos predominantes. Em Portugal, a baixa política e mediocridade de vida que sucederam à derrota da revolução popular de 1846-47 e ao triunfo da união da burguesia com os grandes proprietários rurais (Regeneração), colocam os escritores mais honestos ante a alternativa: ou descrever de forma crítica esse mundo vulgar, de pequenos e torpes acontecimentos domésticos e políticos (e esse é o material fundamental do naturalismo de Eça), ou fugir para um mundo imaginado, de moral, sentimentos e ideias diferentes das reais (é essa a origem dos grandes, violentos e heróicos amores nos romances de Camilo). Camilo dá-nos um exemplo gritante da consciência desta alternativa ao escrever A Corja e Eusébio Macário, expondo impiedosamente com naturalismo-satírico a podre vulgaridade da vida corrente. Camilo justificava a sua fuga para um ideal mundo romântico.

A recusa a representar a realidade, a «arte pela arte», aparece assim, em épocas de consolidação duma sociedade, como resistência do artista a retratar nas suas obras uma realidade que condena e, portanto, como atitude de protesto e desacordo.

A situação é porém completamente diferente em períodos de crise e transformação social. Então a «arte pela arte» é antes de mais nada a manifestação, por parte dos estratos condenados, do receio de uma realidade que, em todos os seus aspectos, lhes grita essa condenação. Daí fugirem artistas à reprodução de tal realidade acusadora e refugiarem-se em especulações formais, onde a verdade não esteja presente. Quando a burguesia aparecia como força ascendente, procurou e criou uma arte optimista e cheia de intenções, retratando-se idealmente (na pintura, na escultura, no drama, na poesia) como uma classe poderosa, enérgica, audaciosa e heróica. Toda a sua arte manifestava confiança em si e no futuro. Hoje em dia como pode um artista seu inspirar-se na realidade social?

Daí refugiar-se na distorção da vida, em problemazinhos pessoais, no canto de desilusões, no formalismo, na arte abstracta.

Vê-se como as correntes que pretendem afastar a arte da vida têm significações diversas e antagónicas, consoante a época em que germinam e o estrato social cuja posição reflectem. Indicam desacordo com a realidade social no primeiro caso considerado. Não o indicam no segundo, quando a realidade oferece, como mais ricos motivos para inspiração do artista, a vida, trabalhos e valores morais dos estratos ascendentes. No primeiro caso, a «arte pela arte» marca uma discordância com o meio e uma resistência às forças conservadoras. No segundo caso traduz uma cooperação mais ou menos activa com elas. No primeiro caso a negação de uma arte «utilitária» é a recusa a servir as forças do passado; no segundo caso, a recusa a servir as forças do futuro.

Há, é certo, uma posição intermédia, correspondendo à situação instável duma classe. Oscilando entre interesses contraditórios, a pequena burguesia (como em Pessoa, como em Régio) eleva à categoria de «verdades eternas» próprias da «natureza Humana» — as suas dúvidas, incertezas, hesitações, contradições —, mostrando assim um desacordo mais ou menos parcial e temporário com a realidade social, mas mostrando alguma coisa mais: mostrando nada ter para opor a essa realidade.

É com a compreensão desta diferença de significações de posições aparentemente iguais que se devem considerar os actuais defensores da «pureza» da arte. Segundo eles, a obra de arte nada teria a dizer e nada deveria pretender dizer além dos seus valores estéticos intrínsecos. A arte teria sim um conteúdo, mas de natureza puramente estética, independente e até antagónico de qualquer conteúdo. Os valores estéticos seriam um fim em si-mesmos, bastando-se a si-mesmos, vivendo por si-mesmos. Cada ramo de arte teria uma vida independente dos demais e defender a pureza da arte seria defender cada ramo da presença dos restantes. E assim se faria a pintura-pintura, a música-música, a poesia-poesia, etc., conduzindo a arte a toda a sua pureza e portanto aos seus mais altos cumes.

No que respeita à música, Lopes-Graça pretende que

«em nenhuma outra arte como a música (...) a oposição forma-fundo, forma-conteúdo, tem menos razão de ser, é mais artificiosa e pode conduzir a erros mais graves».

Lopes-Graça opõe à música romântica que considerava o som «um meio», o modernismo para o qual

«a música é uma realidade em si-mesma» e «a obra musical tem a sua razão necessária e suficiente nela mesma». «Os compositores modernos (diz) sentiram a necessidade de restituir a música à... música.»

Mas a que conduz a evolução lógica de uma tal concepção e orientação? Lopes-Graça reconhece que conduz à

«música anti-expressiva, uma música baseada apenas no jogo de valores dinâmicos ou de quase matemáticas combinações contrapontísticas», onde «a música se encontra, realmente, reduzida (ou quase) à sua pura essencialidade temporal»!

Desta forma fica claro que a tendência da «música pura», pretendendo esvaziar a música de qualquer conteúdo não puramente «musical», acaba por reduzir a música a simples acrobaciais técnicas, ou seja, a esvaziar a música da... arte musical. Esta dificuldade é sentida por Lopes-Graça que se vê na necessidade de admitir que também a música moderna pode querer exprimir qualquer coisa, mas

«intrinsecamente musical», «um conteúdo de ordem puramente espiritual» (sic).

Mas se o conteúdo a exprimir é a própria matéria musical, então não é de admitir que se diga que a música pode exprimir qualquer coisa, mas tem de dizer-se que a exprime sempre e a todo o instante. E se se aceita que exprime umas vezes e não outras, ou se admite que aquilo que exprime não é «intrinsecamente musical», ou se tem de admitir que muitas composições modernas contêm sons de princípio a fim, mas sons musicais só por vezes.

Tendências perfeitamente paralelas se desenvolvem em outros ramos da arte. Na pintura, pretende-se também que não tem razão de ser a oposição forma-conteúdo, que quando muito há um conteúdo de natureza plástica e intelectual, que a pintura é uma realidade em si-mesma e que a obra tem a razão necessária e suficiente nela mesma. Também aqui tal concepção, levada às suas lógicas consequências, conduz a simples acrobacias ou jogos técnicos, esvaziados e desinteressados efectivamente do valor artístico (em alguns músicos «combinações matemáticas»; em alguns pintores «combinações geométricas»). O mesmo na poesia. Também aí a poesia-poesia, a poesia com «fim em si-mesma». Também aí a poesia vivendo sem qualquer conteúdo não intrinsecamente «poético». Também aí, como consequência, os puros jogos de ritmo e de melodia.

Todas estas tendências no sentido da «arte pura» levam ao extremo as velhas ideias da «arte pela arte». Negada a existência de um conteúdo não-estético, o conteúdo identifica-se com a própria forma e toda esta arte «pura» (merecendo justamente o nome de formalista) cai em especulações formais, muitas vezes apenas tecnicistas. Nunca se foi tão longe na vacuidade formalista e na pretensão (declarada ou não) de divorciar a arte da vida. Critica-se que a música, a pintura, a escultura, a poesia do passado tenham sido «discurso», «lição», «descrição», «representação», «assunto», «literatura», «anedota».

«A maneira de pintar de um pintor (disse Picasso) é como a sua caligrafia para os grafólogos. Está aí o homem inteiro. O resto é literatura, l'affaire dos comentadores, crítica. Isso já não diz respeito ao pintor.»

E assim se pretende esquecer que o homem que cria a obra de arte e aquele que a aprecia são homens vivendo os problemas da sua sociedade, ligados a ela por todas as fibras do seu ser. E que a maneira de pintar, como a maneira de compor, de esculpir, de versejar, são apenas modos de falar da situação, dos problemas, das ansiedades, das esperanças dos homens de uma época. E que o «homem inteiro» está muito menos na caligrafia do que no que escreve, muito menos na maneira de pintar do que no que pinta.

Muitos artistas vivem na ilusão de que as especulações formais serão num futuro mais ou menos distante admiradas e «compreendidas», não se lembrando sequer de que não pode falar de forma a ser compreendido quem não pretenda falar. Qualquer época olha apenas com curiosidade os grandes esforços formalistas do passado. A arte mais durável e compreendida do passado é a arte crítica dos estratos ascendentes que, num momento histórico, põe em confronto o presente e o futuro, o velho e o novo, e anuncia e fixa a aspiração a uma melhor vida. A arte «pura» é tão efémera como a moda.

Muitos artistas vivem também na ilusão de que as suas especulações formais representam uma marcha para diante. A verdade é que (como será mais de perto observado) toda a evolução das modernas correntes da arte «pura», culminado no abstraccionismo (na escultura, na pintura, na música, na poesia) não se dá num sentido progressivo. Cada passo «para a frente» no caminho das especulações formais tem sido um passo na acentuação dos seus caracteres decadentes e negativos. Para elas avançar é decair. A própria pretensão de excluir da obra de arte qualquer conteúdo não «puramente estético», reflectindo o receio pelo sentido da evolução acusado pela vida e manifestando implicitamente o afundamento do sistema de relações sociais, é uma atitude nítida de decadência.

É pois uma atitude conservadora e não uma atitude de protesto que está por detrás das opiniões e realizações dos defensores da «pureza» da arte nos nossos dias.

2. A obra de arte e a realidade social

Por muito que os artistas pensem realizar uma obra de arte «pura», indiferente às influências da sociedade em que vivem e neutra na sua própria influência, não o conseguem e não o conseguirão jamais. A obra de arte pode não ter um tema ou assunto: reflecte porém sempre a realidade social em que as ideias do artista germinaram. Pode o artista querer libertar-se de todas as influências da vida e das lutas da sociedade, ou pode apenas ignorá-las. Essa vida e essas lutas estão porém presentes em todas as suas emoções, pensamentos e realizações, presentes porque são uma sua causa, presentes também nas realizações porque, ao realizar, o artista participa na vida e lutas da sociedade, exercendo (com vontade ou sem ela) uma influência não apenas artística e «servindo» (com vontade ou sem ela) alguma das forças em presença. Queiram ou não queiram os artistas, tenham ou não disso a consciência, toda a arte, todas as obras de arte, estão impregnadas de significações sociais.

Por vezes o reflexo involuntário da realidade social é tão nítido que só a cegueira da crítica impede de vê-lo. Comparem-se, por exemplo, dois estádios. Num, o esquema tem em vista proporcionar o máximo de prazer aos espectadores instalados nas bancadas centrais, mas em compensação atira o grosso dos espectadores para as cabeceiras, onde a visão do jogo é consideravelmente menos favorecida; no outro sucede precisamente o inverso. As cabeceiras abaixam-se a um mínimo de lotação e as bancadas elevam-se progressivamente dum lado e doutro até meio do terreno; assim, ao contrário do que sucede no primeiro estádio, há tantos mais lugares quanto melhor é a posição do espectador. Os dois estádios, independentemente dos propósitos individuais dos seus arquitectos, espelham com nitidez diferenças da realidade social na qual foram concebidos e realizados.

Esta presença dum conteúdo não estético em toda a obra de arte contraria em muitos casos as declaradas intenções do artista. Julgando fazer uma coisa o artista faz coisa diferente ou contrária. O conteúdo real da obra de arte diverge então radicalmente do tema escolhido ou do tema aparente.

A história da arte está cheia de exemplos desta divergência entre o que o artista faz e aquilo que pretendeu ou declarou fazer, desta divergência entre o tema e o conteúdo. Como desde Hegel é correntemente aceite, toda a pintura religiosa da Renascença ficou a atestar, não sentimentos religiosos, visões piedosas, esperança numa vida além-túmulo, mas amor pela vida terrena, cultivado pela burguesia ascendente. A pintura religiosa da Renascença documenta a vitória do ideal profano sobre o ideal monástico, pois, como notou justamente um crítico católico português,

«falta na pintura da Renascença a unção religiosa e o misticismo».

O tema religioso era apenas o pretexto para retratar as preocupações e problemas de actualidade, para tecer um hino aos novos ideais, para pôr em relevo a vida e os problemas do tempo. Isso é tão verdadeiro nos italianos como nos alemães e flamengos. Mesmo os retratos da morte são uma glorificação da vida.

A divergência entre o tema e o conteúdo real adquire os aspectos mais surpreendentes. A determinação dos laços que prendem a obra de arte à vida social onde germina, revela muitas vezes como por cima e contra a intenção e compreensão do artista, a sua obra reflecte os interesses, os problemas, o pensamento de um estrato social. O superior valor estético encontra-se sempre onde é mais forte e claro esse reflexo.

Quando Fernando Pessoa julgava falar do seu eu, dos seus versos ou da natureza, quando julgava ingenuamente fantasiar poetas fictícios com personalidades fictícias completamente diferenciadas, ou quando julgava fazer profundas análises psicológicas e digressões filosóficas, ou quando julgava divertir-se com meros jogos de palavras —, muito longe de dizer o que julgava estar dizendo, estava afinal a ser o eco da situação, dos problemas, das contradições, das oscilações e incertezas da pequena burguesia no período de história que vai dos primeiros anos da República até 1934-35. Falando de Fernando Pessoa, diz um crítico que os grandes escritores

«são maiores que o espaço social que os produziu».

A verdade é que a realidade social é tão forte e dominadora que, mesmo quando julgam falar apenas de si, os artistas falam também da sociedade aonde vivem. Quanto maior é o artista mais nitidamente isto sucede. Toda a obra de Fernando Pessoa é um exemplo riquíssimo deste facto. E, na sua Mensagem, é tão violenta e evidente a contradição com aquilo que o poeta se propõe glorificar, que desmente os propósitos proselitistas e épicos e, a par do fracasso artístico da obra, faz aparecer aqui e além, em belíssimos versos destacados na morneza e mediocridade predominantes, os verdadeiros sentimentos de inquietação e incerteza do estrato social de que o poeta é involuntariamente o porta-voz.

Muitos artistas e críticos de arte não compreendem porque se encontra e se indica uma significação não estética em obras de arte na aparência completamente afastadas de quaisquer preocupações não meramente artísticas. Isso resulta da sua incompreensão de que, em qualquer época, os sentimentos e problemas pessoais (na vida familiar, no amor, na profissão, no comportamento cívico) não são produto duma imortal e imodificável natureza humana, mas das mesmas forças sociais basilares que moldam as ideologias. Muitas vezes, ao tratar um problema pessoal, o artista, sem o saber, faz reflectir na sua obra, como seu conteúdo fundamental, uma realidade que lhe está aparentemente alheia. O Homem Que Matou o Diabo de Aquilino Ribeiro tem como tema uma história de amor sem implicações sociais. Mas o procedimento de Macário que, com mil trabalhos e sacrifícios, atravessa Espanha e França para ir ao encontro daquela que ama e, quando por fim esta se quer render, se desinteressa do seu objectivo e «se foi dali para nunca mais», está longe de ser apenas uma historieta de amor. As formas de abordagem dos problemas do amor não são independentes dos sentimentos dominantes de cada estrato. A história de Macário é uma transposição, numa história de amor, de toda a actuação da burguesia liberal até 1934, isto é, enquanto teve uma posição hegemónica num vasto âmbito de actuação. A história de Macário, activo e capaz de sacrifícios enquanto se tratou de caminhar para o momento decisivo, tímido, receoso e desinteressado, quando esse momento se aproxima ou surge, retrata, num caso de amor, as linhas gerais da actuação dum estrato social. Inverosímil, irreal, absurda, como história dum homem, torna-se verdadeira como reflexo da história dum estrato social num momento dado e numa situação dada.

Vista a discordância frequente entre o tema e o conteúdo, entre a intenção do artista e a sua real realização, tem de rejeitar-se a crítica subjectivista que pretende julgar a obra de arte apenas pela «alma» do artista, pelo que nela existe de personalidade, dos desejos, das intenções, dos problemas pessoais e íntimos e até das tendências negativas e patológicas do seu autor. A obra de arte não deve só ser julgada pelo que pretende dizer (e muito menos pelas opiniões do seu autor), mas pelo que diz na realidade. O amor pela verdade tem levado artistas de ideais conservadores a fazer uma crítica às próprias ideias e aspirações. Ao invés, o desinteresse ou desprezo pela verdade tem levado artistas de ideias progressivas a transmitir ideias e posições conservadoras.

3. Aspectos do conteúdo da arte da decadência

Na pintura, na escultura, na poesia, no romance, na música, muitos artistas põem ostensivamente à margem das suas realizações qualquer conteúdo que não seja de natureza «puramente estética». Apenas sucede que «a realidade histórica que põem fora da porta lhes aparece à janela».

Podemos dar um exemplo comprovativo. É corrente na pintura servirem-se dos objectos como meras sugestões de forma. Transpostos para o quadro, esses objectos devem, na expressão do teórico da arte decadente André Lothe, «perder as suas qualidades específicas», deixando apenas na tela «uma marca alusiva e poética». Desta forma, quando as figuras humanas aparecem deformadas e mutiladas, ou quando as partes do corpo humano aparecem separadas, dispersas, fragmentadas, dir-se-ia que a única razão do facto reside em que o artista colocou acima de tudo os valores estéticos, a pintura-pintura, e os objectos reais lhe serviram apenas como ponto de partida em relação ao qual não deve qualquer respeito. Tal forma de tratar a figura humana nada teria a ver a com a realidade social. Seria somente uma questão subjectiva, um produto do processo individual da «criação».

Esta explicação está porém longe de ser satisfatória. E a consideração do processo de produção da economia contemporânea mostra-nos como essa aparente «criação» independente do artista, essa aparente digressão livre pelo mundo da pintura-pintura, está intimamente ligada a fenómenos sociais. A divisão do trabalho levada a cabo pelo processo de produção contemporâneo provocou a distorção da personalidade humana, com a atrofia de umas faculdades e a excessiva exigência a outras. Na produção moderna «o próprio indivíduo se torna um motor automático duma operação fraccional, um motor que em muitos casos se torna perfeito através do literal estropiamento físico e mental do trabalhador»; «na divisão do trabalho também o homem é dividido» e «reduzido a um mero fragmento de homem». A economia contemporânea, com a sua divisão do trabalho, trouxe a desagregação da personalidade humana, a conversão dos seres humanos em produtos incompletos, mutilados, divididos, fragmentados.

Quando Balzac em Le chef d'oeuvre inconnu apresentava um herói pintando um quadro de formas e cores caóticas donde emerge uma perna e um pé de mulher, não estava apenas prevendo uma evolução da pintura. Ele que tão inteligentemente compreendeu o processo e sentido do desenvolvimento da sociedade contemporânea, prevê aí também a evolução da realidade social que determinará essa evolução da pintura: a desintegração da personalidade humana levada a cabo pela moderna divisão do trabalho. Quando, no seu poema, Sá-Carneiro deixava cair um braço e o punha a valsar nos salões do vice-rei; quando na pintura se topam monstruosas distorções ou partes separadas do corpo humano como «marcas alusivas e poéticas»; quando toda uma corrente da pintura e da escultura manifesta uma verdadeira fobia pela personalidade completa do homem (ao mesmo tempo que um respeito relativamente objectivo pelas coisas inanimadas, pelas mercadorias...) não se está perante um trabalho criador dos artistas independente do mundo social aonde vivem, não se está perante o produto da mera investigação de valores estéticos; está-se perante um reflexo da distorção, deformação e mutilação da personalidade levada a cabo pela divisão do trabalho na economia contemporânea.

Porque o artista é filho da sociedade aonde vive, só pode compreender as obras de arte uma crítica que estabeleça as suas ligações com a realidade social no seio da qual foi concebida e realizada. Fica claro como é injusta e tola a pretensão de alguns artistas e críticos ao considerarem como «intrusos» no campo da arte, como indivíduos estranhos, hostis ou indiferentes à «verdadeira» arte, aqueles que, longe de se cegarem pelos absurdos e limitações da crítica subjectivista, procuram determinar as raízes da criação artística, assim como o real significado e valor da obra de arte e um sentido criador e progressivo na arte contemporânea. A arte, como qualquer outra ideologia, assenta na vida e lutas da sociedade. Só pode ser explicada, interpretada, avaliada, tendo em conta essa vida e essas lutas.

Procurando deliberadamente fugir à retratação da vida e prender-se apenas pelos jogos formais, o artista decadente julga roubar à arte a significação social, julga roubar-lhe qualquer conteúdo não estético. Não o consegue entretanto. Separada intencionalmente da vida, a sua arte continua presa a ela pelas raízes. A mais formalista das artes, reflectindo a falta de perspectivas que a realidade social oferece a certos estratos, espelha também, mesmo por esta forma indirecta, essa realidade. Mas espelha-a também de forma directa e imediata. Na pintura, na música, na poesia, o pretenso conteúdo puramente estético reflecte desorientação, degeneração, corrupção, anarquia, egoísmo, devassa sensualidade, pavor pelo futuro. Tais obras de arte, tanto pela forma como pelo conteúdo, são obras de decomposição como a realidade que reflectem.

Mas a arte «pura» está longe de ser apenas uma arte abstracta. A tal pretensa arte pura, preocupada com os valores puramente estéticos, nem sempre vai ao extremo lógico do abstraccionismo (embora sempre para ele caminhe) e tem frequentemente um claro e directo conteúdo regressivo. Por que interessa bem salientar que, para muitos teóricos da «pureza» da arte (aqueles que não vão ao extremo do abstraccionismo), é arte pura aquela que reflecte os valores morais e ideológicos decadentes, mas já não é arte pura aquela que reflecte os valores morais e ideológicos ascendentes.

Comparando, por exemplo, a poesia do Novo Cancioneiro com a poesia da Presença, Gaspar Simões afirma:

«o que isola e caracteriza os poetas do Novo Cancioneiro é o facto de esses poetas terem decidido que a poesia deveria ser utilizada para determinados fins. Para a Presença a poesia era uma actividade com fim em si-mesma».

Quer dizer: quando alguns poetas presencistas transmitiam nos seus poemas todas as dúvidas e problemas mesquinhos do seu estrato social, elevando-os à categoria de basilares problemas Humanos, a poesia não estava sendo utilizada para quaisquer fins, era o fim em si-mesma e a arte pura estava salvaguardada. Quando os poetas do Novo Cancioneiro (a que se pode juntar o «presencista» Torga do Cântico do Homem) transmitiam nos seus poemas as largas aspirações de amplas camadas sociais, estavam a atraiçoar os princípios da arte pura e estavam a utilizar a poesia para determinados fins. Para muitos críticos defensores da «pureza» da arte, da arte como fim em si-mesma, a visão, os problemas, os desejos dos estratos decadentes são em tudo dignos de servir de tema duma arte pura, cujo fim seja ela própria; a visão, os problemas, os desejos dos estratos ascendentes são (para tais críticos) elementos destruidores da arte, estranhos e intrusos no campo da arte. Se o artista fala de si e dos seus mesquinhos problemas é um artista que põe a arte acima de tudo; se fala dos outros e dos seus grandes problemas é um artista que sacrifica a arte a intenções sociais. Estes são os grosseiros equívocos que alimentam muitos partidários da arte «pura» e que, só por si, evidenciam o real significado actual da sua posição. O que combatem não é o «conteúdo» nem o «utilitarismo» da arte, mas certo conteúdo e certo utilitarismo.

Contra as palavras e desejos dos artistas e críticos da decadência, a arte da decadência não é a mensageira do futuro. Não é, numa sociedade em crise, o reflexo dos valores novos e renovadores, mas precisamente o reflexo da crise dos valores morais e espirituais.

4. O formalismo e o empobrecimento da forma

Insurgem-se alguns críticos contra o ataque feito ao formalismo, dizendo que tal ataque se converte num ataque à própria forma. Isto não é nem correcto nem verdadeiro. Considerada no seu conjunto, a evolução no domínio da especulação formal na primeira metade do nosso século, longe de enriquecer as possibilidades expressivas dos artistas, tem-nas limitado progressivamente. Por isso a luta contra o formalismo é também a luta contra o empobrecimento da forma.

Pode parecer estranho a alguns que, concentrados os esforços dos artistas exclusivamente no enriquecimento dos valores formais (únicos que reconhecem como sendo do domínio da arte), não resulte daí o seu êxito. Isto toma-se porém menos estranho ao atender-se a que essas especulações formais são feitas dentro duma arte não expressiva ou anti-expressiva, duma arte que não procura dizer nada através da forma pois (implícita ou explicitamente) considera a forma a única substância e fim da arte.

A esterilidade e carácter decadente das especulações formais do nosso século não é fenómeno novo. Toda a história da arte mostra tal carácter decadente e tal esterilidade sempre que a investigação e a novidade formais não correspondem às exigências dum novo conteúdo a exprimir. Cite-se a poesia gongórica e tome-se como exemplo a arquitectura barroca.

A questão do «funcional» e do «decorativo» é, na arquitectura, o aspecto que toma a questão do conteúdo e da forma na arte em geral. Assim, a tendência progressiva e criadora na arquitectura (correspondente ao realismo na literatura e na pintura) é aquela que procura que os grandes traços do estilo e decorativos sigam as exigências funcionais (técnicas e outras, incluindo de natureza intelectual, e não apenas técnicas como pretendem os utilitaristas grosseiros). A tendência formalista é aquela que se desinteressa do conteúdo, afasta os elementos decorativos e as características do estilo fundamentais da função e deforma e oculta as linhas gerais impostas pela função atrás de artifícios decorativos que são contrários. É isto que sucede no barroco. No barroco a forma desinteressa-se e divorcia-se do conteúdo, o ornamental separa-se completamente do funcional: os frontões, as colunas, os arcos, os pináculos, tudo se amontoa desordenadamente, contraditoriamente, como meros elementos decorativos sem qualquer respeito pela sua origem funcional; vêem-se frontões com aberturas ao meio ou a encimar abóbadas, arquitraves dobradas, colunas encurvadas incapazes, mesmo na aparência, de suportar seja o que for. Levando às extremas consequências o divórcio entre o funcional e o ornamental, ou seja, pretendendo construir uma arte renovadora pela pura especulação formal independente de qualquer intenção expressiva, de qualquer evolução do conteúdo, o barroco ficou na história da arquitectura como exemplo duma corrente estéril, destrutiva e decadente.

Fenómeno semelhante se observa nos nossos dias, nessa arte «pura» que acusa como estranho à arte qualquer conteúdo não estético. Afastado o propósito de exprimir através da arte um conteúdo, esses artistas de hoje (na poesia, na música, na pintura, na escultura, até já na arquitectura, onde a renovação técnica tem entravado o formalismo) lançam-se também em puras especulações formais, transformando, tal como os arquitectos do barroco, as «explorações» no domínio da forma no problema central da arte. E, como os meios de expressão não podem ter um progresso substancial senão quando uma nova riqueza desses meios é exigida pela riqueza de novo conteúdo a exprimir, o vazio de conteúdo desta arte formalista contemporânea (tal como no exemplo apontado do barroco) paralisa na verdade os progressos formais e conduz as explorações no domínio da forma a simples artifícios e malabarismos. Daí serem tão reduzidas as conquistas formais da arte da decadência, apesar de todo o seu esforço se concentrar na forma. Tem hoje e teve sempre significantes resultados a busca de formas novas quando corresponde a uma mudança progressiva do conteúdo a exprimir. A luta por uma linguagem nova, por uma forma nova, só é criadora na medida em que seja uma luta pela obtenção duma forma capaz de exprimir com clareza um novo conteúdo.

É certo que o formalismo na arte contemporânea (ainda à semelhança do barroco) apareceu como reacção contra o medíocre e morno academismo, igualmente formalista porque fizera de regras da forma o fim em si, igualmente decadente porque nada pretendia dizer, igualmente paralisante porque, não sendo animado por um ideal, empobrecia mais e mais os processos expressivos. A reacção formalista e «iconoclasta» contra o academismo justamente chamado bota de elástico foi como que a expiação dos pecados do naturalismo trivial e impotente, que julgara ser fiel à vida através da reprodução, com técnica cada vez mais medíocre, de situações, emoções e figuras não-típicas. Essa reacção foi salutar, na medida em que reduziu às suas insignificantes proporções o degradante academismo vigente e criou (porque também criou) novos meios expressivos.

Entretanto, no formalismo de hoje, como no exemplo do barroco, como em muitas outras reacções formalistas do passado, essa reacção e mesmo os poucos novos meios expressivos obtidos não são o bastante para fazer dele uma corrente progressiva na arte. Para isso seria necessário que a renovação formal se apoiasse numa renovação de conteúdo, que só poderia ser o correspondente às aspirações dos estratos ascendentes. Como isso não sucedeu, a reacção formalista, no seu profundo significado, em vez de uma interrupção da decadência da arte contemporânea, conforme ela própria pretendia, representou mais um passo nessa decadência.

Atente-se na característica destrutiva essencial presente em toda a evolução do formalismo: cada conquista formal não se junta às anteriores para fornecerem em conjunto aos artistas mais poderosos meios expressivos, antes, cheia de orgulho e desmedida pretensão, as nega e renega. A evolução do formalismo tem sido a história das sucessivas expulsões, como indignos e impróprios da arte, de todos os recursos formais que não sejam a última moda. É norma da arte da decadência e atestado insofismável do seu carácter destrutivo, o abandono sistemático das conquistas do passado, remoto ou recente, a pretexto do amor pela novidade. O formalismo conduz assim, não só ao raquitismo ou amputação do conteúdo, como às sucessivas restrições, até à indigência, da forma.

Repare-se no que sucede com as tão discutidas «dimensões» na pintura. Contra as limitações da pintura bizantina que, para resolver o problema da massa e da profundidade, recorria às sinuosidades dos perfis e à distribuição de figuras de diferentes tamanhos, a pintura da Renascença resolveu tais problemas com o tratamento simultâneo da luz e da perspectiva. Esta extraordinária conquista da pintura da Renascença foi é certo então aceite, como é vulgar nos primeiros tempos de todas as grandes descobertas, como um dogma da pintura, como seu elemento central indispensável. Segundo Francisco de Holanda,

«o mor primor e perfeição que há nesta grandíssima e nobre ciência» é «parecer a cousa de vulto e relevada e que se vem para nós fora» e por isso conclui que «fazer de vulto ou escultura é um dos membros da pintura».

Rejeitando esta ideia dogmática, os teóricos da decadência caem em dogmatismo inverso. Para eles, a pintura é uma arte em duas dimensões ou «plana» e o «modelado» ou «claro-escuro», como próprio da escultura, deve ser excluído da pintura. Isto significa que se despreza uma das grandes vitórias da pintura da Renascença, considerando-a como um passo atrás em relação à pintura «plana» medieval. É muito sintomática a apreciação que de Giotto fazem certos críticos. Giotto é em geral altamente apreciado por eles, não pelo seu génio renovador e progressivo, mas pelos traços que o prendem ainda ao passado bizantino. Estes teóricos não se apercebem de que, não sendo planos os objectos representados pela pintura numa superfície plana, se lhes fosse possível aniquilar e fazer esquecer a herança da pintura clássica e se então fosse possível uma evolução autónoma da pintura «plana» dos nossos dias, ela conduziria de novo ao... «modelado». Apenas para isso seriam necessárias novas e longas lutas, percorrendo de novo um penoso caminho. Neste caso, como em muitos outros, o «cavalo» são os meios expressivos da arte da decadência; e o «automóvel» os da arte clássica. É bem de ver que o abandono intolerante da herança clássica equivale, não a um progresso para novas e mais ricas formas de expressão, mas a uma renúncia sem compensações e ao regresso às dificuldades e limitações que atormentaram os pintores medievais. Sem dúvida que são de admitir muitas outras possíveis soluções do problema (e os impressionistas e Van Gogh obtiveram efeitos surpreendentes com a diversidade das cores - processo que aliás recentes críticos da decadência também não aceitam), mas a rejeição e exclusão da pintura, como elemento estranho, dessa magnífica conquista técnica da Renascença, mostra o acanhamento do formalismo, a sua renúncia a um riquíssimo meio de expressão e, consequentemente, o seu carácter deliberadamente destrutivo.

E mais ainda. Falhas de qualquer ideal, de qualquer intenção afirmativa, as especulações formais, pretendendo fazer guerra ao espírito de «escola» e ao «academismo», pretendendo abrir ao artista um mundo novo de liberdade e de possibilidades maravilhosas, transforma-se num academismo de novo tipo, numa «escola» tão intolerante, acanhada e paralisante, como o academismo anterior contra o qual reagira. Presos a receitas de escola, os artistas decadentes, fugindo à inspiração na realidade e na vida e julgando fazer uma obra extremamente independente e pessoal, a cada passo copiam servilmente ou glosam obras de arte que tomam como padrão, mantendo-se voluntariamente num colete de forças de fórmulas, símbolos e clichés, e incorrendo com frequência no perigo que (segundo Vasari) Miguel Angelo apontou a um quadro de um seu contemporâneo: «... no dia do juízo final, quando todos os corpos recuperarem os seus membros, nada deles ficará». A pretensa liberdade dos artistas de decadência é (tal como em todos os maus academismos) a sua escravização a narizes de cera e a regras fixas, imutáveis, inatacáveis.

Na arte decadente (na pintura e na música particularmente) abundam as obras «exactas», ou seja, concordantes com as regras esquemáticas aceites como fundamento do valor estético, mas cuja exactidão se mede a compasso, sem nada ter a ver com a emoção que a obra provoca. A emoção e o «sentimento» são expressamente banidos como inimigos da arte e o «espírito» ou a «inteligência» (isto é: a verificação se na obra de arte se encontram aplicadas ou implícitas as regrazinhas absolutas) torna-se o único critério admissível para a produção e apreciação da obra de arte. «O binómio de Newton tão belo como a Vénus de Milo» — tal é contraditoriamente a conclusão a que são conduzidos os partidários da «pureza» da arte e duma metafísica da beleza onde não entra a emoção e o agrado. E assim tais obras «exactas» são as mais das vezes frios produtos mecânicos, que nenhum prazer provocam no espectador comum, mas dão um intensíssimo prazer «intelectual» aos críticos inteligentes iniciados nos altos mistérios da nova metafísica.

Quebrados todos os laços com a vida, este novo academismo vive nos aristocráticos círculos dos iniciados e dos snobs e conduz a arte a um cada vez mais grave empobrecimento formal. Todas as suas regras dogmáticas e intolerantes não representam nem provocam o enriquecimento da forma, antes a sua limitação e empobrecimento.

A luta contra o formalismo não é pois (como insinuam alguns exaltadíssimos pregadores da serenidade) a luta contra a forma. A luta contra o formalismo é a luta contra o sacrifício do conteúdo às limitações e incapacidades de execução. A luta contra o formalismo é a luta contra o empobrecimento da forma, a luta pela conquista de novos e mais poderosos recursos formais capazes de exprimir os riquíssimos ideais dos nossos dias. Por isso mesmo: luta pela preservação de todas as conquistas formais do passado; luta pela descoberta de novos processos de expressão.

Contra as tendências destrutivas da arte da decadência, que despreza, ridiculariza, nega e recusa as conquistas do passado, a herança de milénios de trabalho, de luta e de inspiração, é necessário aproveitar todas essas conquistas e trabalhar na base da herança do passado. Contra aqueles que, negando toda a história da arte, afirmam, como Léger, que «na arte não há progresso», deve acreditar-se no progresso da arte, no passado e para o futuro, e sustentar-se que todo o progresso da arte (na música, na pintura, na escultura, na literatura, na arquitectura) assenta no desenvolvimento do património artístico do passado. E contra a retrógrada pretensão de começar tudo de novo, de «repartir do zero», deve tomar-se a herança do passado (incluindo o passado recente), tomar todas as conquistas formais positivas e impulsionar a arte decididamente para diante. Rejeitar a herança do passado significa «regressar ao passado», voltar atrás. Aproveitar a herança do passado significa caminhar e progredir.

5. Uma arte de tendência: novo conteúdo, nova forma

Não há nem nunca houve uma arte «pura», uma arte neutra. Muito menos uma crítica de arte tão imparcial que nela se não reflicta a ideologia de um estrato da sociedade. Um publicista notável defendeu um dia que a crítica literária deveria ser «tão objectiva como a física». Em épocas de crise, a «imparcialidade», a pregação da «serenidade» e «objectividade», é sempre uma justificação de falta de objectividade, uma forma de ser encapotadamente parcial contra a aberta e franca parcialidade dos estratos ascendentes.

Há na verdade duas parcialidades opostas, dois possíveis e opostos utilitarismos na arte. Não se pode entretanto dizer que a posição correcta e justa do artista e do crítico esteja no meio, numa posição ecléctica, alheia a qualquer parcialidade e utilitarismo. Em primeiro lugar, a própria evolução da sociedade indica que uma das parcialidades (um dos utilitarismos) corresponde ao passado, a outra ao futuro - e daí um necessário e firme critério de selecção. Em segundo lugar, em épocas de crise, tal «neutralidade» não é possível e corresponde sempre e invariavelmente ao apoio à parcialidade do passado. Duas tendências opostas na arte, dois utilitarismos opostos, não são pois dois «facciosismos» merecedores de igual condenação. Há a arte de tendência dos estratos condenados pelo desenvolvimento social e a arte de tendência dos estratos cujo favorável futuro o desenvolvimento social anuncia. A primeira, porque de tendência, foge à verdade. A segunda, porque de tendência será tanto mais poderosa quanto mais verdadeira for. E aqui está um novo e firme critério de selecção.

A grande arte e a grande crítica foram sempre uma arte e uma crítica de tendência. As grandes e imorredoiras obras de arte estão indissoluvelmente ligadas a um amplo movimento social ascendente. Se se despojasse o património artístico da humanidade das obras inspiradas (consciente ou inconscientemente) por tal tendência, ficaria um bem magro espólio. Confira-se na literatura portuguesa. Arte de tendência é a de todos os grandes nomes da nossa história literária, como Fernão Lopes, Gil Vicente, Camões, Eça, Cesário. Arte de tendência é aquela que, entre dezenas de belíssimas obras em prosa e verso (romances, poemas, contos), deu três jóias do nosso romance contemporâneo: A Lã e a Neve de Ferreira de Castro, Fanga de Redol, Esteiros de Pereira Gomes. Os grandes momentos na história da arte e até na vida de muitos artistas são aqueles em que a inspiração provém de uma posição tendenciosa ligada com paixão às aspirações dos estratos ascendentes; os momentos de baixa mediocridade aqueles em que os artistas defendem causas perdidas ou procuram colocar-se na terra de ninguém. Na vida artística de Eça fica bem claro que os valores estéticos, longe de serem empobrecidos por uma intenção crítica e «utilitarista», são por ela enriquecidos, desde que tal intenção corresponda a um movimento ascendente. Enquanto animado pela ideia da função social da arte, Eça deu-nos as suas melhores obras: O Crime do Padre Amaro, O Primo Basílio, Os Maias. O abandono de tal posição levou-o a escrever livros manifestamente inferiores.

Só um conteúdo novo pode levar a arte ao nível das suas grandes épocas históricas. Só tal conteúdo pode obrigar a arte, a par da defesa do património cultural do passado, a procurar e encontrar novos e mais ricos meios expressivos, ou seja, a aliar as conquistas formais do passado a novas descobertas e conquistas.

É certo que a história nos ensina que um conteúdo novo pode exprimir-se numa forma velha e um conteúdo velho numa forma nova. Como alguém observou, o classicismo da pintura de David era conservador só na forma, pois o conteúdo «estava inteiramente ensopado do mais revolucionário espírito». Inversamente, o conteúdo conservador de grande parte da arte contemporânea exprime-se através de formas «renovadoras». Mas a história ensina-nos qualquer coisa mais. Ensina-nos, como já atrás se mostrou, que os novos processos formais que não correspondem a um novo conteúdo tendem a empobrecer e a tornar-se estéreis; e ensina-nos que um novo ideal, que começa por traduzir-se através de velhos processos formais, acaba por impor uma renovação formal verdadeiramente criadora.

É de particular interesse notar como, em épocas de transformações sociais, o novo conteúdo, correspondente aos sentimentos dos estratos ascendentes, emerge na forma inadequada da arte antiga. Nos primeiros grandes pintores burgueses, as novas aspirações aparecem violentadas numa forma de expressão ainda directamente ligada à arte do feudalismo. Quando a burguesia pretende substituir à figura humana criada pela idade média — sem sangue e sem vida, enfraquecida pelos jejuns e a reclusão - o homem voltado para a vida, quando pretende substituir esse fantasma do passado pelo homem do presente e do futuro, demorará a libertar-se da herança formal, da linguagem inapropriada para exprimir o novo ideal. Em Memling e outros, a rigidez das figuras, a sua falta de movimento e de vida, deforma, reduz e prende o novo ideal. É contudo esse novo ideal que conduzirá a novas conquistas formais (a pintura do nu é um exemplo claro) e assim a ideologia burguesa que irrompe dessa pintura religiosa anuncia os grandes pintores da burguesia flamenga triunfante.

Coisa semelhante se passa na pintura contemporânea. Um núcleo considerável de artistas procura exprimir um conteúdo novo através de uma linguagem directamente filiada na arte decadente, isto é, duma linguagem que não foi feita para falar. Em certas condições sociais, essa tendência é estimulada pela maior facilidade duma reacção formal e por certas vantagens imediatas das linguagens confusas, através das quais se sugere em vez de se dizer. Mesmo porém em condições sociais em que não existem tais restrições isso sucede. Assim, encaixados, atrofiados, reduzidos, nos quadros formais da arte decadente, nos quadros deformadores do formalismo, vêem-se emergir aqui e além, hesitantes, confusos, perdidos por vezes no emaranhado de símbolos e clichés simplistas, mas reconhecíveis apesar de tudo, esboços dum conteúdo novo. Apenas aqui a disparidade entre a forma e o conteúdo, o contraste entre a pobreza da primeira e a riqueza do último, é mais manifesta e mais trágica que nos primeiros pintores burgueses, alguns séculos atrás. Daí o insucesso artístico de tantas tentativas. Daí o insucesso da sua «utilidade», pois os artistas propõem-se falar e, mesmo quando se esforçam por ser infantilmente claros como Picasso nos seus painéis da paz e da guerra, falam somente ao seu círculo de iniciados. Tais artistas debatem-se baldadamente com uma linguagem inadequada e impotente.

Quando certos artistas pretendem com verdadeira sinceridade traduzir nas suas obras o que têm na cabeça e no coração e traduzir com clareza, os processos expressivos da arte decadente revelam-se imediatamente como inapropriados. Têm então de fugir às «regras» da moderna metafísica da beleza e, se lhes falta a louca coragem para recorrer (por maior clareza) aos medíocres processos do academismo bota de elástico, vêem-se na necessidade de suprir as deficiências dos processos formais de que dispõem pelo recurso aos símbolos e rudimentares processos naturalistas constituindo verdadeiros letreiros explicativos! É em muitos casos individuais altamente dramática a situação de artistas formalistas que procuram traduzir as aspirações (ou o que julgam ser as aspirações) dos estratos ascendentes, através duma linguagem plástica, musical, literária, teatral, completamente impotente para esse fim, uma linguagem apenas apropriada à tradução do medo da realidade, à tradução da desorientação, do vazio de ideias, das aberrações. Daí acontecer por vezes que obras de intenções sociais, pela carência dos recursos expressivos, dizem o contrário do intencionado.

Tome-se a maneira como muitos pintores figuram os trabalhadores nas suas telas. Todos iguais uns aos outros, com corpos, músculos, feições, acusando um destino ao trabalho manual. Tal processo de representação, contra a ideia dos seus autores, coincide com a «biologia social» de Carrel, por exemplo, que afirma serem os proletários destinados aos trabalhos manuais, pelas suas «propriedades fisiológicas e mentais», pelos «defeitos hereditários do seu corpo e do seu espírito». Coincidência semelhante se pode observar, embora em outro plano, em numerosos romances contemporâneos portugueses (mesmo em muitos dos melhores) onde os personagens das classes burguesas são caracterizados fisiologicamente ou por estigmas.

Na pintura, na escultura, na música, na poesia, a linguagem ultrapassada constitui um molde demasiado estreito e irremediavelmente estreito. Para a arte se tornar verdadeiramente grande, ao novo conteúdo tem de corresponder uma forma nova: a nova arte que traz consigo todo um novo conteúdo tem de romper o quadro acanhado da linguagem ultrapassada, vencer a sua indigência formal e tornar-se senhora de recursos formais suficientemente ricos para exprimir toda a riqueza do novo conteúdo.

Não tem qualquer razão de ser a objecção de que a sobreposição do conteúdo à forma não é fecunda no acto da criação artística. No próprio processo de criação, como norma para alcançar um nível superior, como norma para alcançar uma forma superior, é válido o princípio: «primeiro o conteúdo!» Qualquer artista principiante conhece como é fácil a tentação e tentadora a comodidade de sacrificar a ideia inicial às primeiras limitações da capacidade de realização, ou seja, às deficiências formais. A indicação «primeiro o conteúdo!» visa estimular o artista a não sacrificar os seus mais belos sonhos à inabilidade, à indisciplina, à desobediência ou impaciência das próprias mãos. Visa estimular o artista a exigir das próprias mãos o trabalho, o esforço, a paciência, a tenacidade, a perseverança, a audácia, para realizar os seus sonhos mais queridos. É evidente que (mesmo considerando o «momento da criação artística»), o amor pela arte, o espírito criador, o caminho para o enriquecimento e renovação formais, está da parte daqueles que dizem «primeiro o conteúdo!» e querem que as mãos sirvam para realizar o sonho. O acanhamento, a hostilidade a uma arte renovadora, a estagnação formal, da parte daqueles que gritam «o assunto depois!», que sacrificam assim os sonhos à inabilidade das mãos, às deficiências e limitações formais se é que, mais comodamente ainda, não deixam de sonhar.

Não se pode nem deve exigir dos artistas que dêem aos outros aquilo que não têm dentro de si. Mas pode-se e deve-se exigir-lhes que pensem melhor e sintam melhor. «Se o pintor soubesse imaginar bem na sua fantasia (teria dito Miguel Angelo) não podia ter tão corrupta a mão que não mostrasse fora alguma parte ou indício de seu bom desejo.» Sentir melhor, pensar melhor, para realizar melhor. Disse alguém ser necessária uma maior sensibilidade, não só do ouvido musical dos compositores, como de outro ouvido, que se apercebe dos grandes problemas contemporâneos. Essa preciosa indicação é extensiva a todos os artistas. Corresponde a dizer: É necessário enriquecer o ideal do artista e consequentemente a sua imaginação; é necessário que o artista se sinta compelido a dar um mais rico conteúdo, única maneira de alcançar mais ricos processos formais; é necessário que o artista sinta que a sua arte é um meio de comunicação com os outros homens e por isso será tanto mais poderosa e mais bela quanto mais clara for. A maior sensibilidade desse outro ouvido significa melhor conhecimento e compreensão dos grandes e pequenos problemas contemporâneos, incluindo naturalmente a concepção da arte e os deveres de cidadão, e a ligação entre uma coisa e outra. A maior sensibilidade desse outro ouvido é assim indispensável para o progresso da arte.

António Vale


logotipo
Inclusão 26/06/2014
Última alteração 12/08/2014