As Máquinas Param, Germina a Democracia

José Chasin

1979


Primeira Edição: Publicado originalmente na Revista Escrita/Ensaio nº 7. Escrita, São Paulo, 1980.
HTML: Fernando A. S. Araújo.
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Em verdade, a História só surpreende aos que de História nada entendem.

Há os que a ignoram, e outros que a temem. Os que se recusam a compreendê-la e os que estão socialmente impedidos de fazê-lo.

Se os pormenores não são, de fato, previsíveis, dada a infinidade de fatores intervenientes, sempre conhecíveis de modo apenas aproximado; se os contornos, pois, só ganham corpo na própria hora em que se efetivam os processos, do mesmo modo que os eventos não são rigidamente programáveis, a nível dos dias e das horas; por outro lado, ao contrário disto, as grandes linhas de tendência, a necessária ocorrência dos acontecimentos básicos são amplamente discerníveis, divisáveis mesmo a longo prazo. Basta admitir a existência de uma ciência da História e que haja disposição social para rigorosamente se submeter à sua lógica.

Tudo isso, obviamente, não é nada fácil. Contudo, no que consiste impulsionar os partos da História, se não, nos fatos, intervir à luz da própria lógica destes? Que, no Brasil, a História retomaria seu curso era absolutamente certo. Por que, então, tanta dúvida, receio, incompreensão e até mesmo certa perplexidade, quando a partir de maio de 78, assim como que de repente, os trabalhadores, alteando a cabeça, reingressaram na cena sócio-econômico-política nacional? É que à História não são estranhos os avanços e os retrocessos, nem dela são próprios os passos automáticos ou simplesmente em linha reta. E, nos últimos quinze anos, estivemos submersos ao historicamente velho, que se reproduziu de forma veloz e ampliada, inchou e se estendeu por toda parte. As vistas ficaram enevoadas, e a bruma que se formou tem dificultado a percepção da reemergência do efetivamente novo, ao passo que não pouco galho seco tem sido tomado por ele. Confusões se estabeleceram, inversões foram criadas, convicções insustentáveis se cristalizaram, debilitamentos de toda ordem se viram efetivadas. E a tudo isso, agora, paga-se ônus pesado. Os descaminhos cobram seus tributos, quando a própria força da realidade se põe a resgatar e a levar adiante a construção do concreto e verdadeiro.

Impõe-se superar todo embotamento. A hora, na sua imperatividade, é mais do que propícia. Move-se ascendentemente o que há de mais fundamental no quadro brasileiro. O que era latência, possibilidade, ganhou a carne viva do imediato. Que não se perca esta maior de todas as oportunidades.

O que segue são algumas reflexões de um observador; circunstancialmente distante, para quem o Brasil de Figueiredo — de mão estendida e empunhando rédea curta, sob medida talhada — é um cenário apenas palmilhado através das folhas de jornal e das páginas de revistas. Donde faltará, talvez, o “cheiro” da vivência, a temperatura da pele diretamente apalpada. Mas, se se persiste na ousadia de falar do não vivido, é que, sempre, o que mais importa é ir para além do tópico, e, sem desprezo por este, agarrar o subjacente tecido estruturado, determinante real do fluir e encrespar das águas de superfície. Ademais, é hora de contribuir, incondicionalmente, em busca da transparência.

Muitos estarão dispostos a concordar, com maior ou menor ênfase, que sejam importantes os sucessivos caudais grevistas em curso há um ano. Também admitirão que certas coisas se alteram, no jogo das forças, com o reaparecimento público do movimento operário. De igual modo como não discordarão que o movimento oposicionista se veja fortalecido pela adesão de mais um agente.

No entanto, bastará dizer, sacudindo gravemente a cabeça, que as greves são importantes, que sua presença modifica determinadas situações e encaminhamentos, e que, com elas, amplia-se numericamente o contingente democrático? Ter-se-á, com semelhantes afirmações, tocado no âmago das ocorrências? Será suficiente falar alusiva e vagamente em importância, modificação e ampliação das hostes democráticas, como se o movimento das massas trabalhadoras fosse, ao fim e ao cabo, um mero e simples — mais um — aderindo, por fim e afinal, a um caudal anteriormente formado? Assim raciocinando não se estará deixando escapar o que mais importa, o conteúdo principal: não se estará perdendo, a escorrer entre os dedos, exatamente o advento de uma qualidade nova? E, assim, em consequência, relegando à obscuridade desdobramentos e decorrências políticas, anteriormente, em verdade, impossível? E Também não se estará deixando de devidamente interrogar o como e o porque do advento? Vale enfatizar que da resposta que se der a estas questões depende o verdadeiro significativo que se reconhece no ressurgimento do movimento operário, e substancialmente o que se poderá esperar dos passos futuros. E tudo isso importa, por razões eminentemente práticas, acima de tudo e antes de a mais ninguém, às massas operárias e trabalhadoras.

Quanto aos pormenores, talvez sejam possíveis tônicas diversas de interpretação. Maior ainda é a probabilidade de que seja válido precisar uma infinidade de questões. E, sem dúvida, é de todo necessário identificar com rigor os aspectos positivos, as vitórias conseguidas, e os momentos desfavoráveis, as derrotas sofridas e que não foi possível evitar; descobrir [...] os erros cometidos e superá-los nas próximas empreitadas. Tudo isso tem de ser feito, mas, sejam quais forem as respostas que se venham a obter, algo essencial é líquido e certo, e deve mesmo, imprescindivelmente, orientar todos os planos das análises subsequentes. De maio de 78 a março de 79, neste curto espaço de menos de um ano, o país reencontrou o fluir de sua História, — na dinâmica de seu principal e decisivo fundamento para a democracia: a massa trabalhadora.

Brotou em maio, é certo. Mas que não venham com o grosseiro equívoco de pensar em tardios rebentos de outono, pois teve de germinar, como que hibernando, ao longo de catorze anos. E atrás de si, há que reconhecer, não domina o vácuo. Ao inverso, há toda uma História que 64 interrompeu, mas que jamais poderia extinguir.

Hoje ela reemerge em novas circunstâncias e com atributos acrescidos, renovada e ampliada em suas forças. Objetivamente não recusa seu passado, supera-o. Aliás, por enquanto não pensa nisso, age. Reencontra o melhor de uma tradição e a leva adiante com maiores possibilidades, se não a curto, com certeza a longo prazo.

E, se desse passado não tem maior ou mais exata notícia, não é culpa sua. Ademais, por que não recordar Também a antiga observação de que “eles não sabem, mas o fazem?” Inquietos, surpreendidos, tapando os olhos teimosamente, ficam os que já por década e meia forcejam por “reinventar” o mundo, em lugar de transformá-lo. E aqui não falamos dos que reprimiram e perseguem, dos que tolheram e aprisionam, dos que cassaram e demitem. Estes levaram e levam a cabo sua sina histórica. Magoa e repugna, mas não pode espantar. Falamos dos outros, dos que desserviram sob o manto e a auréola dos devotos, na ciência ou na inconsciência, e sua banda de música ainda soa e ressoa em todos os quadrantes, desejosa de apagar com esponja de conceitos vesgos a completa e contraditória realidade de cerca de duas décadas.

Desejaram suprimir, ou, pelo menos, expurgar, os tempos de 45 a 64.

E, entre eles, até outros mais gulosos se apresentaram. Com o retorno da História sairão, gradativamente, de foco. Mas, enquanto isso, não é permissível que a nova fase, em início, seja, como a outra, tergiversada. Motivo Também porque, hoje, é preciso estabelecer e defender o fundamental com toda urgência.

Dos Braços Cruzados às Assembleias de Massas

Antes de cruzarem os braços, em maio de 78, os trabalhadores vinham mantendo as mãos sempre muito ocupadas e a boca em longo e contrariado silêncio: não diziam de sua fome progressiva. Se a fome não era nova, e não era (e hoje, evidentemente, nem de longe é coisa ultrapassada), é preciso compreender que havia atingido um ponto agravado, onde as premências da necessidade dissolviam pela desesperança qualquer ilusão ou crença enganadora com que, durante anos, se acenara para futuros “bolos” — gordos e impossíveis. Já não havia, fazia tempo, confeitos no horizonte. E, nas vitrinas de todos os comentários, crescia a exibição do fracasso do “milagre econômico”. Extinguiam-se clima e motivo para mais esperas.

É preciso assumir, sem espaço para dúvidas ou lugar para especulações, em toda profundidade e consequências, o exato diagnóstico de Luís Inácio da Silva:

“A causa mais imediata da greve foi que o estômago do trabalhador estava colando. Foi a verdade que tivemos coragem de dizer ao trabalhador e que poucos haviam dito antes. A greve aconteceu pela franqueza com que essa palavra foi colocada dentro das fábricas” (A Greve na Voz dos Trabalhadores, História Imediata nº 2, Alfa-Omega, p.56).

E Lula diz mais, sempre determinando as coisas com exatidão de fatos e propriedade analítica:

“…a paralisação não se constituiu em nenhuma surpresa. Ela estava sendo plantada há alguns anos. O auge foi a luta pela reposição dos 34% no final de 1977”.

O que equivale a dizer, como ele de fato o diz, que

“…a classe não está dormindo, como nunca esteve nestes últimos 14 anos” (idem).

E este líder, hoje consagrado, o primeiro de toda História sindical brasileira a presidir assembleias de quase uma centena de milhar de operários, confessando que antes das paralisações de maio “nunca tinha estado numa greve”, faz a síntese, apontando o eixo essencial:

“O arrocho salarial fez com que a classe trabalhadora brasileira, após muitos anos de repressão, fizesse o que qualquer classe trabalhadora do mundo faria: negar sua força de trabalho às empresas. Era a única forma que os operários tinham de recuperar o padrão salarial, ou melhor, entrar no caminho de sua recuperação” (idem).

E qual a natureza de toda a movimentação? Mais uma vez as palavras do dirigente metalúrgico de São Bernardo mostram uma visão realista e isenta de preconceitos politicista:

“Eu acho que o econômico e o político são dois fatores que a gente não pode desvincular um do outro. São duas coisas muito interligadas. Em consequência, acredito que o resultado da greve foi político. Seria mentiroso da minha parte dizer que o movimento foi de cunho econômico, da mesma forma que seria enganoso da minha parte dizer que a classe trabalhadora vai fazer uma greve eminentemente política, sem nenhuma reivindicação. A luta que aconteceu no ABC foi por salário, mas a classe operária, ao brigar por salário, teve um resultado político na sua movimentação. Por isso, afirmo que a primeira lição da greve é que não pode subestimar a capacidade de luta do trabalhador brasileiro” (idem).

Enfim, o que temos? Respondamos, resumida e lineamente, para que, na busca do como e do por que, sobressaiam com ênfase devida os significados axiais. Na raiz da fome, — o arrocho, na raiz da greve, — a fome.

Direto e áspero. Tudo o mais, condicionantes suplementares; determinantes insuficientes se se trata de agarrar a razão de fundo; fatores ativos, sim, apenas quando se pensa nos detalhes do perfil, no instante e no aroma, digamos assim, e não na alma do que está a suceder.

Suceder que não surpreende — em maio o cruzar de braços, em março as greves declaradas — e não surpreende por três razões: primeira, — pela existência do arrocho e seus cruéis derivados em todos os planos, a preparar pela base o leito de uma reação natural e específica; segunda, — é da lógica universal da força de trabalho valer-se, mais cedo ou mais tarde, da arma da greve; terceira, — a movimentação estava sendo “plantada, há alguns anos”, “a classe nunca esteve dormindo nos últimos 14”.

Diga-se de passagem que bastam estas últimas afirmações para pôr abaixo, num só golpe, as especulações sobre o espontaneísmo, que alguns desejam fazer dominante, na apreciação de todo o panorama.

Tornando ao conjunto das evidências que, acima, vinham sendo arroladas, vale grifar que bastava alguma sensibilidade, e ter por suposto a universalidade da lógica, mais atrás referida, buscando determinar a forma particular pela qual ela se manifestaria, para saber de todas essas coisas. Em outras palavras, era suficiente não pretender “reinventar” o mundo pela sua politicização, isto é, equivocadamente tomar a totalidade social pela parte de seu aparato político-institucional.

Por fim e ao cabo, mobilizadas pelas suas necessidades matérias básicas, as massas desencadearam uma atuação que, logo à saída, derrubou dispositivos jurídicos, na letra até hoje vigente, configurando, de sua parte, inequívoca intervenção política no quadro nacional. A respeito, diria Lula, ainda em 1978, no mesmo depoimento que já citamos outras vezes:

“Hoje nós entendemos que o trabalhador aprendeu que greve não é uma coisa proibida de se fazer. A greve pode ser cerceada por uma lei injusta, mas a paralisação deve ser feita, mesmo que exista essa lei que a impeça. Com a condição de que ela seja feita quando for necessária e sempre dentro das possibilidades de vencê-la” (idem, p.58).

Por que as greves eram necessárias, cremos que Já está visto.

A questão, agora, é saber por que, em torno de uma certa época, elas passam a ser viáveis e a estar dentro das possibilidades de serem vitoriosas.

Neste renascer do movimento operário brasileiro — de maio de 78 a março de 79 — não pode haver dúvida que a primeira e grande vitória foi a própria realização das greves. De cada uma delas, em que pesem diferenças de conquistas e diversidades de condução e encaminhamento. Diferenças, de fato, relevantes, que devem ser ponderadas; e diversidades, em verdade, efetivas, que não podem ser esquecidas. Contudo, nada deve empanar o principal: as greves das massas trabalhadoras reencetaram o curso histórico no país.

Que quadro tornou isso possível? Retomemos a verdade essencial: o chão da greve é a fome e o chão da fome é o arrocho.

E qual é a raiz do arrocho salarial? Evidentemente não é outra do que a própria plataforma econômica do regime implantado em 64, e que recebeu a indecorosa designação propagandística de “milagre econômico brasileiro”. Tabu durante quase quinze anos, ainda hoje, quando alguns já reclamam sua discussão, se bem que com imenso atraso, não está sendo examinado e denunciado como é vital e decisivo que o seja.

Cabe naturalmente aos economistas o destrinchamento em detalhe de todos os esquemas e mecanismos específicos que foram armados e postos em funcionamento ao longo de todo esse tempo.

Convém ressaltar, apenas como quem lembra uma antiga e sabida lição, que semelhante análise, para alcançar a objetividade, terá que perfilar pela perspectiva do trabalho e alcançar a concludência política.

Contudo, na falta de um arsenal analítico dessa ordem, em que se pesem algumas contribuições, e para efeito deste comentário, basta-nos avançar alguns traços muito simples, ainda que fundamentais, assim como quem oferece um esquema para posteriores e múltiplos enriquecimentos.

Dissemos, às primeiras linhas, que na última década e meia estivemos submersos ao historicamente velho, que este inchou, reproduzindo-se de forma veloz e ampliada. Outros, talvez, ainda prefiram dizer que, de 64 a nossos dias, o capitalismo no Brasil sofreu um processo de ampliação, aprofundamento e modernização.

Não cremos que esta caracterização aponte para o essencial, pois não se trata de uma ampliação, de um aprofundamento ou de uma modernização qualquer. Em outros termos, é insuficiente brandir com as generalidades próprias ao capitalismo. É preciso pôr o dedo sobre a chaga viva do processo específico, que não nega verdades universais, mas que também não as repete com a monotonia formal de um silogismo.

É verdade que a economia brasileira cresceu; hoje o país é verdadeiramente um “gigante”, mas um “gigante” na ordem dos países subordinados ao capital estrangeiro. E, como já disse alguém, a existência e o funcionamento deste último possui um nome, e este tem de ser dito: chama-se imperialismo. Denotação que não é grata a uns tantos, que andaram a “reinventar” o mundo, mas que não por isso deixou de ser verdadeira, existente e atuante.

E o crescimento da economia brasileira deu-se rigorosamente, ainda que “modernizadamente”, dentro de um quadro dessa ordem.

Razão porque, quanto não única, dissemos que o historicamente velho inchou, reproduzindo-se de forma veloz e ampliada. Outros dos traços velhos estão na fraqueza de sua burguesia local, na questão da propriedade de terra e nas formas da produção agrária, bem como nas formas autocráticas e ditatoriais do exercício do poder de estado.

Mas, sejamos breves, dado ser o propósito central manter a reflexão sobre o historicamente novo: a retomada da dinâmica de luta das massas operárias e trabalhadoras. Todavia, para falar do recente ressurgimento do novo é preciso rapidamente pincelar a inchação ocorrida com o historicamente velho.

Importa suscitamente considerar dois aspectos: o esquema essencial do “milagre” e o seu fracasso, colapso ou esgotamento.

A política econômica do sistema no poder consiste, grosso modo, numa forma de acumulação capitalista subordinada ao capital estrangeiro, em que a produção é direcionada para dois pólos principais. De um lado, intensifica-se a produção dos bens de consumo duráveis (automóveis, eletroeletrônicos e correlatos); para seu consumo é estruturado, internamente, um mercado privilegiado e reduzido. É o pacto com o segmento alto das camadas médias. Paralela e combinadamente, é desencadeado um esforço exportador.

Para que tal mecânica funcione, nas condições de um país subordinado ao capital estrangeiro, são necessários o concurso dos dinheiros internacionais e a aplicação do arrocho salarial sobre a grande massa dos trabalhadores. O primeiro aparece sob a forma de investimentos diretos e muito especialmente de empréstimos. O arrocho preserva a existência da mão de obra barata e faculta a produção de bens, ditos competitivos, para o mercado internacional.

É da lógica do sistema remunerar especialmente o capital financeiro internacional, seus parceiros nacionais e reservar uma parcela para um segmento privilegiado das camadas médias; bem como obrigatoriamente implica também na depressão salarial da massa trabalhadora.

Numa palavra, a organização dada à produção nacional é que determina a avassalante desigualdade na distribuição de riquezas.

Em outros termos, a forma atual da produção da riqueza é que causa diretamente a super-exploração do trabalho, isto é, a miséria das massas trabalhadoras. Sendo a estrutura econômica vigente a responsável direta pelo arrocho, é impossível melhorar a distribuição sem reorganizar a produção. Não se trata, portanto, de “acrescentar” à organização atual da produção uma política de distribuição melhor e mais justa, esta só se torna possível com a modificação efetiva da própria estrutura produtiva.

Assim como é, articulada em todas as suas partes, a engrenagem econômica em vigor funcionou e realizou um período de acumulação capitalista. É propriamente a época do “milagre”. Os setores dominantes, nacionais e estrangeiros, realizam seus lucros, matem-se politicamente unidos e consideram as formas ditatoriais da gestão do estado como uma solução muito adequada, “naturalmente” ajustada às necessidades “gerais” do país. É a “euforia” do Brasil-Grande, ao longo dos anos de 1969 e 1973. A grande massa não participa do “milagre”, nem, é claro, da euforia.

Reduzida ao silêncio pela repressão, vai acumulando sua miséria.

Mas o “milagre” obedece a uma lógica perversa.

Os mesmos mecanismos que asseguram seus “êxitos” condicionam e conduzem à sua derrocada. Dito de outro modo: a lógica do “milagre” acaba por fazer com que ele próprio morda sua cauda e termine por se autodevorar. No mesmo passo em que seus objetivos parecem ir se realizando, vai se constituindo o quadro em que ele se vê convertido num estrangulamento ostensivo. E, assim, põe-se a nu, explicitando seu raquitismo congênito. Seu colapso não é apenas um fim ou esgotamento, mas uma reversão de consequências que devora ampliadamente seus “anos alegres”, além de ser a comprovação daquilo que, desde o princípio, era evidente: sua total impossibilidade de ser uma real e legitima solução para a organização da vida econômica nacional.

Basta dizer, muito reduzidamente, que, centrando a produção nos bens de consumo duráveis e nos produtos para exportação, teve, por isso mesmo, que ir ampliando galopantemente o volume das importações de bens de produção e insumos básicos, quando seu objetivo pretendido era, ao inverso, encontrar a solução nas exportações. Isto é, quanto mais produzia para a privilegiada faixa do mercado interno e exportava subsidiadamente, tanto mais era obrigado a ampliar as importações. De forma que a balança comercial, não considerando abstratamente momentos isolados, mostrou-se cronicamente deficitária. Progressivamente, como consequência, foi se avolumando a dívida externa, passando esta a ser, crescentemente, nova e decisiva fonte de renovados empréstimos, na medida que amortizações e serviços da dívida vão, ano após ano, levando inexoravelmente ao sufocamento. Hoje, e já desde alguns anos, o único “milagre” é uma dívida externa bruta que até o final de 78 esteve em torno dos 42 bilhões de dólares.

Dívida externa que, só durante o ano de 79, entre juros e amortizações exigirá do país cerca de 11 bilhões de dólares. E o país, no mesmo período, não obterá mais do que aproximadamente 14 bilhões de dólares com suas exportações, e terá que despender só com a compra de petróleo algo em torno de 5,5 bilhões de dólares, com a importação de alimentos quase 2 bilhões de dólares, outros 5 bilhões com máquinas, equipamentos e insumos, e mais de 2 bilhões com produtos químicos e farmacêuticos.

Tais contradições estão inscritas na própria política econômica do sistema, de tal forma que fatalmente ela teria que chegar ao impasse. Ela própria, como é mais do que transparente, conduz inexoravelmente ao estrangulamento. A crise do petróleo, tantas vezes invocada, bode expiatório do governo, nada mais fez do que precipitar a inevitável implosão do “milagre”; não foi, nem é, sua causa.

E tudo se deu como na antiga história do aprendiz de feiticeiro.

A política econômica do sistema, implantada depois de 64, foi proposta como de saneamento das finanças e da retomada do desenvolvimento nacional. Sanear seria liquidar com a inflação e esta ultrapassou em 78, e de muito, os 40%. E nestes primeiros meses de 79 os índices vão explodindo de mês a mês, registrando março uma taxa de quase 6%. A retomada do desenvolvimento implicava na busca de autossuficiência a nível dos insumos básicos e no avanço da produção dos bens de capital; uma palavra, na redução da dependência externa. Hoje vamos rapidamente acumulando uma dívida externa que em breve ultrapassará os 45 bilhões de dólares (em 64 a dívida externa era de 3,1 bilhões), as importações de maquinaria só fizeram crescer, o setor nacional respectivo não viveu anos tranquilos e está na expectativa de um refluxo, e o país é prisioneiro do mercado financeiro internacional, tendo sido convertido em arena da disputa monopolista.

Vítima de suas próprias engrenagens, o “milagre” vem se desintegrando visivelmente desde o segundo semestre de 73.

Efetivamente todo o governo Geisel foi transpassado pela crise do “milagre”.

A primeira reação do governo passado, para efeito público, foi sustentar a ficção da “ilha de paz e prosperidade num mundo em caos”, enquanto procurava alcançar certos redirecionamentos com o II PND, no que não logrou êxito. Na segunda metade do governo as evidências do colapso são claras e impositivas; será então desdobrada a política do “desaquecimento econômico”. O “milagre” já entrara francamente na etapa autofágica, e o “desaquecimento” nada mais é do que a tentativa de estancar a hemorragia em que se transformara o “milagre”. Pois, agora, num aparente paradoxo, colhem-se situações financeiras cada vez mais dramáticas, tanto mais funcione a engrenagem do “milagre”. O “ideal” passa a ser o crescimento “moderado”; o governo quer o PNB elevando-se as taxas reduzidas, passa a ter pavor dos altos índices do período anterior. Mas as forças econômicas desencadeadas mostram-se rebeldes. O “desaquecimento” não interessa, nem agrada a ninguém. Os fantasmas da insolvência, da recessão, do desemprego e outros mais rondam e envolvem a tudo. Os beneficiários do “milagre” insistem na continuação dos privilégios. A insatisfação das diversas áreas econômicas vai aparecendo. Ninguém quer pagar o ônus do desastre. A unanimidade dos setores articulados no pacto do poder desaparece.

As diversas frações da classe dominante estão inquietas. A situação de desencontro e inconformismo dos parceiros que dividem o poder, sua necessidade de reencontrar uma fórmula para um novo período de acumulação, que atendesse e, na medida do possível, reconciliasse seus interesses, vai gerando — e a obrigando o poder a aceitar e suportar — o surgimento de um debate, crescentemente público, que, por fim, não teve como ser escondido aos olhos de toda a nação, particularmente das vastas e temidas massas operárias trabalhadoras, às quais, obviamente, o sistema pretendia manter à máxima distância dos grandes problemas em curso.

De sorte que, ao “milagre” dilacerar a si mesmo, geraram-se inevitavelmente pugnas e discussões intestinas aos setores do capital, sofrendo o tecido social como que a dilatação de seu colo uterino. Pelos interstícios formados, as massas trabalhadoras, especialmente os operários dos grandes centros industriais, não deixando escapar a oportunidade, fizeram nascer a evidencia pública de sua fome. Fizeram o movimento operário voltar ao cenário brasileiro, buscando retomar seu decisivo lugar específico.

Já a movimentação de fins de 77, pela reposição salarial, mostrava uma espessura distinta da fase anterior, que fora marcada por lutas esparsas e isoladas mas empresas, verdadeiramente ensaios de resistência e de acumulação mínima de forças. Dava-se em 77 o ensaio geral para a grande estreia de maio de 78, espetáculo que viria a culminar nas grandes jornadas de março.

E se, por um momento, os líderes do ABCD foram alijados dos seus cargos, as massas trabalhadoras, através dos braços cruzados e das assembleias multitudinárias, reintegraram o fluxo ascendente da história à vida brasileira.

Das Assembleias de Massa ao Movimento Democrático de Massas

Durante os dias da greve de março, afixado à entrada do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, havia um poema. A polícia, no dia da intervenção, o arrancou, tal como arrancado à entidade foi seu legítimo presidente. Permaneceu o líder e permaneceram os versos, tal como a verdade básica que traduzem.

Anote senhor secretário
E peça pro escrivão
Remeta ao juiz de plantão
E diga ao encarregado
Da sindicância que investiga
Que a causa desta paragem
É a nossa barriga vazia.

E, aqui, fica registrada a confissão do poeta metalúrgico para que ilumine, ainda uma vez e sem sombra para dúvidas, a origem de toda a retomada do fluxo histórico a que se assiste. Retomada que só poderia se dar, como de fato apenas se deu, através da presença e da ação das massas operárias e trabalhadoras em geral.

Toda esta questão da retomada histórica obriga, hoje, a atentar e compreender dois aspectos fundamentais: o sentido das jornadas de março, o ponto do andamento histórico que alcançaram e representam, e a direção do desdobramento que implicam. Numa palavra: o que são e para onde se dirigem. Talvez, mais precisamente: no que estão se constituindo e para onde concretamente tendem.

Tal como os braços cruzados de maio, as greves declaradas de março dão-se no bojo da crise do “milagre”, e tem por raiz insofismável e explícita a objetiva e declarada miséria das massas trabalhadoras.

Se se insiste nesta determinação de fundo, quanto à gênese da reemergência do movimento operário, não é porque se deseja ficar cego a outros “fatores”, secundários embora presentes na malha, mas porque qualquer outra explicação, que não reconheça naquela a razão decisiva e de base, é simplesmente artificiosa, viciada ainda que por santas intenções, e que, por nublar e desordenar o processo real, incapacita para a extração das efetivas e mais férteis e vigorosas consequências políticas que o processo contém com riqueza singular.

Não haverá, então, diferença entre as ocorrências de maio e as paragens de março? Basta assinalar que, de uma a outra, assiste-se a um itinerário que vai da reemergência à afirmação do movimento operário. Do cauteloso tatear de maio de 78 — percurso exploratório, quase feito a medo a onde toda prudência é imperativa, e que sob modos especiais vazou a crosta repressiva de quase década e meia — em menos de um ano, as massas trabalhadoras reencontram as formas próprias e consagradas da atuação sindical. As greves são declaradas, explicitamente assumidas, e, em certa medida, preparadas; o sindicato reassume seu papel, os piquetes voltam à existência, o enraizamento do movimento no interior das empresas se aprofunda, e as assembleias sindicais, à luz do dia e das praças, transformam-se, como nunca dantes, em caudais de massas. A luta dos trabalhadores vai para as ruas, domina os jornais e ocupa todas as consciências; faz renascer a esperança de milhões, intimida e exaspera minorias raivosas, intranquiliza e leva à perplexidade os acomodados de todos os tipos. E, numa coincidência sintomática, é a única “saudação” de massas ao novo presidente. É a pujança do novo, na fragilidade daquilo que apenas está reemergindo, face da senilidade retocada, que ainda ostenta a energia real, porém balofa dos inchaços. Diga-se de passagem, no entanto, que apontar esta fragilidade essencial do historicamente velho, hoje abalado econômico-politicamente, não representa desconhecer sua possibilidade contingencial e de fundo de tornar a crescer e a se expandir.

Indicado que de maio a março, da reemergência à afirmação, efetiva-se um processo alargador e de espessamento, e preciso destacar, como determinação fundamental, que, tomado no seu conjunto, este período de cerca de um ano, em contraste com toda fase anterior, consubstancia um salto qualitativo: — o da passagem da fase de resistência democrática, que caracteriza todo o período anterior a maio de 78, para a do movimento DEMOCRÁTICO de massas propriamente dito. Quando o ressurgimento das lutas operárias atingem a afirmação, nas jornadas dos últimos meses, temos a emergência, de fato, de um movimento DEMOCRÁTICO de massas, diante do qual todas as ocorrências e manifestações oposicionistas anteriores se veem convenientemente dimensionadas, em seus caminhos e descaminhos, em seus momentos de maior ou menor propriedade e acerto, ao serem entendidas como tendo pertencido a um longo e esgarçado período que não transcendeu à pura resistência democrática. De modo que vem se explicitando no próprio real que o eixo sobre o qual se desenvolverá e consolidará o movimento DEMOCRÁTICO de massas depende da ampliação e da consolidação do movimento operário, para o direcionamento do qual irão progressivamente tem dento e afluindo os dos demais trabalhadores e assalariados, como, ademais, já vem ocorrendo com notável expressão. Outra coisa não são as manifestações grevistas verificadas em inúmeras categorias profissionais, até mesmo entre aquelas que, embebidas em fantasias e pundonores de classe, tem sido costumeiramente avessas e arredias às ações dessa ordem. E tudo se passa como no dizer saboroso de uma amiga, conhecida cientista social, em carta recente, que calca o dedo sobre a chaga com força de precisa determinação: “Parece que o pânico de status, tão característico de professores, é solúvel em fome”.

Novamente cabe a pergunta: como foi possível que um quadro dessa ordem se instaurasse, abrindo perspectivas tão alargadas? Mesmo que ainda se trate de referir a crise do “milagre” como verdade fundante da nova situação (fato este, aliás, que diluições analíticas, especialmente a distorção de querer “reinventar” o mundo, tem impedido de ser devidamente reconhecido, ainda que isto seja, a esta altura, pasmoso e aberrante, é imprescindível não perder de vista que a própria falência do “milagre” é um processo, constituído, portanto, de momentos e densidades específicas que continuadamente vão engendrando a peculiaridade de sua problemática. Assim, atualmente, já não basta reconhecer e apontar o esgotamento da política econômica da ditadura, mas é preciso ainda compreender que o pacto no poder, até agora, não conseguiu encontrar uma resolução para o problema dentro do ótica que há década e meia sustenta e pela qual continua a se empenhar de maneira radical. Em outros termos, não só a crise do “milagre” prossegue e se agudiza, como é visível que o novo governo não trouxe consigo, nem conseguiu equacionar nestes seus dois primeiros meses de poder, uma fórmula que abra, igualitariamente para os parceiros que o compõem, um novo ciclo de acumulação.

Como ungido e candidato, J. B. Figueiredo sintetizou uma diretriz econômica sumária e puntiforme que barrou outras pretensões. Isto é, aglutinou e prevaleceu, somando um conjunto de setores, deixando, desde logo, outros à margem. É suficiente lembrar as decapitações militares que se processaram, e nenhuma ingenuidade analítica pode reduzi-las a simples disputas e intrigas palacianas. De modo que, à época, a proposta, alinhada em torno de pouquíssimos itens (desenvolvimento agrícola, desestatização, “irresolução” quanto ao setor nacional de máquinas e equipamentos, o que significa resolução pela via externa) reuniu as “esperanças possíveis” de um contingente significativo dos setores do capital, que lhe entreabriu um crédito de confiança.

Contudo, desde o princípio, parceiros outros dos idos do “milagre” se viram ameaçados, quando não alijados, pois uma equação unitária que contemplasse a todos, na nova fase de desenvolvimento pretendida, se mostrou impossível de ser encontrada nas novas condições.

Suficiente para permitir a unção e levar ao poder, em meio às ásperas disputas que prosseguiam, a plataforma tracejada, no entanto, precisava (e precisa) ir sendo convertida num programa econômico completo e concreto de governo. Isto, todavia, até hoje não foi alcançado. há mais de ano que os que depositaram confiança aguardam e buscam a materialização dos projetos globais; esperam e pressionam pelas iniciativas implementadoras e pelas esquematizações e opções diretoras; permanecem na expectativa e reclamam pelos resultados do combate à inflação: pressupostos todos estes para o desencadeamento de uma nova fase de crescimento que almeja e na qual reside seu interesse e empenho decisivos. A irresolução da crise, no entanto, prossegue, e o equacionamento real da plataforma econômica não avança mais do que fragmentária, lenta e debilmente.

Mais do que isso, diante da acentuação do quadro inflacionário, o novo governo, de promessa e instrumento de um novo ciclo de acumulação, baixa à condição de bombeiro; posterga para além de 79 as passadas iniciais da prometida cavalgada econômica e declara prioritário “apagar os incêndios”. Assim, em dois meses, o governo, descendendo por um plano inclinado, passa rapidamente da promessa de retomada do crescimento para a mera prática da extinção de incêndios, brandindo “baixas de charutos” e, em seguida, ameaçando com os esquifes da recessão, fazendo lembrar as “velhas proezas” do ano de 1965. E vozes mais serenas e ponderadas já deixam indicado que um novo ciclo de desenvolvimento só é pensável num prazo de dois a quatro anos.

E tudo sem ter sido dada a menor prova ou demonstração de que a plataforma sumária de unção e candidatura seja, de fato, exequível. Aos primeiros passos da implementação desta afloram as dúvidas e contradições. A pretensão do governo de que a agricultura moderna responda pela oferta de alimentos implica, de imediato, na lembrança de que em face dela o pequeno produtor estará diante de um grande concorrente, e que, assim, só vão aumentar as disparidades de renda, de modo que aquele só será atingido negativamente se o problema fundiário não for (como ninguém poderá pensar que será) a base da política de projeto.

Ademais, como financiar o desenvolvimento agrícola pretendido? A equação delfiniana pelo PIS/PASEP levanta enormes inquietações, o protesto da ABDIB e Eduardo Escorel, diretor do grupo Bardella, temendo o corte de verbas para a indústria de bens de produção, que provem da mesma fonte, é mais do que explícito: “se cortarem os recursos do PIS/PASEP é melhor vender a indústria nacional”.

Alguém poderá garantir que tal “solução” repugne ao sistema no poder? E não vale a mesma pergunta para a questão da propriedade da terra, quando é proposta a agricultura como pólo dinâmico da economia? Quem, neste governo, poderia ser o avalista de que não estamos diante de uma investida desnacionalizadora? Não com certeza, por exemplo, César Cals, ministro das Minas e Energia, principal fonte que é da sustentação da privatização, que assinala que “o capital estrangeiro deverá participar só naqueles espaços que o capital nacional não se interessar em ocupar”, e isto sem lembrar, nem de passagem, que certos espaços podem não “interessar” ao capital nacional, mas seus destinos, com certeza, interessarão sempre às maiorias, mesmo porque a privatização é que não tem interesse nenhum para os vastos contingentes de massa.

De tudo isto resulta uma clara evidencia: permanecem, no seio dos setores do capital, e de modo agudo, as disputas e os combates pelas posições e pelas vantagens, táticas e estratégicas, e que transparecem mesmo a nível ministerial. Assim, pois, a dilatação uterina do tecido social, iniciada com o dilaceramento do “milagre”, prossegue, portanto, e ainda mais se amplia na medida em que a plataforma econômica puntiforme não consegue ser convertida num corpo programático, articulado e resolutivo. Tudo parece se passar como se já não houvesse mais solução de conjunto para os parceiros do capital.

Paulatinamente, como é natural num quadro de desencontros desta ordem, dá-se uma redução no teor e no índice bonapartista do poder, caráter que o transpassou desde as origens e que foi sustentado, em outros tempos e condições, com a máxima violência, e até mesmo com as formas mais abomináveis da repressão aniquiladora. Então, pelos poros do tecido social esgarçado, os movimentos dos trabalhadores emergiram e, na proporção direta do crescente alargamento, se avolumaram, passando o movimento de massas, assim formado, a ser, na sequência, o próprio polo dinâmico do prosseguimento da dilatação. Este o momento em que se encontra o quadro brasileiro.

Duas são, pois, os componentes fundamentais que determinam a dilatação que o contexto nacional atualmente apresenta.

Componentes não apenas diversas, mas opostas em sua natureza. A primeira, resultante da autofagia do “milagre”, caracteriza-se pelo desencontro entre os setores do capital; a segunda, determinada na raiz pela fome, tem por caráter o encontro de todos os setores do trabalho. A primeira, portanto, é centrífuga, tendendo ao fracionamento, enquanto a segunda é centrípeta, induzindo à aglutinação unificadora.

É nos parâmetros dessa distinção que se captam, em profundidade, os significados das jornadas dos últimos meses, bem como se perspectivam os desdobramentos possíveis.

Como já foi dito, tudo que antecede, no universo oposicionista, ao período de maio de 78 a março de 79, — marcos da reemergência e afirmação do movimento operário -, constitui a longa e dolorosa fase de tentativas, embates, encontros e desencontros da resistência democrática; sendo com as greves que realmente vem a se instaurar um efetivo e verdadeiro movimento democrático. Dado que vem à tona um caudal de massas — designadamente massas trabalhadoras, nucleadas pelo movimento operário, que ferem centralmente a questão brasileira. Mudam, assim, pela sua presença, por aquilo que são e representam, e pelas questões que de imediato põem vigorosamente na ordem do dia, a qualidade das lutas políticas em marcha. só uma visão politicista, com sua concepção simplesmente cumulativa dos processos e sua incompreensão positivoide das progressões, é que não será capaz de perceber que as fundamentais ocorrências do último ano ultrapassam, e de muito, a esfera do puro, ainda que reconhecidamente relevante, crescimento do exército oposicionista.

O politicismo, cego para a raiz da especificidade do verdadeiramente político e, por isto, reduzido e embaraçado pelo taticismo, desconhece o fenômeno das rupturas de superação e dos saltos de qualidade.

As jornadas de março e seus desdobramentos sintetizam, pois explicitaram e ilustraram melhor do que nada, significados e circunstâncias qualitativamente diversificados da atualidade brasileira.

Em março a parcela mais combativa e avançada do movimento operário sentiu forças e coragem para uma passada ousada e de larga extensão. O governo reuniu, com certo custo e lentidão, as energias de que dispõe e ripostou com intensidade. Do confronto, da medição de forças das resultantes afinal verificadas emergiram elementos de vivências que estão a credenciar, na guerra em curso, um dos lados para a vitória, enquanto simultaneamente vão descredenciando precisamente o que tem sido o vencedor contumaz dos últimos quinze anos. Isto, é preciso frisar, ocorre pela primeira vez neste longo período. E fala-se, que se note bem, da guerra em curso, e não das inúmeras batalhas de que ela será constituída. Além disso, se tal coisa não é, nas tendências gerais da história nenhuma novidade, é preciso ressaltar que o juízo está sendo feito a partir e sobre a concretude do momento. E, irrecusavelmente, esta é a primeira vez, em década e meia, que a análise de realidade pode divisar, nas águas brasileiras, tal potencialidade objetiva para as massas trabalhadoras.

Mas, se houve coragem e força, e nos veios do real é palpável a latência da vitória horizonte que se põe ao fim e ao cabo do que há de ser um árduo processo de inúmeros passos, que apenas está iniciado, isto não significa que as lutas até aqui travadas pelo proletariado forjado pelo arrocho não tenham apresentado debilidades. Sem dúvida, ao lado dos extraordinários e dominantes aspectos positivos que evidenciaram, coexistiram negatividades e fraquezas que caracterizam um processo emergente.

Ao lado da admirável sensibilidade, compreensão e capacidade de liderança demonstrada quanto às necessidades e disposição de luta dos trabalhadores, manifestou-se, ao limite, certa dose de incompreensão do quadro político atual, bem como o desconhecimento das exigências de preparação e constituição dos dispositivos sociais de atuação que permitem avançar para embates de níveis mais amplos e agudos.

O movimento revelou, por parte da liderança, íntimo conhecimento das massas, sabendo, ademais, reconhecer, no momento exato, que ainda não sabia tudo sobre os caudais que conduzia.

Descobriu, no processo, as debilidades atuais destas, retomando e retocando as formas de liderança.

Quanto à avaliação do momento em processo, viu-se surpreendido por resistências que não calculara, revelando limitações de entendimento, que indicam que não possuía plena consciência de que já estava se movendo francamente num plano político decisivo e delicado, quando supunha que mal feria a franja deste.

É preciso também referir que o movimento, à partida, não teve a percepção de que o fazia já em condições limitadoras, pois avançava sem contar com possibilidades maiores de ver, nem mesmo setorialmente, o processo se ampliar e generalizar, precisamente o que mais demandava. O que indica que ainda é frágil, o que não estranha dada a falta de experiência, a concepção e o domínio que o movimento possui dos processos e mecanismos de desdobramentos das lutas de massas.

Em síntese, no que tange às negatividades e fraquezas da emergência, manifestou-se a temeridade de avançar quando propriamente não havia condições imediatas de ganhar espaços, ficando exposto, assim, aos riscos do isolamento e de eventuais decapitações e perdas de entidades, pondo, desse modo, em perigo o andamento da acumulação de forças; revelando, consequentemente, falta de domínio dos processos de encaminhamentos das lutas de massas, e nutrindo a ilusão de que, mesmo sem a devida equipagem, poria no chão a política econômica vigente. Aliás, sua debilidade maior foi precisamente não ter efetiva consciência de que já neste plano político que se punha, de imediato, a batalhar.

Diante disto, ainda maiores são os méritos e significados das vitórias alcançadas. De maio a maio, num balanço de doze meses, é absolutamente insuficiente dizer que o resultado é franca, global e brilhantemente favorável às massas trabalhadoras, pois se trata de assinalar, acima e para além de tudo, reiteradamente, que tais sucessos são a própria retomada do fluxo histórico brasileiro, no que tem de essencial e ascendente, e que isto se dá pelo único modo através do qual, no caso concreto, era possível: — pela natureza e dinâmica própria das massas operárias e trabalhadoras, fundamento decisivo para a constituição de uma democracia real no país.

O panorama dos acontecimentos não diz outra coisa. Basta atentar para o montante crescente nas paragens, para a progressão de suas formas de objetivação e para a riqueza de seus conteúdos, assumidos, a cada vez, mais energicamente.

Principiaram em maio do ano passado e prosseguiram vigorosamente durante os meses de junho e julho, tornando a movimentar os meses finais de 78. De maio a agosto envolveram aproximadamente cerca de 300 mil operários, alcançando três centenas de empresas pertencentes aos principais setores econômicos dos mais importantes centros industriais de São Paulo.

Os aumentos reais obtidos, quebrando a rigidez da política salarial do regime, beneficiaram mais de um milhão de trabalhadores em todo o Estado.

O proletariado forjado pelo arrocho, de porte aproximadamente três vezes maior do que em 1965, viu-se movimentado especialmente pelos metalúrgicos, pelos químicos, gráficos, têxteis, pelos trabalhadores das indústrias de alimentos e outros numerosos setores. As massas trabalhadoras puseram-se em ação também através de um imenso contingente de funcionários e empregados, bem como intensamente por meio dos, assim chamados, setores médios, em vagas sucessivas e persistentes que bem, indicam a caráter de suas novas condições de trabalho, francamente enquadradas, desde há algum tempo, nos contornos de proletarização.

E para não ir adiante com esta dispensável ciranda de números e dados, visto que os acontecimentos estão em pleno fluxo, diante dos olhos de todos, basta mencionar, por fim, que, apenas nos primeiros 53 dias do atual governo, 107 greves estiveram em curso.

Comprovadamente, portanto, a movimentação paredista dos últimos doze meses derrubou os entraves legais que impediam a prática das greves. A famigerada 4.330 de 1° de junho de 1964 sepultada pelos acontecimentos, reduzida a cinza pela ação concreta das próprias greves. Estas, para se efetivarem, não esperaram pelo advento preliminar de um texto legal que as autorizasse, como supunham, até mesmo alguns bem-intencionados, que teria de ocorrer, esquecidos que é a força dos fatos que cria as leis, não o inverso. Ainda mais, foi justamente a eclosão das greves e sua reiterada prática afirmativa que condicionaram as esferas oficiais e cofitarem num novo enquadramento legal da questão, pois o que está, na letra, em vigor simplesmente não impede mais que as greves se façam e imponham. Foram precisamente as greves que conquistaram a possibilidade, agora tornada imperativa, de um novo texto legal que reconheça sua legitimidade, bem como a premência de reordenar toda a legislação sindical existente. E os futuros dispositivos jurídicos, no que possam trazer de bom e positivo, dependem exatamente da força, do prosseguimento e do desenvolvimento que a ação das massas trabalhadoras possa ir objetivamente ao seu movimento e impondo no cenário das lutas.

Ademais, as greves não resultaram apenas na liquidação prática da lei antigreve. Elas abriram fogo cerrado contra o arrocho, já arrancaram vitórias ponderáveis e estimulantes neste campo, perspectivaram a inviabilização da política salarial do sistema e puseram no horizonte a queda da política econômica vigente. Em outro termos, elas abriram o caminho para a construção da democracia no Brasil.

O último trimestre no ABC é o objetivo privilegiado para a compreensão de tudo isto, pois constitui o momento mais avançado de todo o processo, visto ter obrigado, em que pesem debilidades já referidas, que cada uma das partes mostrasse o que é, o que pode e o que tende a vir a ser.

Um governo, “novinho em folha”, compareceu para o embate, e a fração mais avançada do movimento de massas se apresentou em seu vigor estudante. Em menos de quinze dias, mesmo com os descompassos de sua imaturidade, o movimento grevista obrigou o quinto presidente a desvestir o uniforme da “renovação conciliadora”, com que vem se travestindo, e a envergar sua verdadeira natureza. Nos desdobramentos, ao longo de mais de dois meses formidáveis, os trabalhadores foram edificando, a cada impasse e golpe recebido, os passos criadores da elevação de qualidade de seu desempenho, enquanto minguavam o arsenal e a imaginação do poder. Quando o processo findou, crescera extraordinariamente, em quantidade e qualidade, o movimento operário, afirmado e tornado exemplificador na vitória construída e arrancada por ele próprio; e ele findou, afirmado e ascendentemente, pela lucidez de arrancar a vitória possível, na eloquência maior de reaver os sindicatos que lhe haviam tomado. O governo, ao contrário, chegou ao fim da jornada em esvaziamento e na defensiva, mirando o interior empobrecido de seu embornal de recursos, onde até mesmo os instrumentos de força e violência principiam a dar claros sinais de ineficiência.

Tal é, no quadro brasileiro, a verdade e a força que portam as massas operárias e trabalhadoras que estas, como um março no ABC, em plena fase de reemergência, mesmo partindo de condições limitadoras, são capazes de transfigurar as debilidades em energias e de pôr em xeque, em poucos dias, o próprio âmago e a razão de ser de toda a ditadura.

Quando os metalúrgicos do ABC, na primeira quinzena de março, não aceitaram o acordo geral da categoria e apresentaram seus próprios índices de reajuste, não exigiram simplesmente o atendimento a uma reivindicação mais aguda, mas proclamaram objetivamente, que o soubessem ou não, a necessidade de liquidar a política econômica vigente.

Foi em face disto que o sistema reagiu.

Desde logo, Figueiredo asseverou a incompatibilidade entre aumentos salariais acima das taxas oficiais e a luta contra a inflação. A certa altura da primeira fase das negociações, Simonsen travou a concessão do índice de 65%, sobre o qual chegara a haver convergência, ameaçando os empresários com o CIP. Delfim, com sua perene inclinação oracular sentenciou que reajustes de 60% provocariam uma inflação de no mínimo 55%.

De todo modo, transparece o indicador de que qualquer coisa em torno do índice de 60% é a fronteira do abismo para o quadro econômico atual; algo para além disto, a catástrofe: a inviabilização e dissolução da política do arrocho. Numa frase de efeito, dir-se-ia que a política econômica vigente explode para além dos 60%.

Seja ou não precisamente este o índice de volatização do “modelo”, é evidente que ele possui uma linha de fronteira para além da qual sucumbe. E é também notório que os índices que energicamente passaram a ser reivindicados foram sendo mais do que validamente ampliados, tendendo a apontar para os limites deste marco decisivo e discriminador.

No caso dos metalúrgicos do ABC, além disso, a situação potencializava-se pelo significado, força e sentido exemplificador que possui esta concentração de trabalhadores. Se a greve do ABC saísse vitoriosa, racionou-se em Brasília, a consequência direta mais provável seria o seu efeito contagiante sobre outros setores; e, se movimentos do tipo continuassem a se repetir, o país entraria num túnel, sem que se soubesse quando, como e onde estaria a saída. Maneira eufemística de dizer que o arrocho estava ameaçado e consequentemente a política econômica, em seu todo, posta em xeque, para além de significar que o sistema não admite e não concebe qualquer saída fora do regime do arrocho.

De modo que a intransigência patronal e governamental revelada foi a expressão externa de defesa do acossado mecanismo do arrocho a que estão atrelados visceralmente, face a reivindicações de índices crescentes e da provável ampliação dos setores que, de qualquer modo, já iam alargando o espectro das greves, pondo na ordem do dia toda a questão econômica e social.

A persistência e o fortalecimento do movimento de massas, checando o regime de exceção nos seus fundamentos, induziu à intervenção. E a análise desta, bem como da violência anteriormente desencadeada nas ruas, não pode se resumir, sob pena de se renunciar ao essencial, à denúncia da maior ou menor dose de repressão praticada, particu­larmente como contradição, segundo querem alguns, para um momento de promessas “liberalizantes”. Mas ou menos repressão, mais ou menos contraditoriedade com a distensão, o que é preciso atentar é que a intervenção indica exatamente o objeto pelo qual, no momento atual, o regime continua disposto a empregar a força.

O cerne da questão, como já se mostrou, reside na defesa da política econômica. E isto é tanto mais importante de apreender se se nota que, no embate da violência oficial contra a força democrática das massas trabalhadoras, o saldo positivamente não pertenceu à primeira. Face à coesão, expressão numérica, disciplina e força, atuais e potenciais, do movimento das massas trabalhadoras, a violência repressiva, em todas as suas formas, teve que reconhecer que sua eficácia diminuiu e que tende mesmo à ineficiência, pois há um momento, de fato, que de motivo de terror ela pode se ver convertida em fator de catalisação da solidariedade e arregimentação de multidões.

De maneira que não há propriedade em se falar de contradição entre as promessas de “aperfeiçoamento democrático” e a repressão concretamente exercida, pois são duas faces de um mesmo itinerário: correr muito para não sair do lugar — distensão lenta, gradual, e segura, ou seja lá qual for a ordem original destas três palavras. Itinerário que visa central e fundamentalmente manter o espírito e o esquema essencial da política econômica em curso, buscando um rearranjo de fatores setoriais que conduza a um novo ciclo de acumulação. O que implica, imprescindivelmente, na manutenção da política do arrocho.

Mesmo porque, com ou sem arranjos, a supressão do arrocho é o próprio colapso dos mecanismos econômicos em funcionamento.

Consequentemente, o sistema tem por propósito global esconder e disfarçar a falência de sua política econômica, sustentar e defender os dispositivos básicos desta, enquanto pelas “aberturas” busca socializar a perplexidade, o ônus e a responsabilidade pelos desastres econômicos presentes que aquela gerou. O governo “abre” como que a distribuir aflições que já não é capaz de digerir, como a pedir soluções que já não é capaz de encontrar, “abre” politicamente para dissimular seu vácuo de soluções econômicas, como quem se vinga de patrões rabugentos que não para de reclamar. Lentamente, é claro, para que nenhum parceiro, afinal, se machuque demais; gradualmente, é certo, para que não haja zangas ou atropelos demasiados e simultâneos, de modo que os sócios possam ir encontrando comodamente maneiras de se safar do melhor modo possível; seguramente, afinal de contas, para que tudo seja maximamente o mesmo, no minimamente diverso.

Como não entender assim, se para levar à frente seus propósitos só resta ao governo um duplo endurecimento: o do combate à inflação e o do combate às greves? implicando o primeiro, se for para valer, no combate a aliados fundamentais, como o são os setores financeiros e certas forças econômicas aceleradas pelo “milagre”, que hoje (e não há razão para espanto) se recusam a conter seus índices de atividades. Prisioneiro destes, prisioneiro do esgotamento do “milagre”, prisioneiro da extrema dificuldade de viabilizar, no quadro atual, uma nova equação de crescimento que não renegue à orfandade nenhum dos velhos parceiros, prisioneiro da dívida externa e da dívida interna, o poder joga com a concessão de “folgas” no plano institucional, “lenta e gradualmente”, “seguro” de que o tempo conspira a seu favor, pois já se passou a esgrimir com o advento de adversidades maiores que levariam gregos e troianos ao conformismo, enquanto o governo seria gloriosamente o próprio cavalo recheado de sadismo. Que outra coisa vem a ser a perspectiva do governo, expressa na opinião de uma alta fonte militar, que estima que “até o final do ano estas greves diminuirão ou mesmo deixarão de existir. A economia brasileira sofrerá um forte desaquecimento e a perspectiva de desemprego diminuirá os ânimos dos sindicatos”. E arremata com sabedoria rancorosa: “S.Paulo precisa descobrir o que é conviver com um desemprego de 6 a 7%”.

Desaquecimento e desemprego, eis as promessas finais do “milagre”. As esperanças maiores da quinta edição de seus condutores. O programa de “salvação nacional” de uma ínfima minoria de monopolistas. Admitirão as massas operárias e trabalhadoras — a maioria brasileira — um quadro dessa ordem, agora que estão de cabeça erguida, dando passadas vigorosas?

A resposta vem do bojo das jornadas de março.

Se o plano político-institucional se presta como campo natural de manobras e transigências, o mesmo não ocorre com a esfera econômica. Ah podem se verificar certas dilações, algumas recusas, determinadas acelerações ou uns poucos rodeios; mas abrir é mudar, manter é fechar. E o governo Figueiredo, neste terreno, tanto quanto a totalidade de seus antecessores, está hermeticamente fechado.

E por estar fechado interveio e cassou dirigentes sindicais em março, e mais recentemente em Brasília. E cassou para tentar o afastamento de um perigo fundamental, para pôr a distância um inimigo decisivo.

Se acima de certos índices de reajuste a política do arrocho não resiste e se esfacela, abaixo deles as massas trabalhadoras não conseguem ter assegurado um mínimo de subsistência condigna, isto é, não escapam à fome.

É, portanto, o impasse, o antagonismo global e de base, pois, ao vir à tona, o movimento operário traz consigo o questionamento de raiz da ditadura, — a impugnação de sua plataforma e de seus objetivos econômicos.

Assim, o movimento democrático das massas trabalhadoras traz consigo uma dimensão decisiva, historicamente nova: atua diretamente sobre a organização material de toda a estrutura social. Sua reemergência não é apenas, consequentemente, uma pura ampliação numérica das hostes alinhadas na oposição, mas eleva e muda acentuadamente a qualidade desta, na luta contra o estado de exceção e pela construção da democracia. Queria ou não queria, saiba ou não saiba, o movimento de massas dos trabalhadores põe em xeque toda a razão de ser da ditadura, abala a possibilidade de existência desta e aponta imperativamente para a necessidade de um programa econômico alternativo.

Foi o que se pôs e viu nas praças públicas e esportivas de S. Bernardo do Campo, terra dos peões que ainda não sabem, mas que já estão a cravar no solo as raízes da democracia. Diante deles, a intervenção executada consubstancia a força de resistência do historicamente velho, mas há que perceber que já se tratou de uma repressão na defensiva.

No confronto das jornadas de março, como é próprio do real em seus andamentos, grandezas e debilidades apareceram entrelaçadamente, sob vários aspectos. No sentido global e decisivo, o caráter ascendente das forças das massas trabalhadoras e o sentido descendente das energias ainda ponderáveis da ditadura. A fragilidade do poderio atualmente circunscrito da força nascente das massas, em contraste com a energia aparatosa e coagulada da vitalidade em declínio da esfera do poder.

E o que é especialmente interessante e positivo: foi a própria fraqueza circunstancial que permitiu que aflorasse a imensa pujança do movimento das massas trabalhadoras.

Quando eclodiu a greve dos metalúrgicos do ABC, já o dissemos, as condições eram limitadoras, pois o acordo, que já fora estabelecido, com uma trintena de sindicatos de outras bases territoriais, desde logo, reduzia a expansão possível. Ainda mais e fundamentalmente, como também já foi indicado, tal como se pôs, o movimento grevista se viu, de imediato, remetido a um nível de luta que ultrapassava o plano das contendas delimitadas. O natural despreparo e inexperiência, a subestimação do adversário, a debilidade na apreciação da realidade, a fraqueza, em síntese, de uma força nascente impediu a percepção de que a greve, depressa demais — e sem força para isso — se punha na situação de um movimento diretamente desafiador da política econômica vigente. O movimento parece não ter dado maior importância ao fato de que estava circunscrito, não notou que já pelejava em nível de seu objetivo estratégico, prosseguindo a manejar como se estivesse atuando simplesmente num plano bem mais estreito. Laborou, pois, naquela fase, na incompreensão política de seu próprio momento, confundindo inadvertidamente o que há de ser seu ponto de chegada com a travessia concreta que estava vivendo, julgando que não se afastara desta.

Mas, na medida que configurava, independentemente de intenções, o questionamento referido, ou pelo menos assim podia ser interpretado, sofreu a perda dos sindicatos e a decapitação de seus dirigentes. ônus, evidentemente, demasiado elevado num processo que, na fase que atravessa, tem na acumulação de forças um de seus aspectos essências.

Em contraposição, foi precisamente dessa fraqueza e desse debilitamento sofrido que sobreveio o momento de viragem. Viragem que só foi possível porque, grife-se com a máxima ênfase, a debilidade apontada vinha no bojo da fortaleza imanente e essencial que vem caracterizando, acima de tudo, o movimento das massas operárias e trabalhadoras.

Ao sofrer o golpe profundo da intervenção, em contraste radical à expectativa do poder, que esperava num refluxo imediato o colapso do movimento, deu-se uma inversão de expectativas, totalmente inesperada, mas que tem uma clara explicação.

Quando Lula, na condição de presidente cassado, reassumiu a liderança do movimento, ele o fez em praça pública, e pôde fazê-lo só porque na rua estava a vitalidade de um incontestável movimento de massas. Da existência deste nascera a possibilidade da retomada da liderança da greve, bem como da condenação da intervenção ao insucesso.

Não fica com esta afirmação ocultado que, durante um ou dois dias, tudo parecera destinado ao fracasso, que a multidão se contorcera desorientada e que se chegara a temer um verdadeiro desastre. Não, de nenhum modo se oculta tais coisas, pois não se está a dizer que a massa dos trabalhadores liderou o processo, mas que foi ela, com sua força imanente, que criou as condições de ser liderada.

Assim, nesta malha de reversões e cambiante direcionamento das forças, se a greve dos metalúrgicos, quando se lançou em meados de março, não o fez na posse de uma perfeita avaliação da situação, o poder, quando interveio e decapitou, não compreendeu verdadeiramente que estava de um movimento de massas, que a greve instaurara o exuberante fenômeno das assembleias sindicais multitudinárias, e que, portanto, encontrava-se diante de acontecimentos de nova qualidade, em face dos quais seus instrumentais jurídico-repressivo era, em certa medida, impotente.

Aquela já não era uma situação em que bastava cassar um dirigente para chegar à aniquilação de uma entidade ou à castração de um movimento. Toda uma multidão, agora, teria que ser agrilhoada.

Reassumindo, Lula, enriquecido pelo aprendizado de um intenso processo, soube redimensionar o movimento; seja pela trégua de 45 dias, que permitiu conservar a organização e o teor de luta, e estas a continuidade das negociações; seja pelo desenvolvimento da mobilização e da ampliação, sob novas formas, do movimento e da solidariedade, esforço que culminou no extraordinário 1° de Maio unitário de 200 mil trabalhadores.

E tudo, assim, permitiu findar, neste momento, pelas conquistas concretas do acordo de maio. Estas, sem dúvida, custaram transigências, meneios, jogos de cintura, etc. Com certeza, mas é inadmissível desconsiderar que tudo isso pôde ocorrer precisamente porque dezenas de milhares o tornaram possível através de assembleias gigantescas e da demonstração de que sabem, com grande disposição, parar as máquinas com ampla maestria.

Conquistas concretas de maio porque vitória efetiva, no plano das lutas de caráter imediato, que se materializa a cada por cento arrancado ao arrocho. Vitória porque, depois de violentamente golpeado pela intervenção, o movimento conseguiu se recolocar e prosseguir, dimensionar apropriadamente a extensão da batalha e finalizar pela conquista de pontos significativos, onde avulta naturalmente a reconquista dos sindicatos e a reintegração das diretorias cassadas. Aspectos de máxima relevância, estes últimos, sem precedentes na história das lutas sindicais brasileiras, e que constituem produto direto do emergente movimento democrático das massas trabalhadoras. Vitória, pois, pela elevação e fortalecimento da luta dos trabalhadores que, inegavelmente, testemunham a lição aprendida de que, em toda essa guerra, a única coisa que tem a perder é o arrocho. Razão porque a presença e a ação do movimento operário e de todos os trabalhadores são, hoje, ainda mais decisivas do que já o foram em épocas passadas.

Do Movimento de Massas à Conquista da Democracia

Certos setores esvaziam o significado essencial do caudal grevista em curso ao banalizarem sua ocorrência sob a observação de que as greves são acontecimentos corriqueiros numa democracia.

Ora, no Brasil, excetuadas iniciativas esparsas, que nem por isso foram, aqui, omitidas ou desprezadas, que se arrolam como pertencentes à fase de resistência democrática, não houve, durante quase década e meia, nenhum caudal grevista, e quanto à óbvia inexistência de vida democrática não é preciso, nesta passagem, insistir.

E se já houve, em outros tempos, greves maiores que as do ABC, e mais abrangentes, nunca dantes um processo grevista significou tanto e tão profundamente a materialização do advento do historicamente novo.

Deixam, os que banalizam as greves como fenômenos corriqueiros, de captar precisamente o que mais importa: a direção para a qual aponta e concretamente se dirige o movimento das massas trabalhadoras, — o derrube do arrocho, a construção da democracia, entendida como configuração substantiva, verdadeiro alvo estratégico das maiorias brasileiras. Pois o objetivo das massas trabalhadoras não está simplesmente forçar que o regime ultrapasse nesta ou naquela oportunidade, os índices dos reajustes salariais do arrocho. O que lhes interessa é que todo o “modelo” caia; vale dizer que a presença e a luta dos trabalhadores demanda à recomposição completa da equação do sistema produtivo brasileiro.

Longe, portanto, de serem uma manifestação corriqueira, as greves, — a ação das massas trabalhadoras brasileiras -, ao longo do último ano, são o pôr-se em movimento da categoria social básica, do sujeito coletivo essencial da dinâmica histórica brasileira em direção à construção da democracia.

Na progressão dos doze últimos meses tivemos a evidencia cabal disto. Dos braços cruzados às assembleias multitudinárias, a retomada do fluxo histórico ascendente instaurou o movimento democrático de massas, que explicitando, como não poderia deixar de ser, os interesses imediatos dos trabalhadores sacode pela base a razão de ser do sistema. Isto é, no quadro atual, desde sua reemersão e, progressivamente, em sua rápida evolução, o movimento dos trabalhadores, em qualquer de seus gestos e atos transcende e ultrapassa as fronteiras de seus interesses corporativos. A luta por melhores salários, a guerra contra o arrocho, o empenho por uma nova ordenação jurídica dos sindicatos é, de imediato, a luta contra a política econômica da ditadura, portanto, contra a existência desta. O que faz compreender que os vastos contingentes de trabalhadores constituem o veio fundamental do andamento nacional, a fonte decisiva de toda mudança necessária e possível.

Configurada, pois, está a contraposição. De um lado, como núcleo estruturante, o movimento das massas trabalhadoras perspectivam a supressão do arrocho, doutro, resistindo, pois constitui a pedra angular de seus interesses, permanece a ditadura, corroída pela autofagia do “milagre”, na defesa intransigente de seu sistema de superexploração do trabalho.

Choque, pois, que tem por centro a definição do fundamento de base da vida econômica nacional.

Cada passo, hoje, está na dependência do que; em face disto, possa ser perspectivado. E é fundamental que se compreenda e leve na devida consideração as energias que restam a uns, e as potencialidades que estão contidas em outros.

Na defesa de uma ordem econômica subordinada à dinâmica imperialista, articulada com grupos locais, o sistema no poder, como está se explicitando, manobra com o advento de negatividades crescentes. Sua angulação passou a ser a de seu próprio conformismo para com as adversidades econômicas, numa espécie de “perspectiva da catástrofe”, tanto para seus parceiros mais rebeldes, como para as multidões de trabalhadores e assalariados.

Enfim, trata-se do “desaquecimento”, do desemprego, numa palavra mínima, da estagnação “disciplinadora”, que sob toda e qualquer forma só oferece uma certeza, — a da sustentação e aprofundamento do arrocho. Tudo isso em compasso de contemporização, à espera de um novo dia de sol. Os grupos monopolístas, bem nutridos, tem reservas, sem dúvida para esta travessia das sombras.

E as massas operárias e trabalhadoras? Estas, ao contrário, acabam de reemergir pela e para a explicitação de sua fome. Sua dinâmica e perspectiva é precisamente a inversa da do sistema, demandando a elevação urgente de suas miseráveis condições de vida. Tornaram patente, à luz de todos os seus atos, nas ações que hoje culminam, que inimigas de sempre do arrocho, não estão mais dispostas a suportá-lo.

Diante da manifestação desse justo e eloquente inconformismo, diante desta válida resolução transformada em ação concreta, está posta a questão, e não por qualquer doutrinarismo, da formulação de um programa econômico alternativo. O movimento democrático das massas trabalhadoras pôs, na ordem do dia, esta antiga necessidade que, até agora, o movimento oposicionista não foi capaz de assumir e equacionar.

De modo que, se alguma polêmica ainda era possível, em passado recente, quanto à prioridade tática entre a dita questão nacional e a democrática, hoje, com a emergência do movimento das massas trabalhadoras, a permanência de qualquer dúvida, quanto à indissolubilidade das mesmas e à inigualável capacidade de sensibilização e mobilização que possui a primeira sob a forma das reivindicações imediatas, qualquer hesitação passa à condição de despropósito, pois, no mínimo, se converte em entrave para o desenvolvimento das próprias lutas. Ou haverá alguém disposto a pedir ao movimento operário e de todos os trabalhadores que espere pelas reinstitucionalizações para, então e só na sequência, prosseguir nas suas lutas? Seria contraditoriamente afluir para muito próximo do que pretende o regime de exceção com sua lenta, gradual e segura caminhada em torno do mesmo lugar. Seria exatamente bloquear o caminho fundamental para a conquista da democracia. Caminho que vem se avolumando a olhos vistos, estando a ser reforçado pelos sucessos indiscutíveis que vem alcançando e que são de uma concretude incomum, desconhecida até à emersão do movimento das massas trabalhadoras.

A formulação de um programa econômico alternativo e sua condução à vitória através da conjugação da mais ampla frente possível das categorias sociais brasileiras, é o que tem por latência o âmago do movimento das massas trabalhadoras, na sua rota imanente em direção à democracia.

Trata-se, pois, de compreender que os caudais grevistas em curso trazem em seu bojo o direcionamento histórico da conquista e da construção democráticas, das quais o programa econômico alternativo é a vertebração.

Isto é compreender que, no Brasil, a democracia é o vir a ser, o historicamente novo, tendo, pois, de ser conquistada e construída, e não simplesmente reconquistada, dando que, num sentido legítimo e concreto, nunca a tivemos em nosso país. Basta pensar, sem com isso de nenhum modo desprezá-lo, que durante o único período, em toda nossa história, em que mais próximos estivemos de uma existência democrática — 1945 a 1964 — , esta teve uma vigência eivada de limites palpáveis, e que mesmo em toda sua acanhada realidade política, econômica e social foi, várias vezes, durante combatida e atacada, não conseguindo, por fim, prevalecer.

Anos, estes, nem mesmo uma vintena, que viram o suicídio de um presidente, a renúncia de um outro e a derrubada pela força de um terceiro; e tudo isto já sem contar com um pequeno enxame de golpes e contragolpes, e com o fato de que exclusivamente um único presidente da República conseguiu exercer, até o fim, o mandato que recebera em eleições diretas.

Tudo isso decorre, é claro, de nosso processo de formação, da maneira pela qual, nas fronteiras do nosso espaço nacional, as classes sociais ganharam existência, urdiram e foram urdidas por uma infinidade de vetores e situações, de ordem interna e externa.

E posto que a democracia é o novo que forceja por advir, é preciso determinar a que possibilidade objetiva atende e qual o seu suporte social.

Em suma, compete aqui reconhecer, na esteira de tudo que já foi exposto, que só da perspectiva do trabalho se põe, em nossos dias, o historicamente novo, no Brasil. Que é apenas da perspectiva das massas trabalhadoras que é possível ser posta uma propositura que se assuma com abrangência para a universalidade da sociedade brasileira, deixando de fora tão somente aquelas minorias que consubstanciam precisamente o velho, que limita e nega o advento da democracia. Não que o historicamente velho esteja completa e definitivamente exaurido, mas deste só se pode esperar, e ele não pode nada mais oferecer, do que a sua própria repetição, a reprodução ampliada de seu próprio inchaço; ou em termos rigorosos, a modernização “prussiana”. E esta é precisamente a negação da democracia.

Sim, é de grande importância acentuar o caráter “prussiano” do evolver histórico no Brasil, isto é, o itinerário que o marca pelas transformações econômico-sociais realizadas pelo alto, e que põem as massas, tanto quanto partícipes como beneficiárias, à margem dos processos de mudança.

Mas isto não basta, pois, é decisivo que se grife que não se trata de um “prussianismo” indeterminado. Em verdade, a evolução do capitalismo no Brasil se dá no quadro do que, em outras partes, caracterizamos como “prussianismo” — colonial e com mais propriedade ainda — via colonial do capitalismo (Veja-se, por exemplo, a Parte II de A “Politicização” da Totalidade: Oposição e Discurso Econômico, in TEMAS de Ciências Humanas, Nº 2, de setembro de 1977, p.145).

A particularidade da via colonial, e aqui não cabe apontar mais do que isso, engendra uma burguesia que não é capaz de perspectivar, efetivamente, sua autonomia econômica, ou o faz de um modo demasiado débil, conformando-se, assim, em permanecer nas condições de independências neocolonial ou de subordinação estrutural ao imperialismo. Em outros termos, as burguesias que se objetivaram pela via colonial não realizaram sequer suas tarefas econômicas, ao contrário da verdadeira burguesia prussiana, que deixa apenas, como indica Engels, de realizar suas tarefas políticas. De modo que, se para a perspectiva de ambas, de fato, é completamente estranha a efetivação de um regime político democrático-liberal, por outro lado a burguesia prussiana realiza um caminho econômico autônomo, centrado e dinamizado pelos seus próprios interesses, enquanto a burguesia produzida pela via colonial tende a não romper sua subordinação, permanecendo atrelada aos polos hegemônicos das economias centrais. Em síntese, a burguesia prussiana é antidemocrática, porém autônoma, enquanto a burguesia colonial, além de antidemocrática é caudatária, sendo incapaz, por iniciativa e força próprias, de romper com sua subordinação ao imperialismo.

De modo que a democracia é uma questão altamente intrincada, tanto nos países de via prussiana, como de vida colonial. Como, nestes casos, configura-se a possibilidade objetiva de seu advento? Qual o sujeito coletivo que lhe serve de suporte e de cuja perspectiva pode, então, ser edificada? Em poucas e diretas palavras: quem está, ou pode estar, nestes países, interessado na democracia? Quem é seu inimigo?

Consequentemente, dada a evidente universalidade de certos valores formais da democracia, a questão que verdadeiramente importa não é, portanto, a de sua validade, mas de sua gênese possível em cada caso concreto.

Se se pensa, de fato, na democracia como um objetivo estratégico, de parco ou nenhum valor, teórico ou prático, é a desnecessária insistência em sua universalidade abstrata, se não se descobre e indica a sua gênese concreta possível. Mesmo porque, sem a rigorosa determinação da gênese possível em cada caso, corre-se o risco de reduzir a luta pela democracia, pelo recurso sempre arbitrário da dilatação das “autonomias relativas”, a um pobre ato de vontade, e a resvalar do pretendido caráter estratégico para uma estiolada taticidade politicista.

Enfim, é preciso angular a análise pela fonte real da democracia no Brasil, e não por aquilo que deverão ser, muito mais adiante, a perder completamente de vista, as relações entre a democracia (futura) e a forma social superadora (ainda mais futura) do modo de produção vigente. Mesmo porque, se Lenin tinha razão em afirmar que não existia “democracia pura”, em cada lugar e momento determinados a democracia como valor concreto, real ou latente, jamais é um simples contorno de uma universalidade abstrata.

Portanto, quando se fala no advento, mesmo que somente dos valores formais da democracia, é de todo insuficiente proclamar apenas sua validade universal, pois é querer resolver um grave problema concreto pela simples alusão à verdade de uma noção geral, sendo necessário determinar de que forma particular, em cada caso, sua objetivação pode efetivamente se realizar, dado que mesmo o político-formal demanda, para nascer, a ação determinante de agentes, fatores e situações reais. O que cabe, portanto, assinalar, diante do valor universal da democracia, é que os referidos agentes, fatores e situações reais podem ser diversos daqueles que pela primeira vez, na história, lhe deram origem. E tudo leva a indicar que, nos países que foram historicamente levados a atravessar a via colonial do capitalismo, até mesmo os mais formais dos valores da democracia política são devidos fundamentalmente, quando em forma minimamente real e estável, à perspectiva e à ação do trabalho.

Dito de modo inverso, e sobre os ombros de toda nossa reflexão: são absolutamente incompatíveis o regime do arrocho salarial e a democracia, mesmo tomada esta em seus limites os mais puramente formais. Razão porque, na luta pela democracia, é imperativo a formulação e a condução à vitória de um programa econômico alternativo que liquide o arrocho e oriente no sentido da destruição, pela raiz, das condições de seu ressurgimento, o que significa a demolição progressiva das bases do “prussianismo”-colonial, que caracteriza estruturalmente a sociedade brasileira, e que se consubstanciam principalmente na subordinação ao imperialismo, na conservação de uma estrutura fundiária latifundiada, prioritariamente voltada à exportação ou à especulação da terra, e na “modernização” monopolista. Um programa econômico, portanto, da perspectiva das maiorias que isole, pois, os antagonistas minoritários da democracia.

E, na medida exata, em que isto é trazido imperativamente à ordem do dia pelo ressurgimento de massas das lutas operárias e de todos os trabalhadores, torna-se evidente que qualquer tolhimento ou procrastinação do movimento das massas trabalhadoras é desarmar o processo de conquista da democracia. E uma dessas dilações, ainda que por perplexidade, é a inexistência de um programa econômico alternativo, de tal modo que, numa fórmula sintética, há que compreender que — quem não luta contra o arrocho não quer a democracia, e quem quer a democracia luta por um programa econômico alternativo.

Um programa econômico evidentemente que tem por princípio a liquidação da superexploração do trabalho. Consequentemente uma plataforma da perspectiva das massas trabalhadoras, que, ao nortear, um reordenamento da organização da produção, o faca no sentido de que sejam atendidas prioritariamente as demandas das maiorias, sendo assim capaz de atrair para si o apoio dos setores econômicos engajados ou engajáveis no departamento de produção de bens operários, o que compreende a pequena e média burguesia nacional. Mesmo porque, obviamente, o movimento das massas trabalhadoras não está, atualmente, direcionado no sentido de pôr em causa o capitalismo no Brasil, mas propugnando uma reorientação nos rumos das atividades produtivas. é no que importa o derrube do arrocho, e não em um impossível aditamento distributivista mais “generoso” à atual política econômica, geradora intrínseca da super-exploração do trabalho.

Demanda-se, pois um programa econômico alternativo no sentido de um pacto social das maiorias, que tem por eixo fundamental os trabalhadores da cidade e do campo, em torno do qual se alinham outras categorias sociais que tem interesse na conquista e na construção da democracia. Uma plataforma alternativa que desenhe as vias de afluência e conquista da solidariedade dos mais amplos setores da população, e assim permita e conduza a lutas de massas maiores e mais abrangentes, sob as mais diversas formas, desde os pronunciamentos de entidades as mais distintas, até as manifestações coletivas de grandes massas, de que o 1° de Maio no ABC é um excelente exemplo. Um programa econômico alternativo que faca nascer um estreito compromisso da federação oposicionista com a luta das massas contra o arrocho.

Numa palavra, uma plataforma de vertebração geral da luta pela democracia, que, pela sua força de representação universalizadora da sociedade brasileira, articula e potencializa as exigências universalizantes da anistia, da convocação de uma Assembleia Constituinte e das demais prerrogativas democráticas que tem, assim, explicitadas suas raízes no chão social, quando deitadas sobre a ossatura da raiz que as nutre e impulsiona.

Tem sido dito, diante das alterações introduzidas ao nível do clima institucional, e especialmente das iniciativas, no mesmo campo, do governo Figueiredo, numa supervalorização destas, que “tudo está acontecendo no país à revelia da oposição. Sem sua participação e sem a sua crítica”. Exagero, sem dúvida, quanto ao “tudo que está acontecendo”, não deixa todavia de ser sintomático quanto ao mais, pois não é outro o significado da confusão feita por um deputado federal da oposição que, revelando a atual perplexidade do MDB, declarou que o partido se encontra “agora com os espaços alargados que não sabe aproveitar”. Demonstração cabal disto é ter a bancada federal emedebista hipotecado solidariedade aos metalúrgicos do ABC somente 23 dias depois de iniciada a greve. Prova, entre outras, da incapacidade e do despreparo da agremiação oposicionista, quase um ano depois de reiniciadas as lutas sindicais, para se oferecer como canal de apoio eficiente aos trabalhadores em greve. Excetuadas iniciativas pessoais de alguns poucos parlamentares, foi o quadro triste que restou, em meio à exuberante pugna dos trabalhadores.

Ao contrário do que se supõe, isto não é uma debilidade da agremiação, mas consequência natural da sua “virtude” politicista, isto é, do fato do MDB nunca ter conseguido enfrentar programaticamente a questão econômica, seja em termos de crítica partidária coletiva à política econômica da ditadura, seja em termos do encaminhamento de uma plataforma econômica alternativa, exceção feita a uma tentativa única, realizada há cerca de dois anos e que lamentavelmente não frutificou.

Contudo, este pode ser, talvez, o momento de sua redenção, e isto por um duplo condicionamento. Pelo fato de que um programa econômico alternativo ter se tornando imperativo face ao movimento dos tralhadores e do estrangulamento do projeto situacionista, e em razão, também ao inverso do que superficialmente possa parecer, de que sem uma plataforma global e bem articulada não terá como eficientemente combater pela preservação de sua unidade, exposto que está às ameaças da “pilhagem” sistemática, ainda que epidérmica, de suas bandeiras, e de implosões arquitetadas pelo poder e alimentadas por certas de suas próprias correntes.

Terá o MDB, em outros termos, que estreitar e aprofundar sua identidade com as massas, isto é, terá que reconhecer, em que pesem as distinções de forças que mantém federadas, que é representante destas maiorias trabalhadoras e que lhe cabe ir em direção ao movimento de massas destas, o que implica em contribuir na formulação, e em tornar-se porta-voz, de um projeto alternativo global de governo, onde a peca — dramaticamente ausente, até hoje, é a de um programa econômico efetivamente articulado e constantemente explicitado. Terá o MDB energias para tanto?

Hoje o quadro oposicionista brasileiro vive um desencontro ou um paralelismo entre a oposição política parlamentar e o movimento das massas trabalhadoras.

Por sua própria natureza e força a ação dos trabalhadores induzirá à superação desta situação, de modo que a oposição política parlamentar tem bons motivos para se desvencilhar de seus entraves politicistas e ir ao encontro do conteúdo e da dinâmica das massas, na mesma proporção que estas buscarão fazer com que a oposição política parlamentar se torne a sua oposição, pressionando-a para que assuma um programa econômico da sua perspectiva e conteúdo.

Ora, e na medida em que ao mover do eixo giram as rodas, a oposição emedebista, ou seja, qual for a legenda (ou legendas) sob a qual venha a se abrigar, a oposição, enquanto tal, será posta a serviço de um programa das massas, e não estas a serviço de um programa da oposição, mesmo porque a oposição democrática só tem futuro da perspectiva dos trabalhadores.

Compreendido que o ritmo e o grau da progressão democrática serão determinados pela luta dos trabalhadores, é natural, portanto, que esta induza e propugne por um programa econômico alternativo, e que leve à articulação em torno dele das demais categorias sociais que constituem as maiorias, vindo a arrastar, como polo dinâmico, se preciso for, a oposição político-parlamentar para a mesma direção, se esta, de modo próprio, não for capaz de se movimentar neste sentido.

Assim, o roteiro político do movimento sindical não é o de se isolar eventualmente numa legenda própria, mas é o de encontrar o sentido político de sua própria ação, condicionando e compelindo a própria oposição parlamentar, obrigando-a a prestar a solidariedade que lhe é devida e levando-a a assumir uma plataforma democrática global e concreta onde um programa econômico alternativo é a vertebração imprescindível para a floração, como a copa do tronco, do elenco indispensável de todas as franquias democráticas.

Opera-se, assim, uma verdadeira fusão e interpretação de dimensões e significados, mutuamente potencializadores, porque elementos específicos, mas não autônomos, convenientemente dispostos, de uma só e indissolúvel necessidade, a de edificar uma concreta democracia de massas. Pois, não é a exigência de comer um claro direito democrático? Ou, não é a anistia a liquidação do arrocho da liberdade? E não há que anistiar da fome? E gritar peca existência material não é luta pela liberdade de expressão? Tudo isto constituinte da produção de uma nova forma de politicamente existir, na política de um novo ordenamento constituinte da produção.

Tudo isso principiou, mas apenas principiou. é preciso ampliar e acumular forças. Mediações há, insuprimíveis, a desdobrar. Não é empreendimento suave, nem de curto prazo.

Trata-se de implantar o novo, e o historicamente velho, grife-se, apesar de abalado, não está, nem muito menos, definitivamente impossibilitado de se recompor e de tornar multiplicar seu inchaço, só o adequado e maduro prosseguimento, ampliação e fortalecimento das ações das massas trabalhadoras pode conjurar esse perigo. E o momento é propício neste sentido, pois o regime de exceção se encontra em desequilíbrio e cabe às forças do trabalho não lhe darem tréguas, acossando-o de tal modo que se torne impossível qualquer outro ciclo de acumulação baseado no arrocho. É preciso ficar definitivamente estabelecido que as maiorias se recusam a que isto aconteça, e a democracia só advirá na medida em que as massas trabalhadoras consigam impor uma tal situação.

A velocidade com que se implantará o novo dependerá de inumeráveis fatores, onde avulta a compreensão de que a democracia, no Brasil, será fundamentalmente conquistada pela base de massas, mobilizadas e organizadas pelos seus interesses imediatos, que, no quadro atual, diretamente, abrem, se lançam e ferem, reafirmando fulcro histórico-básico, o cerne político essencial da equação econômica pela qual, há quinze anos, foi erigido um sistema, em tudo e por tudo hostil aos trabalhadores, à democracia e aos interesses nacionais, responsável, agora já de público, por não poucas atrocidades, dentre as quais, e com certeza não a menor, está a fome das maiorias — e isto não é um recurso de linguagem.


Inclusão 01/05/2018