Projeto de Teses sobre a Assembléia Constituinte

Maio de 1932


Primeira Edição: Boletim da Oposição, n. 4, maio de 1932

Fonte: http://www.ler-qi.org/ - Na Contracorrente da História. Documentos da Liga Comunista Internacionalista 1930 – 1933. Fúlvio Abramo e Dainis Karepovs (orgs.) - Na Contracorrente da História. Documentos da Liga Comunista Internacionalista 1930 – 1933. Fúlvio Abramo e Dainis Karepovs (orgs.)

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


capa

1 — A sociedade atual está dividida em duas classes fundamentais: a burguesia e o proletariado. A burguesia exerce o poder em todos os países do mundo, à exceção da Rússia, onde existe a ditadura do proletariado sob a forma de regime soviético. Seja qual for a forma de governo, o que existe sempre é a ditadura de uma classe sobre a outra. Assim, à exceção da Rússia, onde é o proletariado que detém o poder, o que existe em todos os países, na hora presente, é, sob formas de governo variadas, a ditadura da burguesia. A diferença consiste em que a ditadura do proletariado representa os interesses e, por conseguinte, a vontade da esmagadora maioria da população, ao passo que a ditadura da burguesia representa apenas os interesses de uma insignificante minoria social que vive à custa da exploração da força de trabalho da maioria. Graças ao seu aparelho de Estado, que se torna um instrumento de opressão extremamente elástico em suas mãos, a burguesia consegue manter a posse de todas as riquezas sociais: a terra, os produtos e os meios de produção. É a elasticidade do Estado que permite à burguesia adaptar-se às múltiplas circunstâncias criadas no curso do desenvolvimento das contradições próprias do modo de produção capitalista: na fase imperialista, a burguesia, internacionalizando os seus interesses arredou de si todo preconceito político e. utiliza todas as formas de Estado, transformando-as socialmente, e sujeitando-as aos seus objetivos. No momento atual, das formas clássicas da democracia (monarquia constitucional na Inglaterra, república parlamentar na França, república presidencial nos Estados Unidos) ao Estado corporativo de tipo fascista e às ditaduras militares, formas frustes de fascismo semicolonial (América do Sul, Polônia, Estados Balcânicos), todas as formas de Estado são outras tantas formas pelas quais se exterioriza a dominação dos capitalistas sobre os trabalhadores. "As formas dos Estados burgueses são as mais variadas — diz Lenine — , mas a sua natureza fundamental é invariável: todos esses Estados se reduzem, de um modo ou de outro, mas obrigatoriamente, afinal de contas, à ditadura da burguesia." (O Estado e a Revolução — Obras Completas, Editions Sociales Internationales, p. 470). Enquanto existam classes sobre a terra, haverá uma, necessariamente, que detenha o poder. A dominação política de uma classe é a conseqüência dialética de sua supremacia econômica na sociedade. Diz ainda Lenine: "As classes exploradoras necessitam da dominação política para manter a exploração, no interesse egoístico de uma minoria ínfima contra a imensa maioria do povo. As classes exploradas necessitam da dominação política para o completo aniquilamento de qualquer dominação, no interesse da maioria do povo, contra a ínfima minoria dos modernos escravagistas, isto é, dos proprietários territoriais e dos capitalistas." (O Estado e a Revolução — Obras Completas, Editions Sociales Internationales, pp. 461-462).

2 — A concorrência desenfreada que decorre do regime de produção de mercadorias, ou seja, a produão capitalista, faz com que, no próprio seio da burguesia, se vão formando antagonismos, dando margem ao desenvolvimento de grupos que se digladiam pela hegemonia no mercado. Esses antagonismos tendem cada vez mais a provocar as guerras entre os Estados capitalistas.

Dentro dos limites nacionais, os antagonismos capitalistas assumem, por vezes, a forma de conflitos armados entre facções da burguesia. A facção vitoriosa passa a governar discricionariamente e a volta à "normalidade" constitucional, isto é, à relativa estabilização da burguesia, só se verifica na medida em que o descontentamento das massas exploradas e oprimidas, às quais se arrancam as liberdades mais elementares, não encontra no Partido do proletariado a direção capaz de assegurar o desenvolvimento revolucionário da situação de desagregação das classes dominantes.

3 — As massas exploradas e oprimidas só' poderão libertar-se da dominação burguesa por meio da Revolução Proletária, que instituirá a ditadura do proletariado, baseada nos sovietes, como órgãos de governo, e no Partido Comunista, como organização política. Os sovietes constituem, pois, o aparelho do Estado proletário. Mas, embora destinados a esse papel, os sovietes podem e devem ser criados antes da insurreição, sempre que a situação coloque na ordem do dia a questão da tomada do poder pelo proletariado. Exemplo: por ocasião de uma greve geral. Nesse caso, o soviete será a organização democrática por excelência das massas exploradas e oprimidas. "É a única forma de organização capaz — diz Trotsky — de tomar a direção do movimento e para aí levar a disciplina da ação revolucionária." (A Revolução Espanhola, p. 108). Os sovietes têm, assim, duas utilidades: uma, de órgãos de insurreição, como organismo de frente única das massas no período que precede a tomada do poder pelo proletariado; e outra, de órgãos de poder, após a destruição do aparelho de Estado da burguesia.

4 — Vitorioso o proletariado, os sovietes, "como órgãos do poder do proletariado, serão opostos às instituições democráticas da burguesia. Somente então soará a última hora da democracia burguesa". (Trotsky, A Revolução Espanhola, p. 93). Mas, enquanto a burguesia conservar o poder em suas mãos, o proletariado deverá recorrer a todas as formas da democracia burguesa, pois não só será este o meio mais fácil de alcançar a destruição das mesmas, como também a forma mais natural de conduzir as massas retardatárias, que ainda possuem ilusões democráticas, ao caminho da revolução proletária. Dirigindo-se, em 1920, aos ultra-esquerdistas da Alemanha e da Holanda, diz Lenine: "Enquanto não tiverdes força para destruir o parlamento burguês, ou qualquer outra instituição reacionária, tereis de trabalhar nessas instituições, precisamente porque ainda se encontram operários obscurecidos pelo clero e pela atmosfera provinciana. Do contrário, estais arriscados a não passar de tagarelas." (A Doença Infantil do Comunismo, Editions Sociales Internationales, p. 47): Por ocasião das eleições para as instituições democráticas da burguesia, o proletariado deverá apresentar candidatos próprios, saídos de sua classe e sustentando um programa revolucionário, baseado numa política revolucionária, independente, de classe. O boicote às instituições democráticas da burguesia só consulta os interesses da estratégia revolucionária do proletariado quando existe a perspectiva de tomada do poder e o proletariado tenha, então, diante de si, a possibilidade de opor à democracia burguesa a sua própria democracia. "Na Rússia — escreve Trotsky — a Assembléia Constituinte, adiada pela burguesia, foi convocada depois do desfecho decisivo e liquidada sem dificuldade." (A Revolução Espanhola, p. 97). Como se vê na Rússia de 1917, nem mesmo se cogitou do boicote, pois a vitória do proletariado se verificou ainda antes da data marcada, pelo governo burguês de Kerensky, para a convocação da Constituinte. Ao governo proletário, baseado nos sovietes, não foi difícil patentear às massas a inutilidade desta instituição tipicamente burguesa e liquidá-la. Já em 1905, os bolcheviques recorreram ao boicote para fazer fracassar a Duma reacionária de Buliguine(1), e o conseguiram. "A questão tática concernente à boicotagem — diz ainda Trotsky — deve ser resolvida sobre a base da relação de forças em uma etapa dada da Revolução." (A Revolução Espanhola, p. 30). Assim, só a situação pode indicar, em cada caso particular, se o boicote é ou não a tática mais aconselhável. Lenine nos dá dois exemplos históricos: "A experiência russa — diz Lenine — nos deu uma aplicação bem-sucedida e justa, em 1905, e uma outra aplicação, errônea, em 1906 da boicotagem. Analisando o primeiro caso, vemos que os bolcheviques conseguiram impedir a convocação do parlamento reacionário pelo poder reacionário, num momento em que a ação extraparlamentar das massas (as greves, em particular) crescia com uma rapidez excepcional; em que uma camada do proletariado e da classe camponesa não podia sustentar, de modo algum, o poder reacionário; em que a influência do proletariado sobre a massa retardatária era assegurada pelas greves e pelo movimento agrário." (A Doença Infantil do Comunismo, Editions Sociales Internationales, p. 51).

5 — O parlamento é uma instituição da democracia burguesa, destinada a fazer crer ao povo que é ele quem governa, pois, podendo eleger os seus representantes, não lhe seria difícil obter a maior parcela de poder. Todo operário consciente sabe, porém, que o Estado burguês, que é o instrumento de dominação da burguesia, não se baseia exclusivamente no parlamento, cuja função é relativamente secundária e cuja existência é condicional, podendo cessar de uma hora para outra, bastando que assim o exijam os interesses capitalistas em jogo, como foi o caso recente do Brasil(2); o essencial nesse aparelho de Estado é a burocracia administrativa concentrada nos ministérios e sustentada pela polícia, pela marinha e pelo exército burgueses. "O mecanismo burocrático de todo Estado burguês — escreve Trotsky — qualquer que seja a sua forma, eleva-se sobre os cidadãos, fortalecendo seu poderio para fomentar uma fidelidade mútua entre as classes governantes e propagar sistematicamente, entre as massas, o temor e a subordinação aos governantes." (Plataforma da Oposição Russa — La situación real de Rusia, p. 119). O parlamento deve, pois, ser destruído, mas a sua destruição só pode interessar ao' proletariado se for feita juntamente com a do próprio regime burguês. Mas o proletariado não poderá alcançar o seu objetivo sem chamar ao seu lado a maioria da população. Para isso, o proletariado deve antes de tudo abater a burguesia, destruindo o aparelho do Estado burguês, em segundo lugar, instituir o poder soviético. "Limitar tal conquista unicamente à concepção de uma maioria de votos nas eleições feitas sob o domínio da burguesia, ou condicioná-la a essa maioria, além de revelar irremediável estreiteza de espírito, é iludir a classe operária." (Lenine, As Eleições para a Assembléia Constituinte e a Ditadura do Proletariado, Edição Avanti, p. 17). Porque não é no mecanismo eleitoral da democracia burguesa que se encontra o fundamento do poder, mas na propriedade, no monopólio do ensino e no armamento. "A burguesia pode bem dizer: enquanto eu tiver as terras, as oficinas, as fábricas, os bancos, a imprensa, as escolas, as universidades; enquanto eU' tiver — o que é o essencial — o exército, o mecanismo da democracia, seja qual for o modo de manejá-la, estará submetido à minha vontade." (Trotsky, Terrorismo e Comunismo, Edição Biblioteca Nueva, p. 51).

A participação do partido comunista nos parlamentos burgueses é necessária para chamar as massas mais retrógradas à vida política. Em todo o mundo capitalista, ao lado do proletariado consciente dos seus objetivos revolucionários, encontram-se largas camadas da população trabalhadora (proletários, semi-proletários, pequeno-burgueses), sustentáculos da democracia burguesa, porque, escravas das ilusões constitucionais, esperam ainda do exercício do voto uma mudança radical de condições de vida. Essas camadas de trabalhadores não crêem nas próprias forças. É para o esclarecimento dessas consciências que o partido do proletariado revolucionário deve entrar nas eleições e na luta dos partidos no parlamento burguês. É para neutralizar a influência da burguesia sobre essas camadas retardatárias da população trabalhadora, separando-as da colaboração com a burguesia, aproximando-as da compreensão de que só uma revolução proletária vitoriosa lhes dará satisfação aos objetivos econômicos. Lenine escreve: "Nós outros, bolcheviques, participamos dos parlamentos mais contra-revolucionários, e a experiência mostrou que essa participação foi não só útil,. mas até indispensável ao partido do proletariado revolucionário, precisamente depois da primeira revolução burguesa (1905), para preparar a segunda revolução burguesa (fevereiro de 1917) e, em seguida, a revolução socialista (novembro de 1917)." (A Doença Infantil do Comunismo, Editions Sociales Internationales, p. 50).

6 — Assim, a atitude do Partido Comunista quanto à democracia burguesa, se está a mil léguas do parlamentarismo dos partidos da II Internacional, nada tem em comum com o cretinismo antiparlamentar dos anarquistas. A questão das palavras de ordem democráticas não é, para os comunistas, uma questão formal, antes a sua utilização pelo Partido do Proletariado resulta de uma análise justa de uma etapa bem determinada da evolução da sociedade burguesa nos diferentes países, (Trotsky). E assim, Lenine, exprimindo-se sobre certas palavras de ordem meramente políticas, cujo valor tático é fundamental, mas limitadas sempre ao seu caráter episódico, auxiliar, afirma: "As transformações políticas dirigi das em sentido verdadeiramente democrático, e as revoluções políticas, a fortiori, não podem nunca, em caso algum, enfraquecer a palavra de ordem da revolução socialista. Ao contrário, contribuem sempre para aproximar esta, fazendo-lhe uma base mais larga; arrastam à luta socialista novas camadas da pequena burguesia e das massas semiproletárias. De outra parte, as revoluções políticas são inevitáveis no caminho da revolução socialista. Ê preciso não considerar esta como um só ato, mas como uma época inteira de abalos tumultuosos, políticos e econômicos, de extrema agudeza da luta de classe, de guerra civil, de revoluções e contra-revoluções." (Contre le Courant, tomo 1, Bureau d'Editions, p. 137).

No caso de uma situação revolucionária, a palavra de ordem de Assembléia Constituinte pode existir perfeitamente ao lado da de sovietes. Estes são os órgãos de frente única das massas já preparadas para a insurreição; aquela é o meio de trazer para a insurreição as massas que reclamam a Constituinte, as massas que ainda esperam alguma coisa da democracia burguesa e que só se convencerão da superioridade da democracia soviética depois que tiverem tomado o poder com o Partido proletário à frente.

7 — Muitas vezes, na história, existe uma situação revolucionária, isto é, uma situação em que se apresenta a perspectiva da tomada do poder pelo proletariado, mas que a falta do necessário apoio das massas ao Partido Comunista obriga-o a não entrar imediatamente na luta pelo poder, pois isso seria apenas um golpe aventurista, destinado ao fracasso. Neste caso, o que compete à vanguarda proletária é lutar pelas massas, é conquistar a sua confiança e conduzi-Ias, então, à luta pelo poder. Ê o caso da Espanha, e a respeito nos diz Trotsky: "Entretanto, não é a luta pelo poder a tarefa imediata dos comunistas espanhóis, mas a luta pelas massas, e essa luta se desenvolverá, no próximo período, sobre as bases da república burguesa, e, numa larga medida, sob as palavras de ordem da democracia. A criação das juntas operárias (sovietes) é, incontestavelmente, a tarefa imediata. Mas seria um contra-senso opor as juntas às palavras de ordem democráticas. Da luta contra os privilégios da igreja e contra a dominação das ordens religiosas e dos conventos — luta puramente democrática — resultou, em maio, a explosão das massas, que criou condições favoráveis, infelizmente inaproveitadas, à eleição de deputados operários. As juntas são, no estágio atual, a forma organizada da frente única proletária, tanto para as greves como para a expulsão dos jesuítas, para a participação nas eleições das cortes, para a ligação com os soldados, para a sustentação do movimento camponês. Ê só por meio das juntas, encerrando o núcleo fundamental do proletariado, que os comunistas podem assegurar sua hegemonia entre o proletariado e, por conseguinte, também na revolução. Ê só na medida do crescimento da influência dos comunistas sobre a classe operária que as juntas se transformarão em órgãos de luta pelo poder". (A Revolução Espanhola, pg. 92). As palavras de ordem democráticas, como por exemplo a de Assembléia Constituinte, devem, pois, ser utilizadas pelo proletariado em todo o curso de sua luta contra a burguesia.

8 — No Brasil, a ditadura capitalista está sendo exercida discricionariamente por um governo provisório de diversas tendências, saído do movimento militar de outubro de 1930. Esse governo arranca ao povo as liberdades mais elementares: de reunião, de pensamento, de imprensa, organização; dirige contra os sindicatos operários uma séria ofensiva, visando castrá-los e reduzi-los à passividade com a decretação de leis de caráter fascista. O descontentamento das massas cresce dia a dia. Estas perderam as esperanças que depositavam nos revoltos os de 1922e 1924.

A burguesia brasileira, mais do que nunca, sente-se fraca e dividida, sem forças para resolver sequer as tarefas de "reforma" e "moralização" que se propôs como justificativa política da cavalgata guerreira de outubro. Dentro do próprio governo provisório há interesses e pontos de vista que se chocam desde o dia em que Getúlio Vargas e sua camarilha se instalaram no Catete(3). Esse estado de coisas reflete as contradições principais da burguesia nacional, expressas, até um certo grau, pela tendência autonomista dos estados.

Os estados economicamente preponderantes na União são contrários a toda centralização que escape ao seu controle político particular, preferindo uma composição de forças entre si a uma ditadura militar caracterizada. Ao contrário das burguesias dos estados do Sul, a burguesia do Norte e do Nordeste só agora realiza o seu advento ao poder central e vê, assim, na ditadura, o meio mais cômodo para a satisfação dos seus interesses vitais.

A campanha pela constitucionalização do país, movida pelas burguesias do Rio Grande, São Paulo e Minas, e a reação que se desenha, contra essa campanha, de elementos militares e civis nucleados pelo "Clube Três de Outubro"(4), deu forma mais precisa e nítida à contradição inicial.

Uma alternativa se estabelece: ou a ditadura, apoiando-se diretamente nas armas, se consolida, ou capitula diante da pressão dos elementos constitucionalistas da burguesia. Em um ou outro caso, não está excluída a probabilidade de um choque entre o Norte e o Sul, de um movimento de secessão que destrua a unidade nacional(5).

No primeiro caso, a Constituinte exigida pelos partidos burgueses constitucionalistas para a satisfação das conveniências dos estados mais industrializados seria protelada indefinidamente, e um fascismo crioulo instituiria aberta e francamente no Brasil um regime de força. No segundo caso, os estados constitucionalistas, efetivando o código eleitoral, apressariam o momento das eleições gerais, naturalmente de forma a defender os interesses da classe exploradora.

As forças armadas não são estranhas à diferenciação que se criou no seio da burguesia, dividindo-a em duas alas antagônicas. Os chefes mais destacados da facção dos chamados "tenentes", que tomam agora a sua coloração política e adquirem estrutura orgânica no "Clube Três de Outubro" e corporações afins, pertencem às fileiras do exército, nele ainda continuam. Mas há, no próprio seio das forças armadas, um movimento contrário aos "tenentes".

A burguesia brasileira compreende, neste momento crítico de transição, que a unidade nacional está em perigo. Daí a sua procura de um novo equilíbrio de forças, num plano de relativa convergência dos interesses que provocaram a ruptura.

9 — Diante de alternativa criada pelos acontecimento políticos do país, a vanguarda do proletariado revolucionário deve tomar posição desde já. Qualquer que seja a solução para a crise governamental do momento, somente uma tática justa poderá orientar com êxito o Partido Comunista nas etapas de luta que se aproximam, dar-lhe possibilidade de ligação com as massas, meios e prestígio para arrastá-las, de conquista em conquista, sob a sua bandeira de classe.

As palavras de ordem devem ser lançadas, nesse período, com inteligência, lógica, oportunidade e decisão. Admitamos que a ditadura se consolide e consiga adiar para as calendas a convocação da Constituinte, pedida pela burguesia de Minas, São Paulo e Rio Grande. A vanguarda do proletariado, sem hesitações, reclamando os seus direitos mais elementares — liberdade de reunião, pensamento, imprensa, organização, efetivação da lei das oito horas, revogação das leis do Ministério do Trabalho, etc. — , deve-se lançar a campo, com todos os meios ao seu alcance, numa luta pela Constituinte imediata, nas bases mais democráticas possíveis, com plenos poderes, soberana. Contra o código eleitoral deve ser movida uma campanha tenaz que elucide os operários sobre o seu verdadeiro caráter: instrumento vasto e complicado para a protelação das eleições prometidas solenemente. Quanto mais a ditadura lançar mão dos meios violentos de dominação, tanto mais a luta pela Constituinte se deslocará das fileiras da burguesia constitucionalista para a vanguarda proletária. Este será um processo natural, que ainda mais aprofundará a nossa agitação.

Não se esqueça, nessa luta, que a agitação pela Constituinte não se realiza como finalidade para o Partido Comunista. Os operários devem saber que visamos instituir, por meios revolucionários, a ditadura do proletariado, sob a forma política dos sovietes. A propaganda dos sovietes deve ser feita de forma simples e esclarecedora, em todos os documentos de agitação. Expliquemos, ainda, que é possível que não tenhamos no Brasil uma fase regular de parlamentarismo (isto dependendo de fatores inexistentes por ora), mas que mesmo com a perspectiva da tomada do poder numa situação objetiva e subjetivamente revolucionária, a palavra de ordem de Constituinte é necessária e não deve ser oposta, mas conjugada com a dos sovietes.

Admitamos, porém, que a ditadura capitule diante dos elementos constitucionalistas, procurando uma forma "honrosa" para "entregar os seus pontos". Essa forma pode-se apresentar através de combinações diversas. Mas ainda nesse caso, a palavra de ordem de Constituinte não deve ser afastada simplesmente, como um trapo inútil, pela vanguarda do proletariado. Antes que a burguesia convoque realmente a Constituinte e ponha em movimento as diversas peças do código eleitoral, pode haver uma nova mudança de situação. Uma vez, porém, que essa convocação seja feita, marcada a época para as eleições, iniciado o alistamento eleitoral, devemos aceitar o fato consumado. Insistir na mesma palavra de ordem seria o mesmo que se atribuir a tarefa de forçar uma porta escancarada. A participação nas eleições se impõe, nesse momento, mas devemos saber como fazê-lo: apresentar candidatos próprios, indicar à massa as limitações impostas pela lei eleitoral; mostrar a precariedade da democracia formal da burguesia, o conteúdo de classe do parlamento, que exclui da vida política do país a grande maioria do povo, os menores de 21 anos, os soldados, os marinheiros; apresentar, desde então, com clareza e lógica, as reivindicações econômicas e políticas mais imediatas dos operários urbanos e rurais; formular um programa mínimo, em suma, e proceder a uma propaganda sistematizada dos sovietes, explicando à massa sua significação histórica, o verdadeiro sentido da democracia proletária e em que ela difere da democracia formal, com base no voto.

A tarefa da vanguarda proletária, na hipótese formulada, será, pois, de propaganda dos objetivos gerais da política revolucionária, de educação, portanto, das camadas mais profundas da população, atraídas à arena política, propaganda essa conjugada com a formulação das reivindicações concretas que as interessem imediatamente e preparem o terreno para uma etapa ulterior do movimento proletário no Brasil.

10 — A palavra de ordem de Assembléia Constituinte, nas bases democráticas do voto secreto, direto, para os maiores de dezoito anos, sem distinção de sexo e nacionalidade e extensivo aos soldados e marinheiros, foi lança da em janeiro de 1931 pela Liga Comunista, Seção Brasileira da Oposição Internacional de Esquerda(6). Ninguém poderia, de boa fé, discutir no momento a oportunidade dessa palavra de ordem, que, numa hora de instabilidade para a burguesia, como aquela, poderia repercutir no seio das massas trabalhadoras, mobilizá-las num sentido político mais elevado e dar-lhes coesão aos movimentos dispersos em que se dividia. A situação era inteiramente favorável para tal agitação, a que a Liga Comunista não pôde dar a amplitude desejada por encontrar-se na fase inicial de sua organização e os meios que possuía serem bastante reduzidos. O governo discricionário mal se instalara, a maior parte dos estados se achava sem direção governamental estável, a crise econômica se aprofundava, as greves operárias e os lock-outs se sucediam, notadamente em São Paulo. Foi então que lançamos a palavra de ordem de Assembléia Constituinte. Desgraçadamente, a direção do Partido Comunista não soube ou não quis compreender a situação. Pondo acima dos interesses do proletariado os interesses da sua seita burocrática, os dirigentes do P. C. B. iniciaram logo, contra a palavra de ordem de Constituinte, um boicote sistemático, que repercutia nos manifestos de Luiz Carlos Prestes(7). Claro se tornou que o intuito da burocracia não era a adoção de uma linha justa para a política revolucionária do proletariado.

Os acontecimentos evidenciaram inteiramente a justeza da palavra de ordem de Assembléia Constituinte, e se a mesma não teve o efeito que poderia ter, o proletariado o deve à atitude criminosa dos stalinistas. E como argumentavam esses representantes do centrismo? Da maneira mais simplista desse mundo: afirmando que a massa, no Brasil, não quer a Constituinte, e sim os sovietes.

Muito tempo depois que a Liga Comunista lançou a sua palavra de ordem de Constituinte, nas bases que se conhecem; depois que a repressão neutralizou a ação dos militantes comunistas mais em vista, desarmando a vanguarda proletária; depois de uma série de violências, prisões, deportações, só então que a burguesia se viu com mais coragem de pleitear a Constituinte. Já tinha havido, visivelmente, uma mudança de situação, uma relativa estabilidade na vida do país. E se a burguesia pôde facilmente chegar a este ponto de sua política de classe, em grande parte se deve à direção do P. C., que, na sua cegueira e na sua lamentável ignorância do marxismo, vai caminhando de desastre em desastre.

Desprezando a experiência da luta de classe, em todos os países, o stalinismo se levanta, de punhos fechados, contra a convocação da Constituinte. Tanto se avizinham do "apoliticismo" teórico dos anarquistas, como a eles se ligam na sustentação prática de uma ditadura que as massas anseiam por ver derrocada. E, nesse oportunismo barato, mal disfarçam o conteúdo contra-revolucionário de sua política com a promessa utópica de uma revolução intermediária, "agrária e antiimperialista", "operária e camponesa", etc.

"O dever da Oposição de Esquerda — diz Trotsky, dirigindo-se aos comunistas da Espanha — é descobrir, desmascarar e condenar à vergonha eterna, na consciência da vanguarda proletária, a fórmula de 'revolução operária e camponesa', particular, diferente das revoluções burguesa e proletária". Em seguida:

"Abre-se diante de vós uma perspectiva de luta pela ditadura do proletariado. Em nome dessa tarefa, deveis reunir em torno de vós a classe operária e chamar em auxílio dos operários os milhões de camponeses pobres. Ê uma tarefa gigantesca." E ainda: "Só a ditadura do proletariado pode derrotar a dominação da burguesia. Não existe e não pode existir nenhuma outra revolução intermediária, mais 'simples', mais 'econômica', mais acessível às vossas forças. A história não inventará para vós nenhuma ditadura intermediária, ditadura de segundo grau, ditadura com abatimento." (A Revolução Espanhola, pp. 90-91).

Todo operário consciente deve esforçar-se para que a direção stalinista emende os seus erros, fazendo reviver a linha revolucionária traçada por Lenine e confirmada por todo o curso do desenvolvimento histórico. Ê necessário fazer com que o Partido Comunista seja reconduzido à sua linha política de classe, para poder ser efetivamente o orientador e o guia do proletariado em sua luta contra a ditadura capitalista.


Notas de rodapé:

(1) Buliguine, ministro do Interior do tzar Nicolau II, através do qual foi apresentado em 6/8/1905 um projeto de Duma (assembléia representativa), estatuindo que esta seria apenas um conselho consultivo do tzar e não uma legislatura. O voto era baseado na propriedade. O tzar podia dissolvê-la por sua própria iniciativa. Os trabalhadores não tinham, praticamente, direito a voto. Os bolcheviques apelaram para o boicote e o projeto da Duma foi sepultado, sem ter nascido, pela Revolução Russa de 1905. em dezembro desse mesmo ano, quando a revolução começava a ser esmagada e se iniciava um período contra-revolucionário, o tzar convocou uma nova Duma, que ficou conhecida como a Duma de Witte (1849-1915), ministro do tzar. Os bolcheviques apelaram novamente para o boicote, o qual, ignorando as condições adversas do momento, resultou em fracasso. (retornar ao texto)

(2) Em 11.11.1930 foi expedido o Decreto 19.398, que conferia ao Governo Provisório de Getúlio Vargas as atribuições de poder executivo e legislativo, confirmando assim a dissolução do parlamento, que se encontrava com suas atividades suspensas desde o levante militar de outubro de 1930. O decreto, além disso, suspendia as garantias constitucionais, determinava a nomeação de interventores para cada Estado da Federação e isentava de apreciação judicial os atos do Governo Provisório. (retornar ao texto)

(3) Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954). Advogado e político. Ministro da Fazenda no governo de Washington Luís, do qual se afastou para ser governador do Rio Grande do Sul. É candidato da oposição a Washington Luís, pela Aliança Liberal, sendo derrotado nas eleições de 1.3.1930. Com o movimento armado de 3.10.1930, é designado chefe do governo provisório, sendo eleito presidente após os trabalhos da Constituinte de 1934. Em novembro de 1937 dá um golpe de estado, instaurando o Estado Novo, que dura até 1945. E eleito novamente presidente em 1950, exercitando seu mandato de 1951 até seu suicídio.  (retornar ao texto)

(4) O "Clube Três de Outubro", criado em fevereiro de 1931, no Rio de Janeiro, era uma organização política, com o objetivo de defender o "ideário do tenentismo"; mostrou-se, em sua fase inicial, contra a reconstitucionalização do país e advogava a necessidade de um Executivo forte. de um Legislativo eleito por indiretas e de um Estado que dirigisse a economia e a sociedade. Autodissolveu-se em 15.4.1935. (retornar ao texto)

(5) Afinal, é a segunda alternativa que se concretiza, com a Revolução Constitucionalista, de 1932. Logo após a redação do "Projeto de teses sobre a Assembléia Constituinte", em 14.5.1930, é marcada data para as eleições: 3.5. 1933, fato que não impede o desencadeamento do movimento armado de 1932. (retornar ao texto)

(6) No manifesto "Aos trabalhadores do Brasil", publicado nesta obra.  (retornar ao texto)

(7) Para melhor conhecer as posições do PCB em relação à palavra de ordem de Constituinte, ver "Contra a Constituinte dos ricos", A Classe Operária, de 15.12.1931 (publicado em Edgard Carone, O PCB, vol. 1, São Paulo, DIFEL, 1982, p. 131-132 onde é desenvolvida a argumentação exposta no parágrafo seguinte do "Projeto de teses sobre a Assembléia Constituinte". Com relação a Prestes, que remete às posições do PCB, ver sua Carta Aberta de 12.3.1931, Diário da Noite de 24.3.1931 publicada em Abguar Bastos, Prestes e a revolução, Rio de Janeiro, Calvino, 1946, p. 252-266, especialmente p. 264). (retornar ao texto)

Inclusão: 22/03/2020