A crise nos dois sub-sistemas do capital

José Chasin


Primeira Edição: ....

Fonte: http://files.gocufg.webnode.com/200000007-f139bf2322/formas%20sociais%20do%20capital%20-%20globalização%20e%20crise.pdf

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


A dissociação entre fato e consciência é a marca geral e profunda do conjunto de todos os processos societários na atualidade. Entre o que é e vai sendo e as formas manifestas de sua representação (filosofia, ciência, arte, ideologia etc.) estão postas mais do que simples diferenças ou graus naturais de aproximação, mas contraposições extremas que desresponsabilizam as relações entre ideação e realidade, de tal sorte que a desparametração da primeira corresponde a falsificação da segunda. Assim, o mundo em curso se apresenta como uma vasta usina do falso. Falso socialmente necessário, et pour cause — não assumido como tal, que emerge a pretexto da opacidade do mundo, como também da incapacidade intrínseca ou, pelo menos, dos supostos limites agudos da racionalidade.

Importa compreender que a produção da falsidade não se manifesta apenas como figurações da subjetividade (razão manipuladora e irracionalismo), mas, em primeiro lugar, na determinalidade objetiva que tem prolongado, de uma parte, a utilidade histórica do capital e de sua forma capitalista de sociabilidade e, de outra, pela incapacidade — hoje indiscutível — de superação do capital pelas formas capitalistas conhecidas.

Em conjunto, prolongamento da utilidade histórica do capital, no “ocidente”, e inviabilidade da superação do capital nos moldes da sociabilidade pós-capitalista experimentada, mutuamente potencializados, constituem o ardil do capital, sob cuja lógica e regência move-se o universo humano-societário contemporâneo, bem como sob seu espírito homólogo — manipulador e irracionalista, que desarma cognitiva e volitivamente a autêntica capacidade efetuadora da prática humana.

1 — A Crise estrutural do capitalismo

Hoje, a sociedade do capital aparece como um mundo rebrilhante, pletora luminosa de mercadorias, cujo universo alcançou a cintilação perene das estrelas; mesmo porque, liberta de contradições, exorcizou o fantasma que rondava o planeta desde meados do século passado.(1)

Essa é, quando menos, sua auto-imagem e o perfil fenomênico de alguns poucos de seus recantos mais privilegiados, bem como a súmula patrocinada pela cínica reflexão dominante, que faz a rima perversa de um mundo cujo brilho maior e ofuscante está na capacidade de produzir e disseminar a imagem invertida de sua perversidade.

A dissociação entre realidade e pensamento, nesse universo, atinge nos dias em curso extremos sem precedentes, cuja medida só pode ser sondada na própria radicalidade da contraposição entre a crise estrutural do capital e a asserção de sua eternidade pela representação ideal.

Não se trata do contraste antigo, de há muito conhecido. Por duas razões dá-se uma dimensão de efetiva novidade: em primeiro lugar porque a crise, na abissalidade do concreto, nunca foi antes tão visceral quanto abrangente, pois é gerada não apenas pelos traços mais débeis e problemáticos do capital mas, ao contrário, pelas suas qualidades mais positivas; em segundo lugar, porque a “eternidade do capital”, até há poucas décadas, nunca deixou de ser percebida como auto-ilusão ou wishful thinking, um faz-de-conta de proprietários, apologetas ou pobres de espírito de toda ordem, ao inverso do que agora se passa, quando muitos passaram a acreditar e proclamar ou, no mínimo, se conformar, até mesmo contra seus hábitos mentais mais caros, com essa metafísica de quinta classe.

É inerente ao sistema do capital a subversão pela qual a produção material dos homens se afasta irreversivelmente dos objetivos dos homens.

Para indicar a lógica propulsora desse distanciamento — a um tempo gerador e destruidor de substância e civilização humanas — além de progressivo e universalizante para a globalidade dos atos de efetivação, basta recordar com I. Mészáros que

“o capital não trata valor-de-uso (que corresponde diretamente à necessidade) e valor-de-troca meramente como dimensões separadas, mas de uma maneira que subordina radicalmente o primeiro ao último” (Produção Destrutiva e Estado Capitalista, Cadernos Ensaio V, p. 22).

Disto redunda que a regência e a tipificação dos movimentos do capital são exercidas pelas suas necessidades intrínsecas de capital, isto é, por sua reprodução ampliada, e não pelas necessidades reais dos homens reais, no andamento próprio de satisfazer antigas e de criar necessidades novas.

No contraponto entre necessidade humana e necessidade do capital, no qual a primeira é subsumida à segunda, é que se desenrola a sociabilidade do mercado, lócus ideal da “liberdade de iniciativa”, ou seja, do capital entregue à libertinagem na malha cega de sua causalidade.

Legalidade esta que conduz (é o que importa ressaltar aqui) — de figura em figura das metamorfoses do capital e de estágio em estágio de seu desenvolvimento global — à sua forma atual de existência, para cuja manutenção leva ao extremo não apenas a negação das necessidades humanas, mas promove a nulificação direta de “vastas quantidades de riqueza acumulada e de recursos elaborados — como meio dominante de ordenação do capital super-produzido”. Em outras palavras, a produção capitalista tornou-se a produção da destruição, isto “porque consumo e destruição são equivalentes funcionais do ponto de vista perverso do processo de ‘realização’ capitalista”(Idem, p. 60).

Em outros termos, e para centrar na decantada economia de escala, — no curso atual da superprodução do capital, este devora parcelas crescentes de si mesmo: seja pela liquidação dos pequenos e médios capitais, tidos como ineficientes ou inúteis do ponto de vista do capital (lucratividade, competitividade, produtividade etc.), mesmo que fossem, sob outra forma de articulação da produção global, perfeitamente úteis do ponto de vista social; seja, então, pela intensificação irrefreável dessa mesma “racionalização” capitalista da produção, que deglute sempre mais e mais capital, reconvertido em meios de produção degenerados, isto é, diretamente pospostos aos ditames da expansão do capital. Processo no qual é multiplicado ao infinito, em grandeza e variedades, o desperdício e a dissipação próprias da economia privada: esse novo estágio não se organiza apenas através do esbanjamento nas formas de apresentação, propaganda, sub-utilização e obsolescência programada dos bens de consumo, — mas pela promoção capitalista da sub-utilização e obsolescência dos próprios aparatos tecnológicos.

O que equivale a dizer, de modo muito simples, que, no imperativo de sua rota sempre ampliada de crescimento, a lógica do capital desenvolvido obriga à destruição até mesmo de seus resultados mais notáveis. Com isto se põe em evidência sua dimensão autofágica, expressão de superfície de sua essência antropofágica, muito bem conhecida sob a denominação de mais-valia. Com efeito, a novidade não está na verdade de que o capital literalmente se alimenta de homens, mas que radicalizou essa devoração pela devoração de si mesmo. Essa verdade não muda em nada, quando se reconhece que ele agora trucida pela mediação de recursos esplêndidos, que constituem devidamente resgatados da mistificação e da ferocidade capitalistas, autêntico patrimônio humano, mesmo porque, como na alusão feita à mais-valia em geral, também a mais-valia relativa é uma questão muito bem conhecida.

Neste ponto, em suma, o que se está ressaltando, a partir desse complexo real de múltiplas contraditoriedades, é a contradição do capital avançado consigo mesmo. Ou seja, a cerimônia fúnebre de seu circulo vicioso de expansão, onde determinados passos vitais de monopólios ou oligopólios, econômica e extra-economicamente privilegiados, por fusão, absorção ou aniquilamento de unidades produtivas “menores”, passos alavancados por um dado padrão de capacitação técnica, redundam logo adiante em novo “desequilíbrio” entre a renovada produtividade operante e a potencialidade de uma nova “racionalização” tecnológica, que reabre o processo da deglutição progressiva de aparatos produtivos, reduzidos à condição de excedente obsoleto e rebelde à “verdadeira racionalidade” da produção de mercadorias.

A puerilidade teórica ou indução política tem simplificado rusticamente essa questão, com a tese de que o capital, de cada crise, qual fênix robótica, só renasce fortalecido. Identifica empiricamente, sem mais força com expansão e integridade orgânica, e eficiência com lucratividade, elidindo com isso que o novo patamar de proficiência não é mais do que a aguda manifestação da imperial e unilateral legalidade do lucro com a qual guarda, em todas suas implicações, irremissível vínculo orgânico: dá de ombros para a fragilização estrutural do capitalismo universal promovida pelo gigantismo (a autofagia), como também faz por ignorar com cinismo positivista que todo esse processo de “superação das crises” é feito à custa da queima de quantidades imersas de capital, isto é, à custa do malbaratamento, pela enésima vez, de trabalho humano-societário.

Numa palavra, o discurso apologético do capital torna intercambiáveis determinações completamente diversas: a indicação abstrata e verdadeira de que — as crises, em geral, são fontes virtuais do novo — , e a situação, completamente diversa em gênero, número e grau, — de crise estrutural do capital — que hoje perfaz a globalidade da existência e de sua forma de sociabilidade.

Crise estrutural, isto é, orgânica e permanente, para a qual não há possibilidade de superação no interior da lógica do capital, de modo que ambas, crise e sistema, estão fundidas de modo definitivo, condenando a sobrevivência do capital ao metabolismo crítico que na atualidade o caracteriza. Assim, viver e sobrevier para o capital não tem brotado o novo, mas a reiteração de si próprio em figura agigantada, de igual ou maior problematicidade. Em palavras diversas. A reprodução ampliada do capital, contemporaneamente, reproduz em tamanho correlato sua crise constitutiva. Trata-se da reconversão administrada da crise em meio de existência. É do que consiste, em verdade, sua mágica: a faculdade adquirida de sustar, através de meios econômicos e extra-econômicos (atividade estatal incidente no cerne dinâmico da sociedade civil), a virtualidade explosiva da crise. Tamponamento, no entanto, que não elimina ou resolve a malha de contradições responsáveis pela continuada reposição do quadro crítico. É o que obriga a admitir, na representação objetiva, portanto não pré-concebida da realidade contemporânea do capital, a crise como componente ou nexo essencial constitutivo de sua estruturação imanente. É como dizer que a luz e a glória da atualidade capitalista são feitas de crise, geradas por substancialidade crítica ou gestadas através de latente inviabilidade intrínseca, o que põe em evidência sua instabilidade crônica ou contingência temporal como essência, contraposta à fenomênica de sua perenidade ou perenização com que se exibe, hoje, na passarela do mundo factual imediato e da ideação que absolutiza suposições precipitadas: nem que, na curva da próxima esquina, o capital exibirá as próprias vísceras, sob o impacto de um encontrão do seu ventre de chumbo consigo mesmo; nem, muito menos, que com mais algum tempo, com o tempo que fosse necessário, elaborando ainda mais seus procedimentos econômicos e tornando mais fina e eficiente a intervenção estatal, na esfera da produção e reprodução material do mundo, o capital, por fim, depurado de suas contradições, alcançaria a perfectibilidade, quando então, redimido de seu próprio mau caráter, proporcionaria a si e democraticamente a todos a participação no mercado — nirvana, enfim, conquistado para todo o sempre.Convém insistir, mediando para conclusão: a normalidade do capital é hoje a sua cotidianeidade crítica uma vez que

“o capitalismo contemporâneo atingiu o estágio em que a disfunção radical entre produção genuína e auto-reprodução do capital não é mais uma remota possibilidade, mas uma realidade cruel com as mais devastadoras implicações para o futuro. Pois, hoje, as barreiras à produção capitalista são suplantadas pelo próprio capital na forma que assegura sua própria reprodução — em tamanho sempre maior e em constante crescimento — inevitavelmente como auto-reprodução destrutiva, em oposição antagônica à produção genuína” (idem, p. 102).

Configurado o nervo da crise estrutural do capitalismo, e seja frisado mais uma vez, por meio do melhor de seus dotes, pode ser deixada de lado a rememoração do conjunto de seus atributos negativos, das contradições, também insolúveis, que acarretam suas mazelas e perversidades mais antigas e conhecidas. Todavia, não se pode dispensar, como arremate, uma rápida incursão pelo campo da visibilidade da crise vigente.

A alma do capitalismo é palpável, tanto sólida e consistente quanto mais vai maturando pela vida. Sólida e palpável, não por isso isenta de prodígios e sortilégios: tanto que em sua forma primitiva , na infância do corpo que anima e pelo qual é animada, tem tão pouca dignidade quanto o nome que carrega — vil metal; sopro impuro de mercador e de usuário, que a idade adulta decanta, sublima e transfigura — capital financeiro, deus onipotente, mais facetado do que a própria santíssima trindade.

Tamanha é sua onipresença, que tem em cada coração um olhar iluminado; tamanha é a evidência sensível de seus milagres, que desta fé não há descrentes, nem mesmo um só agnóstico; em verdade, cada devoto é um sacerdote convicto de seu culto. Por falso paradoxo, só os teólogos mais recentes deram para quebrar essa unanimidade: muitos deles duvidam do altíssimo, reduzem seus poderes e predicados, e são mesmo incapazes de reconhecer toda sua magia. Mas, tratando-se de um deus tão humilde forte, até prefere que seja desse modo, ele que lucra de todos os modos. Que faria de loas ou alardes? Deus recatado dispensa o verbo que testemunha sua divindade. Por isso mesmo, talvez, pelo santo dedo de sua providência, os teólogos deixaram de saber o que se passa no universo do seu império.

Mas, onde há deuses, os demônios comparecem — sempre ruidosos em sua impertinência. Assim, na ciranda do capital, a face demoníaca do capital financeiro acaba sendo a primeira a mostrar o vulto, a face que não pode ser escondida. Mas, como é apenas a outra face, ela faz conhecer o rosto inteiro do deus oculto.

A crise estrutural do capitalismo tem a cara medonha da crise do sistema financeiro internacional. Ou melhor, o complexo agudamente contraditório das finanças internacionais é a máscara que reveste a estrutura crítica, nos termos referidos, do sistema produtivo global,

“pois o domínio aventureiro do capital financeiro em geral é muito mais a manifestação de crises econômicas de raízes profundas, do que a sua causa, ainda que, por sua vez, também contribua fortemente para seu subseqüente agravamento” (cf. I. Mészáros, “A Crise Atual”, Ensaio nº 17/18).

Máscara que assombra antes o mundo periférico, do que a esfera central do sistema capitalista, — centro este que é, no entanto e de fato, pela forma particular de sua acumulação, epicentro da turbulência que perpassa o conjunto em toda a sua extensão. Turbulência que na superfície aparente separa os credores do centro dos devedores da periferia, a riqueza competente da miséria incompetente, os fatores do autêntico capitalismo dos praticantes de suas modalidades arcaicas.

Mais umas vez o fenômeno vela e se contrapõe à essência: não há caloteiro maior do que o credor de todos os credores, a república exemplar do extremo norte das Américas. A dívida interna e externa dos EUA alcançam cifras fantásticas, do mesmo modo que seus déficits públicos e comerciais, atingindo sua adição a ordem de grandeza dos trilhões de dólares. São números siderais, — diante dos mesmos a dívida latino-americana é poeira miúda, que some debaixo do tapete. O mais extraordinário, todavia, é que, através desse endividamento que exorbita os limites da pobre imaginação terceiro-mundista, o gigantesco cangancheiro do norte exercita sua modernização civilizadora de caráter imperialista. Não apenas sobre os países da América Latina, mas também sobre as nações européias e asiáticas, incluídas a Alemanha e o Japão, dentre as quais, é o caso exemplar e gritante, a triste figura da Inglaterra de Madame Thatcher.

A natureza imperialista desse renitente devedor de novo tipo não se altera, quando se adverte que se está diante de um imperialismo de cumplicidades. Desde logo, a cumplicidade para o capital para o capital nunca foi conduta estranha ou enjeitada. Para além disso e concretamente, há que considerar, em seu peso decisivo, como o faz Mészáros no texto há pouco citado, que ‘Os países europeus parceiros dessas práticas — não menos que o Japão — admitem que estão presos a um sistema de aguda dependência dos mercados norte-americanos e à comunicante ‘liquidez’gerada pela dívida. Assim, eles se acham em posição muito precária quando se trata de delinear medidas efetivas para controlar o problema real da dívida. Na verdade, são sugados cada vez mais profundamente no sorvedouro dessas determinações contraditórias, através das quais ‘voluntariamente’ aumentam sua própria dependência com relação à escala da dívida norte-americana, com todos os riscos para si próprios, enquanto ajudam a promovê-la e a financiá-la”.

Esse imperialismo de cartão de crédito, na designação irônica e certeira do mesmo autor, que tanto embaraça os teólogos da moda, não é mais racional ou menos contraditório do que suas versões mais primitivas. Ao contrário, a sua incorporação de manobras mais sutis, correspondeu a potencialização de contrastes e agregação de confrontos e contradições, precisamente porque sua devoção ultrapassou as franjas do sistema e passou a devastar o próprio capitalismo avançado. A desindustrialização inglesa, as dificuldades concernentes à efetiva realização da unidade européia, bem como contenciosos com o Japão e reações de círculos desfavorecidos do capital ilustram o panorama.

Em verdade, trata-se de um panorama que, mais uma vez. Põe em evidência que o desaparecimento do típico mercado concorrencial, marca do século passado, não é algo idêntico à extinção do caráter competitivo do capital. Ao contrário, a superação do mercado livre se transforma num combate de colossais, para os quais a praça de guerra é o próprio conjunto do planeta, mesmo quando, por cumplicidade, especialmente em certas épocas de “estabilidade”, se trata de uma guerra velada, graças à conspiração do silêncio das partes interessadas”. De modo que podem valer aqui, pela sua plasticidade, certas palavras de Marx, deixadas em Salário, um manuscrito pouco conhecido de 1847:

“A barbárie ressurge, agora porém engendrada no próprio seio da civilização e fazendo parte dela. É a barbárie leprosa, a barbárie como lepra da civilização”.

Em suma, são as articulações orgânicas entre a produção destrutiva e as aventuras do capital financeiro que respondem pela fisionomia falimentar do hemisfério ocupado e domado pela “economia de mercado”.

Falência, todavia, que os países capitalistas ocidentais continuarão sustentando, — “em parte devido às contradições internas de suas próprias economias e em parte devido a sua forte dependência dos mercados financeiros e de bens norte-americanos”desse modo “continuarão a participar com seus recursos financeiros na salvaguarda da relativa estabilidade da economia dos EUA e, portanto, do sistema global”. Mas essa sustentação não é outra coisa do que viver na e através da crise, longe, por conseguinte, de qualquer conquista da perfeição e da eternidade.

Em outros termos e arrematando:

“só tolos e cegos apologistas poderiam negar a prática norte-americana vigente de administração da dívida é fundada em terreno muito movediço. Ela se tornará totalmente insustentável quando o resto do mundo (incluindo o ‘terceiro mundo’, do qual transferências maciças ainda são extraídas com sucesso, de uma forma ou de outra, todos os anos) não mais estiver em condições de produzir os recursos que a economia norte-americana requer, a fim de manter sua própria existência como ‘motor’ da economia capitalista mundial, perfil sob o qual ainda hoje é idealizada” (I. Mészáros, op. cit).

2 — A Crise Total do Pós-Capitalismo

Da mesma forma que, diante do perfil para-falimentar da economia privada, a teoria da perenidade do capital não é mais do que prática de sabujos ou conformismo onanista, a glanost e a perestroika são o colapso do onanismo do “socialismo real”.

De fato, as formas atuais da sociabilidade do capital, em suas duas modalidades — privada e estatal, estão constrangidas à atividade bíblica de Onã. Todavia, com diferenças fundamentais: enquanto no ocidente o vício solitário é espiritual, por influxo mesmo da extrema fertilidade material — a destrutividade do capital superproduzido; no oriente, a condenação é literalmente ao coito interrompido do capital estagnado.

Em outro lugar — Da Razão do Mundo ao Mundo Sem Razão (in Marx Hoje, Volume Um) — tratei de entender o drama da experiência soviética e seus correlatos de outros quadrantes geográficos, para além da insustentabilidade dos diagnósticos que se movem pelos registros do capitalismo de estado, da revolução degenerada ou, o pior de todos, do totalitarismo burocrático. O entendimento recaiu na determinação de um quadro regido pelo capital, mas cuja forma de sociabilidade descartara o capitalismo.

Dito de maneira pouco menos breve, a tragédia dos países pós-capitalistas dá origem a uma figura histórica imprevista, — uma formação social que desmanchou pela revolução política as formas capitalistas de estruturação e dominação sociais (aliás, atípicas e incipientes), mas que foi incapaz, constrangida pelo seu baixo padrão de produção e reprodução materiais da vida, de ascender à revolução social propriamente dita, e através desta efetivar a arquitetônica de uma sociedade articulada para além da lógica do capital. A legalidade deste “paradoxo” concreto tem por núcleo, pois, a impossibilidade imanente ou a barragem intrínseca do trânsito entre o estatuto organizador do capital e o estatuto organizador do trabalho. E sobre o trabalho é que, precisamente, recai o ônus fundamental do impasse, facultando a identificação da assinalada vigência do capital. Não mais (deveria ser óbvio, mas não o é,por exemplo, para os que fazem o diagnóstico do capitalismo de estado) na forma de propriedade privada, mas também não de propriedade social — de propriedade virtual de todos os produtores. Sua apropriação-gestionária, pela fração diretiva do complexo social, faz dele um capital coletivo / não-social (como o chamei por falta de expressão mais sintética, no texto referido), o que repõe o problema crucial das relações entre trabalho vivo e trabalho morto (capital). É bem sabido que é próprio da vigência do capital que o trabalho vivo seja regido pelo trabalho morto; para tanto o capitalismo dispõe de toda a organização social (sociedade civil e sociedade política) feita a sua imagem e semelhança. O que caracteriza a transição para além do capital é precisamente a inversão dos termos dessa equação: o trabalho vivo passa à condição de regente do trabalho morto. Mudança estrutural decisiva que não veio a ocorrer nos processos sofridos pelos países pós-capitalistas. Donde a permanência nestes, sob forma peculiar, do capital — canga da atividade humana sensível, práxis, trabalho vivo, canga atada aos cordéis do estado, assim e por isso mesmo, hipertrofiado. Evidências, capital e estado, de uma revolução política auspiciosa que não encontrou o caminho da revolução social, repetindo com isso o defeito maior das revoluções burguesas. Isto perfaz, em paralelo, a verificação dolorosa de uma tese marxiana, tão essencial quanto esquecida, especialmente pelo turvo politicismo contemporâneo: à revolução política cabem apenas as tarefas negativas, a limpeza do terreno, a demolição do que deve morrer; enquanto que os encargos construtivos, a edificação da nova sociabilidade dependem exclusivamente da revolução social.

Mas, se no bloco pseudo-socialista o trabalho vivo é vítima da mais abjeta contrafação, nele também o capital não conheceu seus dias mais brilhantes.

As formações pós-capitalistas, a par da subsunção do trabalho vivo ao trabalho morto, são politicamente constrangidas a consagrar e a tentar exercitar (sem o que perderiam todo o fundamento), em exacerbada contradição com a primeira determinante, uma feição social solidária e não-competitiva, ordenada pelas necessidades do trabalhador, isto é, uma sociabilidade que não seja (des)ordenada pelo valor de troca. Onde, portanto, estejam assegurados, em princípio, ao conjunto dos trabalhadores, vale dizer de toda a população, os meios de subsistência em sua gama fundamental de componentes (trabalho, moradia, saúde, educação, etc.). Contradição extrema, que resulta em algo extravagante — o reino do capital na ausência do chão social do mercado.

Livre do mercado, o trabalhador poderá ser um indivíduo livre, entre individualidades livres, se e somente se tiver acesso efetivo aos meios de subsistência e em escala crescente, que corresponda à ampliação e à renovação de seu gradiente de necessidades humanas (materiais e espirituais), próprias à construção de sua pessoalidade, e, simultaneamente, — sine qua non — , se exercer a responsabilidade social da auto-determinação do trabalho. È do que consiste, em seu fulcro, a “organização livre dos trabalhadores livres”, ou seja: a sociabilidade ordenada pelo trabalho vivo, ou como Marx a chamou, “a sociedade humana ou a humanidade social” (X Tese Ad Feuerbach).

Já é um truísmo admitir que, nessa transição da ordem do capital para a ordem do trabalho, haja um roteiro de graus e níveis a percorrer. E disso o pseudo-socialismo alimentou ilusões, montou justificativas e arquitetou farsas, algumas cômicas, outras hediondas, numa escalada de falsificações tão brutais que o fizeram emparelhar, quando não suplantar, a fábrica de alucinações do capitalismo.

O que importa, aqui, é a geratriz desse auto-engano e dessa mentira é que não ocorria, nem poderia estar ocorrendo, uma transição para o socialismo, mas um processo inusitado de acumulação de capital, mais especificamente, um processo de formação de capital industrial, sob gestão político-estatal-partidária. Formação e acumulação que, vencidos estágios primários, foram se revelando extremamente problemáticos e insuficientes.

O esclarecimento dessa precariedade conduz ao entendimento da glasnost e da perestroika, ao mesmo tempo que à inexistência de qualquer razão para depositar sobre elas qualquer esperança de redenção do socialismo, mesmo festejando o alívio da opressão que proporcionam.

Já foi configurado que superar a lógica do capital compreende a unidade de um movimento formado pelo atendimento das necessidades fundamentais e da auto-determinação do trabalho. Os dois aspectos, totalmente convergentes e inseparáveis, implicam a existência (ou criação) de bases materiais que sustentem essa dupla prática cotidiana.

Bases inexistentes da revolução russa, que matrizou, para o nosso século, os processos de passagem, carecendo por inteiro dos pressupostos materiais requeridos. Hoje, para alguns, isto pode soar como uma novidade, não o era para Lênin e outros personagens de importância, que tinham efetivo conhecimento do problema, tanto que cifravam a solução da revolução russa pela eclosão da revolução alemã, ou seja, de um país industrial desenvolvido, diapasão que provinha da própria visualização marxiana da questão. Dificuldade irremovível, que não leva à estapafúrdia ponderação de que, então, a revolução não deveria ter sido feita; quando mais não seja porque não havia para a velha Rússia a perspectiva de uma “solução” pela via do crescimento capitalista. A tragédia da revolução russa, tragédia autentica de toda a humanidade, quer se queira ou não — e só os muitos tolos podem dar de ombros, está precisamente no imperativo de fazer uma revolução que não pode ser realizada.

Sem bases para sustentar a revolução social pretendida, e mesmo atado — inclusive voluntária e deliberadamente, ainda que na maioria das vezes e em ampla extensão de forma bárbara, — aos fundamentos e compromissos da revolução política realizada, o pós-capitalismo sucumbiu, num intrincado processo de vicissitudes, onde rolou e rola o mais fantástico emaranhado de contradições, à precariedade de seu solo material.

De início o panorama é razoavelmente claro: garantir a subsistência é escopo, palavra de ordem, esperança e promessa, mas a tarefa efetiva é promover a acumulação que, em outras partes, fora obra própria e natural do capitalismo. Realizar, portanto, o pressuposto incontornável, sem o qual, de maneira ainda mais rude, também a autodeterminação do trabalho não é mais do que fantasia grotesca.

Realização do pressuposto material, por conseqüência, na adversidade de uma tensão que dilacera e contrapõe a garantia de subsistência, a sociabilidade isenta de competição, o trabalho não medido pelo valor, ao imperativo sem alternativa de o reduzir ao valor mínimo, exatamente para destinar o máximo de excedente (sempre inferior ao necessário) à obra de constituição do pressuposto, em benefício, por princípio, do próprio trabalho. Em verdade, uma coação do trabalho que é, pelo lado mais nobre do problema, contraposição radical à auto-determinação do trabalho.

Não importa que o excedente não seja apropriado de forma privada pelas vias do mercado, mas que seja trabalho morto que escapa por inteiro ao controle do trabalho vivo, e que funciona em relação a este com a força e a lógica do capital. Precisamente porque há uma pletora de apropriações privadas, o dispositivo apropriador-gestionário, formado pelos segmentos superiores e privilegiados do partido, do planejamento central e da administração, numa palavra simplificadora — o estado, cresce, se agiganta e complexifica em suas crescentes inter-relações. É, pois, a apropriação do trabalho morto, nas condições descritas, que gera o monstro; não o inverso — uma “burocracia totalitária”, de gênese e reprodução meramente “política”, o que é uma vazia indeterminação, que oprimiria, à custa de seu estatismo instrumental, e por pouco mais do que um prato de lentilhas, visto que a nomemklatura não se apodera individualmente de bens de produção, não tem acesso a eles na forma de propriedade privada, nem se verifica a acumulação pessoal de riquezas faraônicas, como acontece em simples ditaduras das repúblicas bananeiras, nem ainda os cargos conquistados e exercidos, mesmo com despotismo, são convertidos em bens hereditários. Considerações estas que não eliminam a presença de facilidades, vantagens e privilégios de monta, progressivamente consolidados e ampliados; em suma, não elidem a formação de um estatuto de interesses criados, específico e orgânico, que distingue e destaca esse setor social, particularmente pelo desnível em relação às maiorias, cujo padrão é medíocre ou sofrível. Precisar tais aspectos evita o paralelo fácil e impróprio com a locupletagem pura e simples típica de círculos governamentais no capitalismo, e principalmente descarta o reducionismo simplório, que faz dos prosaicos privilégios materiais dos burocratas a malha de fundo e explicativa da opressão estatal pós-capitalista. Em verdade, explicações dessa ordem subestimam a magnitude da opressão e a complexidade do problema que ela manifesta, integraliza e diversifica, tornando ainda mais aguda a contrafação do conjunto dessa forma societária.

Depois, os momentos subseqüentes, — vencidos certos obstáculos e objetivos, sempre parcialmente e de maneira comprometida com as raízes não superadas do processo originário (e o golpe de vista totalizador não pode descartar as relações internacionais, que incluem competição e guerra), se menos claros porque mais complexos, não são por isso, como estrutura problemática de fundo, uma entificação de qualidade essencialmente distinta.

Importa notar, em que pesem seus diferentes graus de intensidade, correlatos à diversidade dos níveis sucessivos de desenvolvimento, que se trata permanentemente de uma acumulação na ambigüidade de uma formação social que politicamente suprimiu o ordenamento concorrencial da sociabilidade. Uma extração e acumulação de riqueza que exercita, portanto, a desconexão entre mercado e força de trabalho. Ou seja, que postula a libertação da força de trabalho da subordinação às carências, da opressão das necessidades fundamentais que, na lógica do mercado, a constrangem ao comportamento de mercadoria que se vende pelo seu valor de produção. Produção e reprodução de força de trabalho deixam, então, de ser determinadas e medidas pelo seu valor, ou ainda ponderadas pelo uso que dela faça o capital, o trabalho morto apropriado coletiva mas não socialmente.

Sim, “quem não trabalha, não come”, mas este princípio, na regência do capital sem mercado, fica reduzido à condição de slogan, vagamente repressivo e vagamente ético, dependendo de circunstância e entonação. E visto que não pode haver império da auto-determinação do trabalho, em razão do baixo patamar do sistema produtivo, o que resulta e se manifesta é a liberdade irresponsável da iliberdade, que nenhuma coação extra-econômica, por mais virulenta que seja, é capaz de vencer; coação, aliás, que mesmo vitoriosa, na essência está vencida de antemão. Livre do mercado, mas escrava do trabalho morto, a força de trabalho é reduzida à irresponsabilidade, coisa fechada sobre si mesma, tanto menos responsável quanto mais insatisfeita, isto é, quanto menos tenha a perder, sem que, por outro lado, perca o embrutecimento em situação mais favorável, uma vez que falecem aqui todas as bases para uma nova eticidade. Ponto de inflexão, em suma, dos estranhamentos que vicejam no solo e sub-solo do pós-capitalismo. Liberdade irresponsável da iliberdade, cuja fisionomia, determinação e reforço é completada pela supressão da pluralidade dos apropriadores, pois, com o desaparecimento das personae do capital (sem o que não teria havido sequer a revolução política), cessa o desperdício da concorrência, alma mater da prática do capital privado, mas também, o que é o mesmo — a luta para devorar, mas não ser devorado, o que constrange ao esforço de ser melhor e mais forte, a ser o mais igual, dentre os iguais. O capital no pseudo-socialismo não se bate, nem tem com quem se bater. Tanto quanto a força do trabalho, goza a iliberdade de sua irresponsabilidade; lerdo e pesado reitera os círculos viciosos da insuficiência numa espiral de estagnação.

Decerto, trata-se de um mundo do capital — monstruoso a fantasmagórico: o universo do capital sem mercado. Capital estagnante, que não gerou o pressuposto material pretendido, mas a carapaça de granito que hoje entulha, pela força de seu fracasso, os caminhos que podem ir para além do capital.

O capital único — ausência de capitais em concorrência, sem o que, vale repetir, não teria havido sequer a revolução política, a eliminação da categoria social dos proprietários privados e sua forma de dominação estatal — e a iliberdade tutelada da força de trabalho, a sociabilidade institucionalmente liberada, mas não econômica e socialmente liberta, ou seja, livre de direito, mas não de fato, sem o que, seja também repetido, pereceria o fundamento político do empreendimento revolucionário — , ambos, vetores fundamentais que são da formação social pós-capitalista, proporcionam, em seu entrelaçamento e complexificação, um sistema do capital sem medida capitalista. Isto é, sob regência do trabalho morto, ma sem a medida do valor, seja para a força de trabalho, seja para o movimento do capital coletivo/não-social, a desmedida, a arbitrariedade se impõe, toma e cobre todo o espaço. De modo que, no interior do quadro de agudas insuficiências materiais ou, posteriormente, de constantes desencontros e desequilíbrios, onde tudo se passa, a exploração do trabalho tende a ser compelida para o ilimitado, da mesma forma que na efetuação ela se inclina para o insuficiente, pólos de uma mesma incongruência, que tem a outra face no comprometimento do desempenho do conjunto desse capital estatal global, por si só entregue à desparametração, já que não se confronta com nenhum outro e é regido extra-economicamente.

A resultante de tudo é o descompasso, o elementarmente contraditório, a inorganicidade do capital coletivo/não-social, sua inferioridade produtiva, seu caráter degenerado e degenerativo. Impessoal, sem ser social; coletivo, sem ser universal; gerido sem posse e apropriado na forma evanescente de um espectro, desgarra de toda direção e escapa de toda responsabilidade, a não ser da impostura sonâmbula da burocracia. Tropeça, então, sobre si próprio, vive aos trambolhões, desconexo, trôpego, e por suas dobras e fissuras vão se depositando todas as ferrugens, inclusive a poeira corrosiva da corrupção.

Mutilação, todavia, que não se restringe à dinâmica econômica do pseudo-socialismo, mas que alcança e desfigura o conjunto de todas as dimensões humano-societárias que o integram. Desde logo porque desmente, nas condições reais de existência, o suposto político de assegurar e resolução das carências humanas de base e, por conseqüência, a renovação e ampliação do elenco de novas necessidades pela quais o homem produz a si mesmo material e espiritualmente. Assim, desatendido nos pressupostos de sua autoconstrução e inviabilizado o exercício da auto-determinação do trabalho, a entificação da existência humana prossegue subsumida ao trabalho morto. Não se verifica, nem pode se verificar, o trânsito para regência do trabalho vivo, ou seja, a sociabilidade vigente é incapaz de assumir o valor de uso — necessidade humana autêntica — como padrão de intercâmbio, como lógica ordenadora da convivência. Razão pela qual reproduz, em graus distintos, a miséria física e espiritual, desnaturando, tal como no capitalismo, a atividade humana fundamental — a construção do próprio homem.

Numa palavra, a tragédia do pseudo-socialismo é a encarnação real de uma verdade sabida há cento e cinqüenta anos. Marx, na Ideologia Alemã, exatamente a propósito da superação da ordem do capital, faz ver que isto exige

“um mundo efetivo de riquezas e cultura”, ou seja, que “um alto grau de desenvolvimento/.../ é um pressuposto prático absolutamente necessário, mesmo porque, sem ele, apenas a miséria se generalizaria e, portanto, com a carência recomeçaria também a luta pelo necessário e, por força, toda a velha merda retornaria...”.

Que fazer diante do retorno da imundice?

Apesar de muitas lições antigas, — submersa na dupla imundice contemporânea, a humanidade, nos dois hemisférios do capital, simplesmente vasculha o lixão da história.

Na exata medida em que a supressão política dos apropriadores e a instauração, igualmente política, da iliberdade da força de trabalho deram origem ao capital sem mercado, a glasnost e a perestroika são, economicamente, a busca de mercado pelo capital do leste.

A crise explícita e confessa do pseudo-socialismo é matrizada pela incapacidade do capital coletivo/não-social de realizar a acumulação ampliada, na magnitude, velocidade e ritmo requeridos paulatinamente pela formação social a que está integrado, seja do ponto de vista do atendimento ao consumo de suas populações, seja do prisma das exigências intrínsecas ao desenvolvimento das forças produtivas, que se agudizam a partir de certos níveis, em particular quando estão em jogo comparações e rivalidades entre blocos internacionais. O conjunto dos países pós-capitalistas perde, assim, ao mesmo tempo, a batalha interna do desenvolvimento e a competição tecnológica a nível mundial.

Em adversidade intestina e de contexto, o crescimento econômico do sistema, desde sempre embaraçado e inconsistente, frustrador de expectativas ao longo de muitas e sofridas décadas, vinha denunciando, de há muito, seus limites estruturais e explicitando a incorrigibilidade de seu emperramento, e findou por se tornar tão inaceitável quanto a contrafação sufocante do regime político e a mesquinhez da atmosfera espiritual, que envolvem e isolam a formação como uma bolha alvar de mentiras.

Os acontecimentos dos últimos poucos anos, que portam inclusive a inesperada confissão voluntária da crise, envoltos na aura e no alarde da glasnost e da perestroika, não são, todavia, mais do que a exibição do atestado de fracasso, econômico e político, da experiência iniciada em 17 e que se repetiu em alguns lugares, bem como a tentativa de enfrentar o colapso do “socialismo real” com subprodutos ou derivações econômicas do próprio fracasso e a velha maquiagem, política dos sucedâneos formais.

Para uma breve descrição dos eventos, em nada redutora, basta constatar que ao binômio — desastre econômico, falência política — tem correspondido reformas inestruturais que estão na lógica do capital e de sua conduta política. Em face do monumental problema econômico, da China à Polônia, tem por centro dilemático a URSS, o apelo uníssono é aos famigerados mecanismos de mercado, e, sincronicamente, diante do colapso do paquidérmico aparato político, o remédio é buscado na velha cesta de costuras institucionais do liberalismo.

Mecanismos de mercado e formalização da liberdade são, precisamente, o espírito e as armas do capitalismo, encaixam como a mão e a luva. O direito de irrestrito deslocamento, por exemplo, na estarrecedora obviedade, hoje, do que se assegura, é grandioso, mas é também aquele que, na organização societária do mercado, dá cobertura igualmente, e pelas suas raízes, ao passeio compulsório pela “praça das trocas”, onde a imensa maioria dos cidadãos é medida e comprada pelo valor de produção de suas energias materiais e espirituais. Ou, como diz Marx, nos Grundisse:

“Na livre concorrência não são os indivíduos que são postos como livres,mas o que é posto como livre é o capital. Quando a produção fundada no capital é a forma necessária e, portanto, a mais adequada ao desenvolvimento da força produtiva social, o movimento dos indivíduos, no marco das condições puras do capital, se apresenta como a liberdade dos mesmos, liberdade que , todavia, também é afirmada dogmaticamente, enquanto tal, por uma constante reflexão sobre as barreiras derrubadas pela livre concorrência” ( Capítulo do Capital, Siglo XXI, V. 2, p. 167).

Essas considerações tocam nos pontos cruciais da questão e levam a identificar a essência real e virtual da glasnost e da perestroika.

Do que consistem, em suma os tão propalados mecanismos de mercado, cujos poderes e virtudes passaram a ser vistos como capazes de operar milagres, a não ser da bolorenta lógica da concorrência, do estatuto da colisão determinada pelos interesses? O que são tais “recursos” senão as próprias engrenagens letais de uma forma de sociabilidade que regula o intercâmbio, as interconexões dos homens entre si, ou seja, a sociedade em seu conjunto, pela razão competitiva, pelo estatuto feroz que toma por reles fundamento, em última análise, uma ameaça sombria — a virtualidade da inanição? Não se trata, numa palavra, dos mecanismos da “barbárie como lepra da civilização”, tantas vezes aludida por Marx?

Não resta, nem poderia restar a menor dúvida, bastando algumas linhas de Marx para deixar inteiramente configurada a espinha dorsal da questão. Lê-se, também nos Grundisse:

“ A livre concorrência é a relação do capital consigo mesmo como outro capital, vale dizer, o comportamento real do capital enquanto capital. As leis internas do capital — que nos pródromos históricos de seu desenvolvimento aparecem somente como tendências — tão somente agora são postas como leis; a produção fundada no capital somente se põe em sua forma adequada, na medida e enquanto se desenvolve a livre concorrência, posto que esta é o desenvolvimento livre do modo de produção fundado no capital; o desenvolvimento livre de suas condições e de si mesmo enquanto processo que continuamente reproduz essas condições” (p.167).

E pouco mais à frente, prossegue a argumentação no mesmo rumo:

“A livre concorrência é o desenvolvimento real do capital. Através dela se põe como necessidade exterior para cada capital o que corresponde à natureza do capital, ao modo de produção fundado no capital, o que corresponde ao conceito do capital. A coerção recíproca que nela exercem os capitais entre si, sobre o trabalho etc. (a concorrência dos trabalhadores entre si não é mais que outra forma da concorrência entre os capitais), é o desenvolvimento livre, e ao mesmo tempo real, da riqueza enquanto capital” (p. 168). E, por fim, uma passagem explícita ao extremo sobre a inequívoca fundamentabilidade da concorrência para a atuação e reatuação do capital enquanto tal: “O que repousa na natureza do capital só será realmente externado, como necessidade exterior, através da concorrência, o que não é senão que os diversos capitais impõem, entre si e a si mesmos, as determinações imanentes do capital” (Dietz Verlag, p. 545).

Dessa síntese analítica, cujo sedimento ontológico vale a pena deixar assinalado de passagem, o autor desdobra duas especificações fundamentais, que são decisivas par o exame e a crítica do pós-capitalismo em débâcle.

A primeira diz respeito ao laço determinado entre capital e livre concorrência. Esta é o meio próprio do capital, só através dela é que o conteúdo de sua natureza se objetiva, contudo não é ela que faz germinar o capital, mas o contrário:

“O domínio do capital é o pressuposto da livre concorrência... Por conseguinte nenhuma categoria da economia burguesa, nem mesmo a primeira, a saber, a determinação do valor, se realiza graças à livre concorrência, isto é, através do processo real do capital, que se apresenta como interação recíproca dos capitais entre si e de todas as outras relações de produção e intercâmbio determinadas pelo capital” (p.169).

A segunda questão, vinculada à anterior, versa sobre a liberdade humana. Para Marx, é precisamente a inversão dos termos na relação anterior que conduz à

“inépcia de considerar a livre concorrência como o desenvolvimento último da liberdade humana, e a negação da livre concorrência = negação da liberdade individual e da produção social fundada na liberdade individual. Trata-se somente não mais do que do desenvolvimento livre sobre uma base limitada, a base da dominação do capital. Esse tipo de liberdade individual é, enfim, a supressão de toda a liberdade individual e a sujeição total da individualidade às condições sociais que assumem a forma de poderes objetivos, inclusive de coisas poderosíssimas, de coisas independentes dos próprios indivíduos que se relacionam entre si. /.../ Pretender que a livre concorrência é a última forma do desenvolvimento das forças produtivas, portanto, da liberdade humana, é afirmar que o reino da burguesia é o fim da história mundial: eis por certo uma idéia agradável par os arrivistas de ontem e anteontem” (p.169).

O capital do “leste”, — único, desprovido politicamente do leque de apropriadores privados, que traçam o perímetro de arena da concorrência, e acumulando às custas da iliberdade do trabalho, estatuída também politicamente sobre o solo infértil da miséria, — é o capital fora de seu meio, incapaz de se pôr em sua “forma adequada”, de “externar o que repousa em sua natureza”, pois carece da “relação consigo mesmo como outro capital”, da livre concorrência, onde a pluralidade dos capitais exercem coerção recíproca entre si e sobre o trabalho, quando exercitam os jogos do valor.

O capital coletivo/não-social é o capital fora de seu reino — a sociabilidade do capitalismo, algo como o capital em seus pródromos, quando suas “leis internas aparecem somente como tendências”. Em seu estrangulamento atual, enquanto capital e enquanto largo processo que objetivou o capital industrial, em que pesem todas as suas limitações e incongruências, não pode simplesmente ter sua acumulação realizada posta em igualdade com o colapso do pseudo-socialismo. Este faliu como transição socialista, como itinerário para além do capital; falência não meramente política, porém econômica — da base material de produção e reprodução da vida, contudo, mesmo assim, isto não zera o acumulado industrial e do complexo econômico em seu todo. O estrangulamento, assim, é a asfixia de um dado capital, na dinâmica de sua geração e desenvolvimento. Sua crise atual, portanto, é também a expressão de suas agudas necessidades atuais, na lógica de seu crescimento. Em outros termos, sua crise total exprime, de qualquer modo, as energias e tendências de seu estágio de evolução enquanto capital. Nesse sentido valem, para o quadro em exame, com os devidos ajustamentos e precisões concretas, as palavras de Marx a respeito do comportamento em geral do capital enquanto processo auto-constitutivo:

“Enquanto o capital é débil, procura se apoiar nas muletas de um modo de produção desaparecido ou em via de desaparecimento; tão logo se sinta forte, ele se desembaraça dessas muletas e se põe em conformidade com suas próprias leis” (p.168).

Ou seja, que é próprio ao capital o empuxo para a realização de sua identidade e, por conseguinte, o empenho para a ultrapassagem dos impedimentos que o tolham. Marx refere a questão, por exemplo, tratando da supressão do corporativismo à época de sua gênese:

“O aspecto histórico da negação do regime corporativo etc., por parte do capital e através da livre concorrência, não significa outra coisa senão que o capital, suficientemente fortalecido, derrubou, graças ao modo de intercâmbio que lhe é adequado, as barreiras históricas que estorvavam e refreavam o movimento adequado à sua natureza” (p. 167).

Perfilando, então, a crise do pseudo-socialismo pelos traços do desenvolvimento de seu capital, aflora que a introdução dos mecanismos de mercado na economia do pós-capitalismo corresponde, para muito além de qualquer artificialismo ditado pelas circunstâncias, a premências do capital único pela derrubada dos obstáculos que o restringem, que impedem seu verdadeiro desenvolvimento enquanto capital. Portanto, não se trata hoje, nem há qualquer possibilidade de que venha a se tratar amanhã, de uma iniciativa que venha a aperfeiçoar o socialismo. Pelo contrário, em primeiro lugar porque não se pode aperfeiçoar o que não existe — o processo de transição socialista; em segundo, porque quanto mais efetiva for a reforma pretendida, tanto mais a iliberdade do trabalho simplesmente cederá lugar à escravidão do trabalho livre, medido pelo valor através da concorrência processada no mercado; em terceiro, e em suma: aperfeiçoamento do capital — proporcionado pela ressurreição da concorrência, no caso, exclusivamente como coerção sobre o trabalho, pois é desprezível, ao menos por um longo tempo, a pluralização dos apropriadores, — é uma contrafação ignóbil como teoria e práticas socialistas.

Ignomínia que oscila entre a tragédia e a comédia, quando se leva em conta formulações de Vadim Medvedev, presidente da Comissão Ideológica do Comitê Central do PC da União Soviética, veiculadas muito recentemente pela imprensa, mencionando a publicação de seu livro A Revolução Continua: Sociedade Soviética em Condições de Reestruturação.

Sua formula é primorosa e, em suma, está resumida na tese de que “O mercado, se se eliminam as distorções do lucro, é uma das mais importantes conquistas da civilização humana”. Não há que se ater ao lado mais risível do enunciado, pois, como verdadeira contradição nos termos encerra, com grande aproximação, o que poderia ser chamado de verdade consciente, de finalidade precípua da operação que pretende socorrer a economia pós-capitalista com estímulos de mercado, ao menos no que concerne à maioria dos países em causa, especialmente a URSS.

Vista em seu significado extremo, a propositura de Medvedev não visa, de fato, a criação de uma efetiva pluralidade de capitais, dado o óbvio de que o pressuposto da diversidade de apropriadores privados é precisamente a garantia de sua movimentação lucrativa no mercado. De modo que, neste caso, a livre concorrência de mercado, a “recíproca coerção dos capitais entre si e sobre o trabalho”, se manifesta exclusivamente como coerção sobre o trabalho, coerção econômica do capital único sobre a pluralidade universal dos trabalhadores. Ou seja, a formação social que foi incapaz de gerar o pressuposto material necessário à transição socialista, cancela o seu decreto político da sociedade solidária de setenta anos atrás, e reintroduz o princípio de que a força de trabalho é paga pela sua eficiência, isto é, enquanto mercadoria ímpar capacitada a produzir mais valor do que o seu próprio. Volteio, que consumiu três quartos de um século, para chegar ao “segredo” conhecido e praticado pelo capitalismo desde sempre, com a agravante de não abrir mão da forma coletiva/não-social de apropriação-gestionária do excedente, sobre a qual, pedra angular da questão, não diz uma palavra, mantendo a funesta e perversa identidade, clamorosamente falsa e falsificante, entre estatismo e socialismo.

Tomada a fórmula de Medvedev numa acepção mais branda, nada se altera quanto à coerção unilateral sobre o trabalho, no que tange a ser medido pelo valor, entre as fronteiras da sociedade de carência, pressuposto e limite da sociabilidade capitalista, fora da qual a coerção econômica perde seu fundamento, pois, na estrutura de seu funcionamento, a verdade de que a carência é razão de ser do trabalho é duplamente corrompida, pela redução das carências às carências elementares e pela desfiguração e identificação do trabalho puramente a meio de subsistência. Ou em termos muito mais simples: não há trabalho quando não há carência, então, quem não trabalha, não come. Trata-se, enfim, do “desenvolvimento livre sobre uma base limitada, a base da dominação do capital” — “liberdade individual que é a supressão de toda a liberdade individual” para empregar, mais uma vez, os expressivos termos de Marx.

A diferença, tomada a fórmula de Medevdev em sentido abrandado, incide sobre a questão da pluralidade de apropriadores, na medida em que “distorções do lucro” não signifique eliminação, mas tolerância de lucro moderado. Algo absurdo como lucro justo, que identifica a negatividade deste não pela sua natureza, mas pela quantidade, por excessos ou índices de exagero que tende a manifestar e que devem ser coibidos. Essa clivagem moralista entre o bom e o mau lucro admitiria, então, em certo número e para determinadas áreas de atividade, apropriadores modestos e obedientes, que aceitariam de bom grado a coerção do grande capital estatal, que lhes ditaria o padrão de lucratividade, da mesma forma que dita o valor do trabalho. Em resumo, um enclave do pequeno capitalismo civilizado, uma velha quimera pequeno-burguesa, no interior da marcha do “socialismo reestruturado”. Dispositivo que suprimiria deficiências na produção de bens de consumo, seria instrumento auxiliar na regulagem do valor do trabalho, mas não ofereceria perigo algum para a estrutura dominante do capital coletivo/não-social, mais uma vez inteiramente salvaguardado, ele que constitui o nó-górdio de toda a problemática concreta.

Que essa utopia mesquinha possa promover alívios imediatos, em face da evidente desagregação do sistema, é apenas a dimensão circunstancial da questão. Nem é preciso recusar in limine essa eventual eficiência contingencial, para compreender que todo o movimento de reestruturação vai em direção ao pólo oposto em que estão situadas as condições para uma transição socialista.

O império imoderado do valor no mercado de trabalho e o império moderado do lucro no mercado de bens de consumo aliam a tirania a um voto piedoso, no interior do desencadeamento de um processo, onde os parâmetros da privatização, ainda que setorial e restrita, e os correlatos instrumentos de mercado no enquadramento do trabalho, cada um a seu modo, acentuam e generalizam a regência do capital, conferindo teor e aura privatista à intervenção corretiva. Em suma, ela se define por soluções próprias ao campo da propriedade privada, ao invés de buscar a superação do capital coletivo/não-social pela constituição da propriedade social, condição de possibilidade da auto-determinação do trabalho, base, portanto, da liberdade individual para além da iliberdade do trabalho, assentada sobre o capital único, e também da supressão de toda a liberdade individual, assentada sobre a plataforma da dominação do capital privado. Por fim, não deve faltar também o registro de que a glanost e a perestroika, — em suas diversas configurações pelos países do pseudo-socialismo, em alguns de forma mais aguda e aberta, como exemplificam a Polônia e a Hungria, em outros apenas virtualmente — , abrem os caminhos, pela primeira vez na história, para a reconversão ao capitalismo das formações sociais pós-capitalistas.

Em perfeita consonância com as reformas econômicas, e também no espírito das equações próprias às formas sociais privatistas, é que a desagregação política do bloco pós-capitalista está sendo enfrentada.

Registrada e aplaudida a ruptura da carapaça tirânica do colosso estatal-partidário, que se fez acompanhar pela implantação de dispositivos formais das liberdades públicas, importa agregar, não só a crítica destes limites, mas, em especial, do caráter da direção tomada pelos corretivos nesse plano.

É decisivo constatar a homologia entre a opção pelos dispositivos de mercado, na organização da sociedade econômica, e as garantia formais, na organização da sociedade política. O acoplamento, tanto positiva como negativamente, revela sua congruência. Não pode haver forma societária competitiva, por mais restrita que seja, que não implique presença, participação e negociação na praça das trocas, por mais estreito que seja o seu formato, e, por extensão, o assentamento formal e geral da praça livre, por mais acanhada, igualmente, que possa ser. Mesmo porque, no caso, a conquista ou concessão das liberdades políticas substitui o decreto político, nunca materializado, do princípio da sociedade solidária. Aquele precisamente que pretendeu, por simples vontade política, a exclusão da estrutura social competitiva, seja pela dissolução da pluralidade dos apropriadores, seja desembaraçando o trabalho da aferição pelo valor. Agora a competição é readmitida, trabalho e apropriadores terão, igualitariamente, que se auto-proteger, em especial contra o grande apropriador, na arena livre da política, pelo exercício dos seus estatutos formais. Inequivocamente, Marx tem razão: “Na livre concorrência não são os indivíduos que são postos como livres, ma o que é posto como livre é o capital”. Sob regência do capital, quando a produção nele fundada é a forma necessária, o movimento dos indivíduos se apresenta como a liberdade dos indivíduos, isto é, se apresenta como o “desenvolvimento livre sobre uma base limitada”, as liberdades limitadas da forma livre da cidadania, que sucumbe ao poder das coisas: enfim, trata-se de um tipo de liberdade individual que é a “supressão de toda liberdade individual e a sujeição total da individualidade às condições sociais que assumem a forma de poderes objetivos”.

Há décadas os impasses do pós-capitalismo estão postos, e, desde princípios dos anos oitenta, com a Comuna de Gdansk ficou irrevogavelmente patente que não havia qualquer transição socialista em curso.

A demora tão grande para o afloramento dessa evidência (cuja admissão generalizada está muito longe de já ter se dado) prende-se a um complexo infinito de razões, proporcional à importância inexcedível, crucial para o desenvolvimento da humanidade, posta pelo imperativo da superação do capital e de sua forma da sociabilidade. Impossível ensaiar aqui até mesmo a mais elementar relação de motivos, entre autênticos e espúrios, que produziram e reiteram esse retardo do entendimento. No entanto, desde há um quarto de século, era visível que, nas tentativas eventuais de superar seus dilemas, o pseudo-socialismo teria que se pautar ao menos pelo parâmetro de que a solução buscada não se encontraria, nem na reafirmação do “socialismo” como identidade do atraso sectário e dogmático, nem na capitulação sem reservas às formas econômicas e políticas do capitalismo.

A força da realidade rompeu, pela crise explosiva, a possibilidade da simples reiteração do atraso sectário e dogmático, mas o vigor da lógica do capital e a completa falta de vigor teórico, em meio à mais extraordinária confusão ideológica mundial, conduziu, nos confrontos de todo tipo com o mundo da iniciativa privada, à capitulação integral aos referenciais do capitalismo, tal como a glasnost e a perestroika e seus similares tornam palpável em suas especificações concretas de cada lugar.

Por escandaloso que seja, não faltam os que ainda conseguem alimentar esperanças socialistas através dos acontecimentos do leste. Não se remete com isso apenas ao velho seguidismo de indivíduos e grêmios, mas a organismos tradicionalmente mais críticos, que conseguem devisar, na esteira de teses antigas, desfocadas pelo tempo, prenúncios no leste de breves revoluções políticas, que hão de redimir o “estado operário degenerado”. O mais grave, para além da quimera esdrúxula, é precisamente essa fé antimarxiana na política, em particular a fé política no estado e na volúpia castradora de torná-lo perfeito.

Em verdade, entre os componentes de maior relevo do desastre do pós-capitalismo está precisamente o excesso de política, a política excedendo seus limites e substituindo desastrosamente as tarefas da revolução social, estancada e inviabilizada pela ausência de sustentação material, o que tornou impossível a construção de um novo universo societário, para além da lógica do capital e das formas e arbitrariedades da política, enfim superada porque, então, reduzida à inutilidade.

É fundamental compreender, até pelas frustrações máximas desse século, que a transição socialista não tem por identidade um ato ou processo político. Não se reduz ou resume a eventos dessa natureza, nem se expressa ou realiza pela essência destes. Ao longo dos 900, a história profunda dos países que enveredaram pela ruptura com o capitalismo, em razão mesmo de seu ponto de partida — quadros nacionais de baixo padrão de desenvolvimento material, que impediam a projeção e a consecução de um novo patamar de sociabilidade — , foi uma história da prevalência do político, de uma aposta política no político, a princípio involuntária e depois, pelo enredamento das situações criadas, irreversível e assumida, ao limite mesmo da bestialidade; por fim, hoje, a desagregação de toda a experiência é a própria história do fracasso da política. Fieira interminável de eventos, que se distribuem por toda a gama que vai do heróico ao abjeto, para cuja exemplificação basta referir, sumariamente, tomadas de posição e ocorrências recentes. Desde, talvez, a mais simples ou banal, representada pela reação cubana às mudanças soviéticas, consubstanciada em nítida manifestação de dogmatismo defensivo, na rejeição meramente política que ofereceu à “nova linha”, sem que pudesse almejar com isso qualquer efeito internacional, e nem mesmo a intangibilidade de seus procedimentos internos. Posição política igualmente estéril, enquanto afirmação socialista, ademais de fantástica, tendo em vista o êxodo de seus cidadãos, é a da Alemanha Oriental, na reafirmação inflexível e insensível de seus postulados sectários. Exatamente por se tratar da menos mal sucedida economia do leste, ressalta a vacuidade, ao limite, da própria política da truculência. Todavia, o exemplo mais completo do que se quer ilustrar fica por conta da China, que tem exercido ao longo dos quarenta anos de sua revolução a própria exacerbação da vontade política, da fé na política: basta pensar na insanidade da assim chamada revolução cultural. Quando há poucos anos, antecipando-se à perestroika, lançou-se à “modernização” econômica através dos mecanismos do mercado, mas não adotou a liberdade formalizada dos direitos públicos, o que corresponde, em grande medida, ao fato de que o desenvolvimento de seu capital coletivo/não-social seja inferior ao soviético, traduziu com isso a arraigada convicção, tomada como pressuposto, à semelhança de tantos outros momentos de sua história, de que a transição seja uma sucessão arbitrária de atos políticos, decisões de poder que reinventam o mundo. Tian An Men, celestial praça das trocas e infernal praça de guerra é apenas uma ilustração abominável de reinvenção. Mas, o exemplo mais nefando e odioso dessa fé política continua nas mãos dos bandidos do Khmer Vermelho, pela trucidação de dois milhões de citadinos, no propósito de transformá-los em camponeses, o mesmo que foi feito por Stálin, muito antes, quando decidiu transformar camponeses em comunistas.

Na exata medida em que a construção da sociedade socialista não é uma reinvenção do mundo, a política não é a argamassa com que são moldáveis seus fundamentos.

Por isso o “socialismo real” é a falsificação política do socialismo, o velamento politicista da inviabilidade material da revolução social. Hoje, reduzido objetivamente a frangalhos, mas politicamente reafirmado em sua “reestruturação”, bloqueia as aspirações socialistas pela monstruosidade de suas façanhas políticas.

Por decorrência, na atualidade, o traçado de um projeto socialista passa necessariamente pelo reconhecimento de que a história, até aqui, não conheceu qualquer transição socialista, e que a abertura de novos caminhos principia pela ruptura com toda forma de crítica complacente ao pós-capitalismo, pois, em sua transigência, acomoda ambigüidades e uma espessa nostalgia conformista, o culto sofrido de uma derrota inconfessa e o desengano recalcado de esperanças e devoções; ou seja, a crítica complacente do pseudo-socialismo é uma ideologia voltada para o passado.


Notas de rodapé:

(1) O fantasma que o autor se refere é a propositura humanista do pensamento de Marx e sua influência nas organizações do trabalho, agora vencidas pelo capital. (retornar ao texto)

Inclusão: 24/03/2020