Prefácio à Na Contracorrente da História.
Documentos da Liga Comunista Internacionalista 1930 – 1933

Pierre Broué

9 de agosto de 1986


Primeira Edição: Na Contracorrente da História. Documentos da Liga Comunista Internacionalista 1930 – 1933. Fúlvio Abramo e Dainis Karepovs (orgs.)

Tradução: Joaquim Pereira Neto.

Fonte: http://www.ler-qi.org/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


A Oposição de Esquerda Internacional

capa

Os documentos reunidos neste volume por Fulvio Abramo e Dainis Karepovs lançarão uma luz completamente nova sobre a história da Oposição de Esquerda Internacional e sobre a pré-história da IV Internacional no Brasil, ambas inspiradas pelo pensamento de Leon Trotsky e orientadas de acordo com as suas concepções. Essa publicação no Brasil insere-se, pois, no contesto da publicação, em vários países, de documentos que têm por objeto sua história internacional, consecutiva à abertura dos manuscritos de Trotsky na Universidade de Harvard e à descoberta dos manuscritos de seu filho Leon Sedov nos arquivos da Institution Hoover de Stanford e no Instituto Internacional de História Social de Amsterdã.

Esses documentos vão de 1929 a 1933 e cobrem a primeira parte do último exílio de Leon Trotsky, que, expulso da União Soviética por decisão do Bureau Político, por proposição de Stalin, encontrou na Turquia um asilo tão precário quanto distanciado dos centros de decisão daquele mundo na sua grande crise econômica e social. Banido da União Soviética, Trotsky tentou desde então organizar no terreno internacional, fora da União Soviética, o combate político iniciado em sua terra em 1923, seis anos antes, contra Stalin e os outros epígonos de Lênin.

Na polêmica dita do Novo Curso, num primeiro momento, Trotsky e uma falange de velhos bolcheviques levantaram o problema da degenerescência do partido bolchevique no poder, da extinção de sua democracia interna, enfim, do nascimento de uma burocracia agarrada a seus privilégios e disposta a abafar toda crítica e todo ataque à sua onipotência à frente do Partido e do Estado. Em 1926, Trotsky e a "Oposição de 1923" aliaram-se à Oposição de Leningrado, às vezes chamada "Nova Oposição", e constituíram com Zinoviev e Kamenev a Oposição Unificada, afastada da discussão e do debate democrático pela recusa de publicar seus documentos, pela acusação de fracionismo, pela provocação e pela exclusão dos militantes. Em 1927, todos são excluídos por um congresso, diante do qual apenas puderam tentar tomar a palavra sob protestos e ameaças. Em 1928, os que não capitularam com Zinoviev e Kamenev são presos e deportados para a Sibéria e para a Ásia Central. Conseguem, então, organizar-se fracionalmente, mantendo por carta uma discussão sobre os princípios e as perspectivas. É a essa atividade que Stalin pretende pôr fim, interrompendo a correspondência entre os deportados e expulsando Trotsky do território soviético.

A aventura, que então começa, de sucessivas residências ocupadas por Trotsky em Istambul e nos arredores, é uma empresa particularmente difícil. Ele fora até ali o teórico e o chefe de uma fração do Partido Comunista Russo Bolchevique - uma fração excluída do Partido, mas que se considera como membro legítimo dele e que luta para nele ser reintegrado. Vê-se, doravante, afastado dessa fração cujos militantes, aliás, são forçados a uma clandestinidade precária, quando não reduzidos à impotência por uma repressão feroz. Já não é mais da União Soviética que pode vir o impulso que permitiria regenerar o Partido e a Internacional Comunista profundamente degenerados, mas do exterior, de um avanço da revolução fora da União Soviética, que poderia ressuscitar o movimento revolucionário temporariamente adormecido nas fronteiras do primeiro Estado operário.

A Trotsky, em seu exílio, é que cabe construir a fração internacional que continuará o combate iniciado pelos "bolcheviques-leninistas" russos. Ê ele quem deverá retomar, tanto na Europa como na América, os contatos que tinham sido estabelecidos, durante os anos anteriores, entre os comunistas de todos os países, pelos jovens membros da Oposição de Esquerda russa em missão no estrangeiro, principalmente E. B. Solntsev e N. N. Perevertsev. É ele quem deverá delimitar as fronteiras da fração, estabelecer suas bases políticas, começar sua organização nacional e internacional em torno de órgãos de imprensa vendidos independentemente e permitindo reunir os oposicionistas numa linha expressa publicamente.

Trotsky propõe a todos os membros ou aos excluídos do PC que se voltam para ele - pois seu prestígio é enorme, e até mesmo aventureiros ou oportunistas pensam em utilizá-lo em seu proveito - que assumam posição a respeito das questões que lhe parecem poder servir de critério para a definição de uma verdadeira oposição de esquerda na Internacional Comunista, claramente distinta das duas outras correntes- dessa organização, a direita brandleriana e o centro stalinista. Essas três questões constituem a política que ele julga profundamente oportunista seguida pela IC com o famoso comitê sindical anglo-russo, a revolução chinesa, levada ao desastre pela submissão do PC ao Kuomintang, e, enfim, a política econômica na URSS, ligada à teoria da possibilidade de "construir o socialismo num só país". Logo ele deverá se bater contra aqueles elementos comunistas que, a propósito do conflito sino-russo, afirmam que a União Soviética de Stalin teve uma atitude "imperialista", já que se recusa devolver ao carrasco Chang-Kai-Chek a ferrovia do leste chinês que herdou do czarismo.

Na realidade, o verdadeiro problema é, aqui, o da natureza do Estado soviético e, conseqüentemente, da possibilidade de se conduzir com sucesso, ou com perspectiva de sucesso, uma política de reorientação desses partidos e da Internacional Comunista. Muitos dos que quiseram se unir a Trotsky - ou utilizá-lo - estão persuadidos de que a União Soviética não é mais um "Estado operário" e que nada mais tem de "socialista", que ela é simplesmente uma nova forma social de exploração: para esses, é necessário constituir um novo partido, distinto e concorrente do Partido Comunista, e,' com o tempo, uma nova Internacional, que poderia ser a IV. É dessa forma que Trotsky é levado a se separar de Maurice Paz, na França, de Hugo Urbahns, na Alemanha, de Henk Sneevliet, na Holanda, que são favoráveis a um "novo partido" e absolutamente não acreditam na possibilidade de uma luta para "reorientar" os partidos comunistas e a Internacional.

Ele obtém, no entanto, um certo número de sucessos importantes. Primeiramente na França, onde, a partir do mês de agosto, conseguiu reunir em torno do novo hebdomadário La Vérité elementos de vários grupos comunistas de oposição de origem diversa, bem como seu velho amigo pessoal Alfred Rosmer, antigo membro do Executivo da IC e uma das primeiras vítimas, em 1924, da pretensa "bolchevização". Na Alemanha, como mencionamos, ele não consegue conservar consigo o Leninbund de Hugo Urbahns, que na sua maioria se distancia, mas conquista uma minoria com o velho militante dos metalúrgicos berlinenses Anton Grylewicz e ganha a velha "Oposição de Wedding", no subúrbio operário de Berlim. A Oposição belga surge em torno de War van Overstraeten, antigo secretário-geral do partido, e do dirigente dos mineiros revolucionários da bacia de Charleroi, Léon Lesoil, também antigo dirigente. A Oposição de Esquerda espanhola também surge na Bélgica, à volta de F. Garda Lavid (Lacroix) e transporta-se rapidamente para a própria Espanha, onde logo chega Andrés Nin, antigo secretário da Internacional Sindical Vermelha e membro da Oposição de Esquerda russa. A Oposição italiana no exílio, no momento em que as relações com a fração de esquerda organizada em torno das teses de Bordiga se tornam tensas, renasce sob a forma da NOI (Nuova Opposizione Italiana), com o antigo bordiguista Pietro Tresso, chamado Blasco, e os antigos ordinovistas e companheiros de Gramsci, Alfonso Leonetti, chamado Feroci, e Paolo Ravazzoli, chamado Santini. Foi na própria URSS que o canadense Maurice Spector e o americano James P. Cannon tomaram conhecimento das teses de Trotsky, a partir das quais organizarão sua difusão e a constituição da Oposição de Esquerda nos Estados Unidos. Foi também da União Soviética que vários comunistas tcheco-eslovacos trouxeram os princípios que lhes permitem organizar em 1929 vários grupos de Oposição de Esquerda. São militantes chineses atraídos pela Oposição de Esquerda, na URSS, que constituem os primeiros grupos locais de oposicionistas na China, logo seguidos por uma centena dos melhores quadros chineses, chefiados por Tchen-Du-Siu, antigo secretário-geral do PCC e do antigo secretário da organização Peng-Shu-Zhi. A própria América Latina é influenciada, através do Brasil, como se verá mais adiante, mas também do México, a partir de dois homens, um ucraniano e um norte-americano, ambos permanentes da Internacional Comunista dos jovens, que se unem ao antigo grupo de oposição constituído em torno do cubano Julio Antonio Mella, assassinado em 1928.

Naturalmente, a Oposição de Esquerda, que em abril de 1930 consegue realizar sua primeira conferência internacional, e que realizará a segunda em fevereiro de 1933, não se desenvolve sem problemas, problemas políticos evidentemente, mas problemas pessoais e oriundos de rivalidades, da atmosfera de seita de alguns círculos de oposição: crise na França, que provoca a saída de Alfred Rosmer, crise na Áustria, numa atmosfera de fracionismo desenfreado à volta de Josef Frey e dos seus adversários encarniçados, crise na Alemanha em 1931, com a saída do austríaco Kurt Landau e de uma parte da Oposição de Wedding. Um aspecto importante que apenas começa a ser conhecido é a presença, no âmago das crises, atiçando-as, de homens que sempre foram agentes stalinistas deliberadamente infiltrados, como os irmãos Sobolevicius, da seção alemã, onde são conhecidos como Roman Well e Adolf Senin, mas também de homens certamente menos conseqüentes, que finalmente preferiram voltar-se para o stalinismo: o soviético Kharine, a partir de 1929, mais tarde o lituano Frankgraef, antigo secretário de Trotsky, e até mesmo o secretário administrativo do Secretariado Internacional da Oposição de Esquerda, o judeu ucraniano Okhun, conhecido por Mill.

Rapidamente, no entanto, a política e a vida da Oposição será dominada pelo problema, essencial da política do tempo, questão central e vital para todo o movimento operário mundial, da ascensão rápida na Alemanha da importância e da força do partido nazista de Adolf Hitler, então candidato ao poder com um programa de exterminação das organizações operárias e de destruição de todas as conquistas da classe. Essa ascensão é consideravelmente favoreci da pela política suicida do Partido Comunista Alemão, ele próprio inspirado na Internacional Comunista, e pela sua sabotagem de toda possibilidade de opor aos nazistas uma resistência real baseada numa frente única das organizações operárias. Denunciando com uma violência verbal inaudita os social-democratas, batizados na ocasião de "social-fascistas", os militantes do PC, em nome da política "da frente única na base", impedem a organização de qualquer resistência verdadeira, semeiam a inquietação e a confusão e cobrem literalmente o caminho triunfal sob os pés de Hitler e dos seus Camisas Marrons. Trotsky redige nessa época alguns dos seus melhores panfletos políticos, mostra a importância daquilo que estava em jogo tanto para a URSS como para o mundo, a necessidade e a possibilidade de deter e reprimir a ofensiva do nazismo. Mas não encontra na Alemanha senão um sucesso dúbio; o KPD está se decompondo sob o peso de sua política falsa e criminosa e o desânimo toma conta dos militantes e da classe.

Um dos problemas mais importantes nesse aspecto é a questão sindical. A política de denúncia dos "social-fascistas", com efeito, se faz acompanhar de uma política de divisão sindical, com os comunistas deixando as velhas organizações sindicais sob controle social-democrata para constituir "sindicatos vermelhos", que facilitam a dominação reformista sobre a classe e permitem ao patronato constituir suas "listas negras": pouco a pouco, em parte devido a essa política sindical suicida, uma espécie de clivagem social esboça-se entre o Partido Social-Democrata Alemão, partido dos operários que têm emprego, e o Partido Comunista, partido dos desempregados.

Naturalmente, a situação alemã torna-se um dos principais temas da agitação e da propaganda das seções da Oposição de Esquerda e de sua imprensa, que utiliza a maior parte de suas escassas colunas para dar informações sobre a situação alemã e explicar a catástrofe a que pode conduzir a política da Internacional Comunista se não for reorientada a tempo. Além disso, a situação é completamente diferente nos países onde existe, como na Alemanha - mas geralmente em menor grau -, uma ameaça fascista, que tem um nome, uma sigla, uniformes, rostos de chefes. Veremos que esse é o caso do Brasil, onde a luta contra os Camisas Verdes constituirá um dos aspectos mais importantes da política da Oposição de Esquerda.

O primeiro período do exílio de Trotsky, a luta pela construção da Oposição de Esquerda Internacional na Internacional Comunista, termina em 1933. Chamado ao poder legalmente pelo presidente Hindenburg, Adolf Hitler torna-se chanceler do Reich. Seu colaborador Herman Goering, ministro do Interior na Prússia, prepara então a provocação do incêndio do Reichstag, de que acusa os comunistas, encontrando assim o pretexto que queria para colocar o PCA fora da lei num primeiro momento e, em seguida, destruir o conjunto do movimento organizado sem encontrar nenhuma resistência. Essa espantosa derrota sem combate abre um período novo.

Em primeiro lugar, o Partido Comunista Alemão não se recomporá. Aparece tal qual é, privado de toda iniciativa e de toda capacidade de combate, apodrecido até a medula pelos militantes nazistas que o penetraram e que escalaram o aparelho, vangloriando-se dos seus clamores de denúncia ... da Oposição. Em seguida, privado de seus chefes aprisionados desde o início, revela-se totalmente inapto para o combate e capaz somente de prosseguir, até nas prisões e nos campos, a caça e a denúncia dos opositores trotskistas. Informado pelos militantes alemães, e sobretudo por seu próprio filho, que viveu várias semanas na Alemanha, sob o regime hitleriano, Trotsky rapidamente tira a conclusão de que o Partido Comunista Alemão conheceu a catástrofe final de sua história e que jamais se reerguerá. Prudentemente, no entanto, reserva seu julgamento e seu prognóstico sobre a Internacional Comunista, na qual nem esta nem aquela reação está excluída, o que atribuiria sentido a uma batalha para uma "reorientação" que começaria pelo reconhecimento da derrota alemã e da responsabilidade da direção do Partido e da Internacional nessa derrota. Há um pouco de confusão na cabeça do Partido Comunista Francês, muito mais na direção do Partido Comunista Tcheco-eslovaco - que Moscou depura severamente, procurando separar dos outros o homem que julga responsável pela orientação trotskista da direção do Partido, Josef Guttmann -, mas, no conjunto, como Trotsky fará notar com uma certa amargura, a Internacional Comunista não parece ter sido alertada pela "bomba da catástrofe alemã". E, alguns meses depois de haver convocado para a criação de um "novo partido na Alemanha", Trotsky apela, em todos os países, para a criação de "novos partidos" e, em escala mundial, para a criação de uma nova Internacional, por força das circunstâncias e pela lei do número, a IV Internacional.

Mas 1933 significou também uma outra mudança qualitativa. Desde 1929, com efeito, à custa de mil dificuldades e de um trabalho tão paciente quanto minucioso, Leon Sedov tinha conseguido manter contato com a URSS por intermédio de viajantes pertencentes ao aparelho das organizações irmãs instaladas na Alemanha. A destruição do PCA e do aparelho internacional da IC na Alemanha é também a destruição da rede de Sedov no que tange a suas relações com a URSS, a ruína dos esforços passados e do enorme sucesso - ignorado por todos, mas real - que fora em 1932 o retorno à Oposição de Esquerda do grupo do ex capitulador Ivan Nikititch Smirnov e a constituição de um "bloco das oposições" com ele, o antigo grupo stalinista de Jan Sten e Loominadz e o grupo Zinoviev-Kamenev. O testemunho de Jean van Heijenoort, secretário de Trotsky, é categórico nesse ponto: a derrota do proletariado alemão, sobrevindo alguns dias após a morte por suicídio de sua filha mais velha, foi para Trotsky um golpe muito duro, marcado pelo embranquecimento dos seus cabelos em apenas alguns dias. Trotsky sabe, desde então, que jamais voltará à URSS e que não obterá vitória frente à burocracia stalinista que acreditara - sem dúvida com razão - a seu alcance, nos meses precedentes. A IV Internacional-, que ele convoca para que se prepare, é a tarefa de que deve imperativamente lançar as bases, mas sabe bem que tem todas as possibilidades de jamais ver a sua vitória. Trata-se, verdadeiramente, de um novo período histórico do qual 1933 marcou o início.

Esse é o quadro internacional de organização no qual se situa a ação da "seção brasileira" apresentada adiante por Fulvio Abramo. Sem adentrar no seu assunto, digamos mesmo assim que, ainda que a seção brasileira tenha inscrito sua história no quadro geral do qual acabamos de indicar as grandes linhas, parece ter agido com uma grande autonomia como atesta a ausência quase total de correspondência com o Secretariado Internacional, bem como com Trotsky e Leon Sedov, em depósitos de arquivos onde é possível encontrar dezenas de cartas nos dois sentidos com as outras seções, algumas inclusive com as seções mexicana e argentina. Isso demonstra o interesse suplementar dos documentos apresentados mais adiante, que lemos pessoalmente com grande atenção e que nos permitem precisar com muita clareza o aspecto geral da Oposição de Esquerda Internacional como o lugar único que aí ocupa a Oposição de Esquerda brasileira.

Grenoble, 9 de agosto de 1986


Inclusão: 18/11/2019