Expressionismo e Verdade: Uma Crítica da Literatura Recente

Theodor Adorno

1920


Fonte: http://planeta.clix.pt/adorno/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Expressão de uma nova forma de sensibilidade no processo de desenvolvimento, por um lado, e resultado de uma rígida estilização que perdeu as raízes, por outro, o expressionismo como criação ou como reação torna-se ego absoluto e demanda expressão pura. A enferrujada cerca de arame farpado que se estende entre a arte e a vida enlouquece; ambas se confundem o efeito dos grandes acontecimentos de nossa época. Ao olhar dos indolentes, os que derrubam cercas empilhando estruturas parecem ter enlouquecido. Empurrado a novas e estranhas formas, o expressionismo é uma declaração iluminista de guerra. Todas as formas obsoletas pelas quais irrompe tornam-se, ao mesmo tempo, estopim de incêndio e tocha. Jogando suas energias contra resistências incontáveis, nunca encontra orientação no ego; exterioriza-o e o dirige contra o mundo. Introspecção e reflexão lhe são estranhos; onde tem a coragem de ser inteligente, usa essa inteligência apenas para rasgar em farrapos as formas adversas. Para ele, seus próprios pressupostos tornam-se inquestionáveis, ultrapassam as dúvidas.

É assim que a nova arte se desemboca em crise.

Se a arte, em últimos termos, é a dissolução do ego numa unidade superior; se , como catarse, deve abarcar as profundidades integrais do ego, então só se legitima se for verdadeira. Não se reflete uma situação, um evento, uma sensibilidade na realidade de seu contexto, mas quando traz a seu campo de visão apenas o que é comensurável na vivência de que se alimenta a arte. A verdade da vivência é a primeira lei da construção artística. Essa verdade, no entanto, é dupla? justamente como a arte é dupla em seu desenvolvimento, em sua forma e em seus efeitos. Seus componentes são o mundo e o ego, expressos através da vivência típica e individual. A verdade da própria vivência se faz necessária para forçar a obra para fora do caos psíquico e eleva-la à pureza de uma vontade autônoma. A catarse exige a veracidade da vivência do mundo. A literatura só pode extrair a imagem dessa humanidade? quer seja ainda o inimigo, quer seja agora o objetivo procurado? em termos de suas caracter?sticas comuns e típicas. Só uma humanidade real que surja de uma vivência típica pode ser um objetivo. Se a verdade individual é um requisito em cada forma de vida, então a idéia de catarse constitui o típico como um requisito artístico específico.

Se a arte pré-expressionista perdeu a visão da verdade individual (e com isso, naturalmente, também do típico no sentido de que deixou de incorporar a criação da humanidade e passou a crer que a catarse estava ultrapassada) o expressionismo arrisca-se à perda do típico.

A visão do mundo oposta àquela em que o mundo se apresenta como uma representação do eu é uma visão do mundo como representação do eu projetado no mundo; não é uma representação dos conteúdos típicos da vivência. Na medida que a vontade expressionista tenta retirar sua força de um dos pólos, e permanece lírica, o resultado é que o mundo torna-se um hall tremeluzente de espelhos da alma inundado por uma luz inescapável. Quando, no entanto, o fluxo da atividade artística tenta atuar indutivamente através de uma multiplicidade, contrai-se à dualidade de uma vontade em combate e luta pelo drama? então o expressionismo assume um caminho que nos conduz a uma mentira que, mesmo se habilmente ocultada e eticamente embelezada, perde, no entanto, seu valor. O artista que é inábil ou destituído da vontade de moldar a multiplicidade do mundo como totalidade a um tipo, torna a impressão experimental contingente e individual representação do mundo e, ao assim proceder, subordina a alma à totalidade a que ele se propusera a dar forma artística. Que o expressionismo admita isto, que o explique em termos das necessidades de sua época, que o eleve ao status de um programa, só prova sua própria incapacidade de prover a forma artística. A liberdade do eu ainda não se tornou lei para o expressionista. Sintoma da inveracidade final é a desintegração das realidades? o mundo, roubado de sua realidade, torna-se um brinquedo nas mãos de alguém que dele se apropria apenas por sua dualidade e não para explorar seu significado através desta dualidade. O drama torna-se um evento ilusório, uma colisão de "doublés(1)"; o mundo que atravessa lhe é indiferente. O drama perde o significado. E o criador sucumbe a uma falta de respeito que num certo ponto particular o torna desapaixonado e estéril.

Vejamos o perigo da inverossimilhança num dos primeiros e exemplares dramas expressionistas: não há dúvidas de que "Os mendigos", Reinhard Sorge, tinha, em termos individuais, vivências de completa integridade. Mas o fato do pai do escritor ter sido um arquiteto louco (e que as raízes de sua insanidade não sejam mostradas) não implica no direito de tornar o "pai" uma vivência típica, um arquiteto louco. Poderia indiferentemente ser um filisteu. A grande vivência típica de um pai e seu filho que crescem em mundos adversos na trágica antítese de nascer e morrer torna-se contingente ao reduzir-se a uma batalha entre duas pessoas particulares. A verdade do mundo é reduzida a uma caricatura, como em qualquer lixo naturalista da década final do século passado. A necessidade férrea de desenvolvimento dramático desmancha-se na caçarola de um subjetivo "tout comprendre". A validade ética desaparece? onde permanece uma exig?ncia, torna-se inverossímil. O fato de um lençol de ilegalidade incompreensivelmente mística espalhar-se sobre esta contingência não-mundana é algo que poderia passar por recurso estilístico de forma romântica epigonal , mas nunca chegará a ser um fator dramático.

A arte de nosso tempo enfrenta a questão de sua existência tardia. Sua necessidade corre o risco de desbotar-se em ilusão e tornar-se uma mentira quando posta em altos brados. O que se tornou subjetivo e contingente permanece apenas como efeitos subjetivos e contingentes. Corremos todos o perigo de tornarmo-nos culpados em relação ao espírito. É hora de reconhecer isto. Os dias que estão por vir, aos quais olhamos fascinados, nos dirão se o novo terá força para dar nascimento a uma nova veracidade.


Notas de rodapé:

(1) Doppelgänger. (retornar ao texto)

Inclusão 21/11/2018