Fúlvio Esclarece

Fúlvio Abramo

20 março 1988


Primeira Edição: Teoria e Debate, edição nº 2, Mar/1988
Fonte: Teoria e Debate
Transcrição: Alexandre Linares
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: Licença Creative Commons licenciado sob uma Licença Creative Commons.


Prezados companheiros e colegas:

Antes de mais nada, recebam os agradecimentos pelo destaque e espaço que me concederam no primeiro número da revista Teoria e Debate, na seção 'Memória'. Recebi a manifestação de apreço como reconhecimento, não da significação de minha trajetória pessoal, mas dos acontecimentos ocorridos nestes longos anos de dedicação à luta pelo socialismo. E da experiência que pode servir de reflexão para as novas gerações de trabalhadores revolucionários.

Sinto-me, entretanto, obrigado a fazer algumas observações sobre duas passagens da entrevista, nas quais meu relato, muito menos do que por falhas do repórter, não está retratado com exatidão, devido porventura ao meu hábito de fazer referências indiretas a episódios de que o entrevistador não foi testemunha, sem explicitar minúcias que os esclarecessem.

O primeiro refere-se a Hermínio Sacchetta e a razão de eu não ter aderido à organização criada por ele, como continuação da Liga Comunista Internacionalista. Na entrevista, o tratamento de "seu", um modismo paulista para senhor, que é pronunciado sem malícias, foi aspado, o que lhe deu uma conotação depreciativa, o que absolutamente jamais foi o tipo de tratamento que mantive com Sacchetta. Também a caracterização de "stalinista às avessas" era por mim empregada, e somente em sua presença, de modo jocoso, pretendendo  com ela ironizar a rigidez com que Sacchetta se prendia a problemas de tática, que me pareciam, errada ou certamente, de menor significação. Foi em nome dessa rigidez que Sacchetta não me convidou para participar da organização não-legal de que era o líder: eu defendia que os trotskistas deviam fazer "entrismo" no partido legal que então se encontrava em fase de gestação: o futuro Partido Socialista Brasileiro.

Tal como aparece na reportagem — e insisto em afirmar que talvez por falta de haver esclarecido a situação agora exposta — tem-se a impressão de que, além do problema político, existia incompatibilidade pessoal entre nós.

Longe disso, minhas relações com Sacchetta foram sempre de respeito mútuo e de simpatia pessoal, que surgiu desde o tempo que Sacchetta era o principal dirigente do Partido Comunista em São Paulo. E não era para menos: ele conseguiu dobrar a resistência da direção nacional do Partido Comunista contra a integração na Frente Única Anti-Fascista, organismo de unidade de classe que congregou dezenas de entidades sindicais e políticas na luta contra o integralismo, então ameaçador e poderoso. Vencendo a tenaz oposição dos dirigentes nacionais do PC, Hermínio Sacchetta, apoiado pela quase totalidade da Juventude Comunista, associou-se na prática, à FUA, e levou os comunistas à Praça da Sé, no histórico dia 7 de outubro de 1934. Esse gesto foi talvez o único, em todo o mundo, em que um dirigente do PC tenha conseguido contrariar a política de aliança de classes defendida pela Internacional Comunista e consubstanciada pela formação da Aliança Nacional Libertadora, expressão acabada de entrega dos destinos do proletariado à direção da pequena e da grande burguesias "nacionais".

Daquele episódio surgiu minha admiração por ele e não me surpreendi mais tarde, quando ele se converteu ao trotskysmo. Embora não militando no movimento que foi líder, eu cultivei ótimas relações de amizade com ele, até seus últimos dias, quando o visitei, no hospital em que estava recolhido, até fora do horário de visitas.

A segunda observação refere-se a Hylcar Leite. Tal como está (e volto a repetir, talvez mais por defeito de exposição do que de audição) transmite-se a impressão de que ele foi preso porque confiava demais na consolidação do período de normalidade, supostamente criado pelo pérfido ditador Getúlio Vargas. Não foi isso que pretendi afirmar e sim que, durante o breve período de anistia, com o levantamento de certas defesas mais rigorosas que nos impúnhamos, aumentaram os riscos de nos expor à perseguição policial. Hylcar Leite foi preso como milhares de outros brasileiros o foram, na época, devido à nunca desmentida selvageria das classes dominantes e seus instrumentos, o governo, o exército, a polícia e, também, ao quase absoluto isolamento em que ficou, após o desmantelamento da Liga Comunista Internacionalista, o encarceramento e o exílio de quase todos os seus membros. Sem estrutura de apoio nenhuma, Hylcar Leite não teve como defender-se a tempo. Preso quando estava providenciando a guarda, em lugar mais seguro, da documentação de nosso grupo, sofreu intermináveis horas, dias e semanas de interrogatórios massacrantes. Seu comportamento durante todo esse período e o sucessivo, de prisão, em Fernando de Noronha, foi um exemplo raro de inteligência e resistência heróica.

A família de Hermínio Sacchetta, sua esposa Céres e seu filho Vladimir e os demais e sua própria memória e o fraternal amigo Hylcar Leite bem merecem essa reparação, que umas palavras talvez mal expressas e mal interpretadas, podem ser apresentado de modo desmerecido.

Saudações Fraternais.
Fúlvio Abramo São Paulo — SP


Inclusão 16/01/2016